Maximo Kausch e seu amigo Fredrik Strang desciam encordados pelas encostas congeladas do paquistanês Hidden Peak, de 8.080 metros, durante a pré-monção de 2010. Naquela altitude de 6.500 metros, o sol refletia-se na neve liberando vapor, que permanecia imóvel por falta da mais leve brisa. Vestindo equipamento completo, fritavam num calor de 40ºC. Maximo, exausto e desconcentrado, caminhava pela geleira preso ao companheiro pela extremidade de uma corda com 20 metros quando avistou Fredrik adentrando a sombra de um imenso serac. Só restava uma última ponte de gelo para alcançá-lo e descansar naquela sombra acolhedora quando, num estalo seco, o chão se esfacelou sob seus pés. Sentiu então seu corpo projetando-se no vazio.
No despertar da queda, ele recupera a lucidez e revisa todos os erros cometidos naquela displicente jornada. A corda longa fazia uma imensa barriga que iria agravar a queda, os piolets presos à cintura inviabilizaram seu uso naquela emergência, na pressa em descer ignorou inúmeros protocolos de segurança normalmente seguidos à risca. Por pura preguiça ainda usava o capacete, apesar do calor insuportável. Mãos desorientadas procuravam apoios inexistentes nos segundos em queda livre, braços nus deslizavam pela áspera superfície repleta de afiados cristais de gelo e a mente esperava ansiosa pelo tranco ao final da corda.
Antes que isso acontecesse, entalou com as costas apoiadas no bloco de gelo, que cedeu sobre seu peso, encaixado nas bordas da greta pelo capacete e pela mochila. Do teto despencou outro bloco de gelo, pesando uns 100 quilos, que se espatifou sobre o peito. Parte dele rolou pelas laterais precipitando-se no vazio profundo, mas outro tanto permaneceu sobre Maximo, sufocando e imobilizando seus movimentos. Gritou por socorro e só obteve o silêncio como resposta, enquanto olhava esperançoso para o pequeno orifício iluminado pelo sol 12 metros acima, de onde despencava uma intensa chuva de cristais de gelo. Dois riscos de sangue marcavam de alto a baixo as paredes da greta, e só a mão direita se movimentava livre do peso opressor. Dos braços, o sangue escorria das esfoladuras. Mas estava vivo.
Guiando a terceira expedição consecutiva em montanhas de 8.000 metros, o corpo de Maximo simplesmente entrou em colapso depois de três dias rejeitando água, comida e algumas noites mal dormidas. A 7.100 metros, no Hidden Peak, foi tomada a triste decisão: iniciaram uma perigosa descida por um corredor altamente técnico de 400 metros através de uma infindável seqüência de rapeis precariamente ancorados. Em algumas dessas ancoragens, aproveitou para vomitar o pouco que ainda carregava no estômago enquanto apreciava a paisagem deslumbrante. Belíssimas montanhas se destacavam no horizonte – Masherbrum, Gaserbrum IV, Chogolis e Mitra. A fronteira chinesa estava a poucos quilômetros e uma imensa tempestade se desenvolvia nos cumes superiores a 8.000 metros.
Entorpecido pela exaustão, contemplava de modo impessoal a paisagem circulante. Demorou 2 horas para descer os 600 metros que seu companheiro Fredrik fez em pouco mais de 30 minutos. Já no acampamento 2, estatelou-se no pequeno espaço de chão plano. Por instantes, adormeceu ao sol das 11 horas e só acordou ao sentir o rosto fritando. Do acampamento 2 ao 1, precisariam ainda vencer uma infinidade de gretas e seracs em um desnível superior a mil metros, totalmente expostos ao sol inclemente.
Desciam equipados com capacete, botas triplas, balaclava, luvas e jaquetas de plumas, suando em bicas sob o calor de 40ºC até que, vencida a preguiça, pararam para livrar-se do excesso de roupa. Mas o desconforto voltou logo sob a forma de uma espessa nuvem que tapou o sol – a temperatura despencou para 3ºC negativos, congelando o suor acumulado. Nova parada para vestir a roupa, seguida de outra para tirar tudo novamente. Foi então que apareceu no glaciar um imenso serac em negativo projetando sua sombra azulada na neve. Aquela sombra tornou-se seu maior desejo e ele já podia imaginar-se deitado no paraíso quando, de repente, o chão sumiu sob seus pés.
Imóvel no fundo da greta, ele passou por um surto de claustrofobia e desespero ao mensurar as possíveis conseqüências da queda. Teria alguma fratura? Mesmo recebendo ajuda do Fredrik ainda restavam 3 horas de caminhada por outro terrível campo de gretas até o acampamento 1. E depois mais 9 quilômetros de glaciar repleto de pontes e túneis de gelo, lagos e corredores de avalanches só para chegar ao acampamento-base, localizado em um dos lugares mais remotos do Paquistão. A vila de Askoli fica a 120 quilômetros dali por uma tortuosa trilha que contorna vales e montanhas –num bom jipe ainda precisariam de outras 9 horas para atingir a primeira cidade, Skardu, e outros dois dias de ônibus atravessando território taliban para receber tratamento em Islamabad.
Problemas mais imediatos foram ocupando espaço em sua mente perturbada: começou a sentir muito frio e já estava saudoso do calor infernal da superfície. Precisava sair urgentemente do buraco para não perecer de hipotermia. Recuperou a tranqüilidade e pacientemente moveu a mão livre, cavando com as unhas um espaço até soltar o braço. Continuou cutucando o gelo e foi aos poucos liberando individualmente cada parte do corpo soterrado. Livrou-se da alça da mochila e conseguiu se arrastar para fora do bloco. Ao se sentar, despencou de sua cabeça o capacete divido ao meio pela pancada – bendita preguiça!
Sem mais esperar ajuda externa, tratou de amarrar a mochila e fixar o ascensor na corda para escalar com a piqueta os 12 metros de parede que o separavam da beirada em negativo na boca da greta. Depois, com a mesma piqueta, foi cavando uma saída por debaixo de uma chuva congelante de cristais de gelo que se desprendiam a cada golpe até finalmente colocar a cabeça para fora do buraco e ver o sol. Nadando na neve, escapou do buraco.
Fredrik descansava deitado perto de uma sombra, e a corda estava firmemente ancorada ao cabo de seu piolet profundamente enterrado no gelo. “You crazy f**k !!!” foi sua saudação de boas-vindas enquanto os dois amigos caíam na gargalhada.
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Dureza: Maximo Kausch bebendo água pela primeira vez em 4 dias (Foto: F.Strang)
Coisa boa: Fredrik na tão sonhada sombra do serac (Foto: Maximo Kausch)