O alpinista argentino-brasileiro MAXIMO KAUSCH decide enfrentar – sozinho e apenas com a ajuda de uma moto mequetrefe – 30 montanhas com mais de 6.000 metros de altitude localizadas nos Andes. Direto de seu acampamento empoeirado, ele conta como têm sido as alegrias e roubadas de se lançar em um desafio aparentemente insano em um dos ambientes mais hostis do planeta
Texto e fotos Maximo Kausch
FOI EM 2007 QUE, PELA PRIMEIRA VEZ, comecei a cogitar a possibilidade de escalar várias montanhas andinas com mais de 6.000 metros de altitude em uma só expedição. Desde então, mantive-me ocupado guiando pessoas até o topo de grandes montanhas no Himalaia, porém sempre acalentando o sonho secreto de voltar aos Andes para escalar tudo o que estivesse a meu alcance. Um dos fatores que me mantiveram afastado de meu objetivo foi o desconhecimento: eu não sabia quais e quantas montanhas dos Andes têm mais de 6.000 metros, pois não existe uma lista confiável disso. Lembro que uma vez participei de uma discussão de montanhistas europeus a respeito da altitude do Matterhorn, nos Alpes. Um suíço afirmava que o Matterhorn possuía 4.478 metros, enquanto um italiano jurava que eram 4.477 metros. E eu pensava comigo mesmo: “Há montanhas nos Andes que nem nome têm!”. Eu mesmo acabei fazendo uma complexa pesquisa, estudando dados de sensoriamento remoto obtidos por missões espaciais nos anos de 1999 e 2000. A pesquisa tem 50 páginas e resultou um total de 110 montanhas com mais de 6.000 metros de altitude em nosso continente. Ao chegar a esse absurdo número, confesso que me surpreendi e afastei por um tempo a ideia de enfrentá-las. Eu sabia que, para começar um projeto desses, eu teria que ser paciente e, acima de tudo, totalmente sem noção. Também tinha consciência de que era enorme a chance de eu ter de fazer a viagem sozinho, já que pouquíssimas pessoas topariam ficar tanto tempo longe de casa passando por roubadas sem tamanho. E foi exatamente o que aconteceu. Felizmente, trabalhar como guia em montanhas com mais de 8.000 metros no Himalaia me ensinou muito. Expedições de até 70 dias fazem com que você se torne extremamente paciente. Tive que lidar com muitas tragédias no Himalaia e acho que tudo isso me permite hoje passar tanto tempo sozinho sem ficar completamente louco.
Meu sonho começou a tomar proporções reais em maio de 2012, numa barraca-refeitório a 5.700 metros de altitude no Tibete. Minha expedição comercial seguinte seria ao BroadPeak (8.047 metros), no Paquistão, mas por motivos políticos ela acabou dando errado. Três dos meus seis clientes não conseguiram visto para entrar no país. O fato de eu não morar em lugar algum também não ajudou, e eu tampouco consegui o visto paquistanês. Ali na barraca-refeitório instalada sobre um remoto glaciar tibetano, eu e um cliente alemão chamado Ralph tomávamos chá e começávamos a dar vida a nossos projetos pessoais. Na terceira taça de chá, revelei minha intenção de escalar 30 ou 40 cumes de 6.000 metros de altitude nos Andes. Ralph ficou surpreso com o número e perguntou como eu chegaria à base de tantas montanhas. Revelei que queria ir de moto. O fato de eu jamais ter subido numa moto provocou gargalhadas na equipe. Antes de dormir, anotei o que eu tinha que fazer quando terminasse a expedição no Tibete: “consertar mochila”, “comprar calça” e “moto?” (o ponto de interrogação significava que eu não fazia a mínima ideia de que tipo de moto comprar, muito menos onde adquirir uma).
UM MÊS DEPOIS, LÁ ESTAVA EU no meio da Argentina tentando comprar uma moto. Quando finalmente encontrei um vendedor, enchi-o de perguntas estúpidas:
– Para que serve este botão?
– Essa é a buzina.
Após a quinta pergunta, o vendedor recomendou que eu fizesse um curso de motocross. Mal sabia ele que dali a uma semana eu estaria levando a pobre-coitada para um dos mais lugares mais hostis do planeta.
Improvisei um suporte de metal para carregar 20 litros de água e 20 litros de combustível de cada lado da moto. Além disso, me abasteci de toda a comida e equipamentos que usaria em três meses de expedição. Confesso que, ao carregar a moto pela primeira vez, cheguei a repensar o que estava prestes a fazer. O total desconhecimento sobre a situação na qual estava me metendo ajudou, e eu parti para os Andes. Fiz meu “test drive” numa montanha chamada Pili, de 6.050metros: caí três vezes nos primeiros 100 metros e capotei uma vez antes de completar o primeiro quilômetro de estrada de terra. Tive a grande ideia de descarregar a moto e levar só o necessário. Após deixar galões e a mala principal enterrados a 4.700 metros, a moto não caía mais como antes. Sem carga era muito mais fácil! Após meu quinto quilômetro, julguei já ter experiência suficiente e decidi cortar caminho. Uma área verde no GPS mostrou-se na verdade um salar inundado seguido de um pântano. Minha vasta experiência sobre duas rodas me disse para acelerar. Após capotar, entendi por que motociclistas dirigem de pé em terrenos muito acidentados. O Pili é um imenso vulcão de forma cônica e lados bem empinados. É claro que eu estava prestando atenção no vulcão e não no caminho. Outro capote, e desta vez amassei a estrutura lateral da moto.
A cinco quilômetros da base do Pili, uma grande duna de cinzas vulcânicas obstruiu meu caminho. Lembrando dos X Games, onde os motoqueiros “rampam” dunas de areia, decidi tentar a proeza. O final não foi feliz: a moto bateu em uma pedra e virou.
Acabei aterrissando de costas, a moto caiu sobre mim e o guidão teria esmagado minha cabeça se eu não estivesse de capacete. Fiquei ali deitado por alguns segundos, a 4.800 metros, pensando nos riscos causados pela minha falta de noção. Eu estava no meio do deserto do Atacama (Chile), a 27 quilômetros de uma estrada, que por sua vez ficava a 160 quilômetros da cidade mais próxima. Para sair dali, eu tinha que atravessar um salar, um pântano e 15 quilômetros de deserto. Se algo acontecesse comigo, eu provavelmente seria encontrado dali a uns 12 anos, mumificado ao lado da moto. Pensei comigo: “Preciso tomar juízo”.
DEMOREI CINCO MONTANHAS para adquirir as habilidades básicas para dirigir em areia vulcânica. No entanto, uma dificuldade inédita começou a fazer parte do jogo: a solidão. Nos Andes, estive sozinho em todas as montanhas que escalei, com exceção de uma: um grande vulcão que eu podia ver do Cachi, minha sexta montanha. Comecei a caminhar às cinco da tarde e só dispunha de duas horas de luz para fazer a aproximação até os 5.000 metros, por isso fui praticamente correndo. Ao checar o GPS, reparei que eu não tinha marcado o nome dessa montanha, apenas havia um waypoint dizendo “6.150 metros” no cume. Fiquei extremamente curioso em saber o nome, porém não havia ninguém ali para perguntar. Ao passar dos 4.500 metros, encontrei pegadas recentes e fiquei muito feliz em constatar que se tratavam de botas de montanhistas. Encheu-me de alegria poder encontrar seres humanos numa montanha como aquela e ter alguém com quem conversar. Por volta das sete da noite, após o sol se pôr, avistei uma barraca laranja no fim de um profundo vale, no lado leste. Eram humanos e estavam acampados a 4.800 metros. Já faziam 15ºC negativos quando me aproximei da barraca e acordei seus ocupantes:
“Olá, como vai? Você sabe qual é o nome desta montanha?” Muito surpresos em ouvir uma pergunta como aquela, as três pessoas saíram da barraca para encontrar um ser bizarro – eu – vestindo só uma camiseta na maior friaca. Disseram-me que a montanha se chamava Quewar e mal acreditaram quando contei que havia estado no Cachi naquele mesmo dia. A felicidade de ver outras pessoas fazendo o mesmo que eu me fez falar pelos cotovelos. Queria escalar com eles, mas nossos ritmos não batiam: normalmente se sobe uma montanha como a que estávamos em quatro ou cinco dias para que o corpo se acostume com a altitude. Demorei 22 horas entre a estrada, o cume da Quewar e a volta à estrada. Tive que me despedir da tão cobiçada companhia humana no acampamento mesmo. Não voltei a encontrar pessoas em nenhuma outra das 30 montanhas que enfrentei até agora.
Muitos ficam surpresos quando descobrem que estou fazendo uma viagem como esta completamente sozinho. Confesso que há momentos em que sinto falta de ter alguém com quem conversar. Contudo, quando lembro dos episódios pelos quais passei, especialmente os ruins, penso duas vezes antes de convidar outra pessoa a passar tanto perrengue a meu lado. Há, porém, duas ocasiões em que eu queria ter sempre alguém por perto: quando algo dá muito certo e quando algo dá muito errado. Ao chegar a um cume, geralmente fico triste por não haver ninguém comigo para dividir aquele momento. E nas horas problemáticas não existe uma pessoa para confirmar que a culpa não foi minha! Minha primeira viagem 100% sozinho aconteceu 11 anos atrás, quando conheci o Atacama pela primeira vez. Na época, eu tinha em mente escalar o Ojos del Salado, o maior vulcão do planeta, com 6.898 metros de altitude. A viagem deu completamente errado, me perdi por oito dias, fui roubado e acabei preso. No fim, apesar da trágica experiência, aprendi muito e mudei para sempre. Lembro que somente após o décimo dia sozinho consegui curtir a total liberdade que eu tinha de ir e vir para onde quisesse. O tempo passou, porém a paixão pelas montanhas continua igual. Os objetivos, no entanto, mudaram: em vez de sonhar com uma montanha, hoje sonho com algumas dezenas delas.
HOMENS SÃO MUITO COMPETITIVOS. Em montanhas, eles naturalmente competem entre si. Quando decidi escalar um montão de montanhas sozinho, achei que seria o fim dessa estúpida tradição masculina. Errado! Acabei descobrindo que, ao ficarmos sozinhos, competimos conosco mesmos – o que não é nada bom, já que não há muitos malucos que escalam cinco montanhas de 6.000 metros em uma semana. “Cinco? Só cinco? Vou tentar escalar sete em cinco dias, será que consigo?”. Triste pergunta, que acabou me instigando a escalar duas montanhas de 6.000 metros no mesmo dia em duas ocasiões consecutivas, e a subir outras três em apenas três dias. Para escalar uma, normalmente consumimos entre 8.000 e 15.000 calorias, algo equivalente a duas ou três maratonas por cume. Já cheguei muito perto da exaustão competindo comigo mesmo. Todo alpinista, de uma forma ou outra, acaba ouvindo uma mesma pergunta: “Por que você escala?”. Uma das que mais ficou na minha mente saiu da boca de uma velha senhora que conheci na beira da estrada quando cruzava a pampa seca na Argentina. Minha moto quebrou e parei para arrumá-la bem na frente da única casa que encontrei em muitos quilômetros na região. A casa era de barro, edificação bem comum na pampa seca. Perto dela, havia um carro velho enferrujado, onde dois cães descansavam no sol da tarde. Após dez minutos arrumando a moto, a senhorinha saiu de casa fingindo que estava varrendo o pátio de terra. Aos poucos, foi se aproximando. – O que é isso?, disse, apontando para meus crampons (espécie de sola de metal com pontas afiadas, que é presa à bota para ajudar a caminhar na neve e gelo).
– Isso serve para escalar gelo nas montanhas.
– Ah. Por quê? O que tem lá?
– Bom, não tem nada, só pedras e gelo.
– E eles te pagam para fazer isso?
Já quase perdendo a paciência, respondi: – Não. Não tem ninguém esperando a gente com chocolate quente lá em cima. Nem com dinheiro. A velha, no entanto, me fez refletir a respeito do real motivo de eu estar fazendo tudo aquilo. Não consegui enquadrar esse sentimento em uma só frase. Pensei por muito tempo e acabei adiando a resposta para mim mesmo. Escalei 20 montanhas pensando nisso, e foi só na 21ª que achei palavras para descrever o que me movera até ali. Queria passar de novo pela casa de barro daquela velha senhora e lhe oferecer uma explicação melhor do que apenas dar de ombros por não saber o que dizer. Antes de explicar meus reais motivos, deixe-me primeiro contar como cheguei a minha 21ª montanha naquela viagem, o Incahuasi, de 6.621 metros de altitude. Eu havia tentando escalá-la em duas diferentes oportunidades durante minha vida. Na primeira, em 2001, eu não possuía quase nenhuma experiência em montanha, e na outra, em 2006, eu já tinha acumulado algum saber, mas ainda não conhecia meus próprios limites. Por conhecer bem o Incahuasi, nesta terceira tentativa acabei julgando mal a montanha, colocando-a em terceiro plano – em terceiro mesmo! Eu pretendia, num mesmo dia descer do colo do Ermitaño, a 5.600 metros de altitude, depois descer cerca de 40 quilômetros de moto na areia, subir outros 32 quilômetros em território desconhecido sem estradas, fazer o cume do Frailo e depois caminhar até a base do Incahuasi para escalá-lo. A primeira e a segunda parte do plano correram de acordo com o esperado, mas o fato de eu ter feito tanta coisa em um só dia não dava margem para erros. Escolhi o lado oeste do Incahuasi e fiquei totalmente exposto aos ventos do fim do dia. Do acampamento, a 5.100 metros, até o cume de 6.621 metros foram mais de 1.500 metros de desnível, com ventos que chegavam facilmente aos 100 km/h. Claro que fiquei exausto. Tinha vergonha de mim mesmo por sequer pensar na possibilidade de desistir da mesma montanha pela terceira vez na vida. Deixei o ego me dominar e insisti durante toda aquela tarde. Quase voei da crista final, a 6.500 metros de altitude. O Incahuasi não é uma montanha difícil. Mas como dizem os alpinistas da velha geração, “coisas dão errado quando você comete o terceiro erro seguido”. Subi bem tenso, e repetidas vezes lembrei daquela velhinha. Não tive, em nenhuma parte da subida, um momento de paz e estabilidade mental para pensar direito. A dez metros do cume, sentei e percebi que já não sentia a mão direita nem a orelha direita. Tentei, em vão, esquentá-las por alguns minutos, e novamente deixei a irresponsabilidade me levar, continuando em direção ao cume. Fiquei menos de um minuto no ponto mais alto da montanha e comecei a descida quase que imediatamente. O sol estava quase se pondo e eu ainda levaria algumas horas até a barraca. Durante o último terço da descida, segui meio que inconscientemente. Acho que 15 anos escalando fizeram com que certos movimentos se tornassem automáticos, e não lembro com clareza como desci. Apenas sei que encontrei uma grande rocha vulcânica e me escondi do vento atrás dela. Lembro de olhar o horizonte e simplesmente aceitar a complexidade de tudo, de olhar a próxima montanha e ter vontade de escalá-la sem antes descer para uma cidade para comer e dormir por alguns dias. Eu estava hipotérmico e eufórico, e foi então que entendi a mágica do que estava vivendo. Escalamos pela mágica de escalar, algo que supera dedos e pulmões congelados. É a mágica que nos move quando já passamos o ponto de exaustão há dias. É ir atrás de um sonho que ninguém além de você mesmo consegue entender. Fiquei feliz em conseguir colocar o sentimento em palavras. A 6.000 metros de altitude, com ventos muito mais fortes do que eu considerava aceitável, fiquei imaginando a reação da velha senhora diante da minha resposta. Após um dia tão longo como aquele, praticamente rastejei de volta ao meu minúsculo lar de nylon amarelo e desmaiei de cansaço.
MINHA MOTO ENCONTRAVA-SE a apenas três quilômetros de onde eu estava acampado. Seria uma descida tranquila se eu não estivesse com tanto receio de chegar até minha possante companheira. O motivo era simples: frio. Motos não são feitas para serem largadas por três dias a 28ºC negativos em altitudes superiores a 5.000 metros. Por isso, modifiquei várias partes da moto para que ela sobrevivesse a uma viagem como essa. Muitas das adaptações, eu mesmo fiz. Para melhorar a partida elétrica, por exemplo, coloquei uma segunda bateria e segurei-a com fita adesiva. Minha moto parecia o Frankenstein.
Avistei a moto atrás de uma colina exposta ao vento frio. Ao chegar até ela, fui logo tentando dar a partida elétrica. Não pegou. Foram minutos de tentativas até que a bateria morreu. Vários insultos foram jogados aos céus e carregados pelo vento. Não era para menos: do ponto onde eu estava até a estrada mais próxima, havia pelo menos dez quilômetros de cinzas vulcânicas, uma serra com 400 metros de desnível e um glaciar com gretas perigosas. Supondo que eu conseguisse chegar à estrada, seriam 200 quilômetros até a primeira cidade argentina ou 230 quilômetros até a primeira cidade chilena. Com muita raiva, comecei a percorrer os quase 30 quilômetros que me separavam da tal estrada onde, talvez, teria uma chance de conseguir ajuda. Eram cinco da tarde quando deixei a moto, na esperança de encontrar alguém na manhã do dia seguinte. Encontrei raposas, vicuñas e até condores vasculhando o vale durante minha descida. Devem ter achado engraçado aquele intruso cruzando as planícies vulcânicas, rumo a lugar nenhum, caminhando rápido e soltando gritos de vez em quando. Já do meu ponto de vista, a situação era grave: estava no começo de novembro e a estrada para qual eu ia recebe um ou dois veículos por dia (de ambos lados!). Para piorar, eu só tinha 2 litros de suco e meio pacote de sopa de letrinhas. E ainda por cima decidi percorrer 30 quilômetros após ter escalado duas montanhas com mais de 6.000 metros no mesmo dia. Após o 15º quilômetro, tudo se tornou uma negociação comigo mesmo. O suco que eu bebia, onde eu cozinharia a sopa de letrinhas, onde dormiria, tudo tinha que ser pensado.O lugar para dormir veio no 18º quilômetro, quando a fraca luz do pôr do sol iluminou um grande rochedo com um teto de dois metros suspenso sobre ele. A escultura parecia ter sido feita pelo vento. Agradecido, soltei um comentário rabugento: “Pelo menos o vento serviu para algo!”. Joguei meu saco de dormir na rocha e caí no sono em cinco minutos. O frio da noite se manifestou nos meus sonhos e foi me acordando. Não consegui dormir a partir das quatro da manhã. Para que meus pés não congelassem, recomecei a caminhada imediatamente. O sol nasceu mas a sombra das dunas mais próximas cobria exatamente o local que eu escolhi para caminhar. Acabei passando frio até o sol estar mais alto, às 8 da manhã. Finalmente avistei a estrada. Eu procurava abrigo do vento forte que começou a soprar por volta das onze da manhã. Um grande e curioso rochedo avermelhado me fez mudar de direção. Parecia um refúgio perfeito. Eu já estava planejando como seria meu dia esperando uma carona ali quando, estranhamente, um brilho surgiu do meio daquelas pedras. Logo depois, dois pontos surgiram do meio do rochedo: era algum tipo de furgão, e o brilho não passava dos raios de sol batendo numa janela ou porta do veículo. Meu humor mudou completamente, e minha velocidade também. Mal acreditava na sorte que estava tendo naquela fria manhã. A 200 metros de distância, percebi se tratar de um casal que estava tomando café da manhã numa mesa ao lado do furgão. A possibilidade de comer pão com manteiga me fez acelerar mais ainda. A 50 metros de distância gritei: “Hola!”, e os dois olharam para mim. Imagine o que deve ter passado pela cabeça do casal. Você dirige 230 quilômetros sem ver uma alma viva. Depois você estaciona seu furgão para passar uma noite de paz ao lado de um remoto lago de altitude, quando aparece um ser caminhando rápido, no lugar mais improvável. Os dois correram até mim como se eu fosse uma vítima de incêndio. Após ver o sorriso estampado no meu rosto, concluíram que estava tudo bem. Ali mesmo comecei a conversa, soltando uma frase sem noção: “Este furgão deve ser um ótimo refúgio para o vento!”. Um olhou para o outro, e os dois ficaram meio estáticos. Percebi o quão estranho meu comentário introdutório havia sido e perguntei se eles tinham água. A resposta positiva me fez beber meus últimos 700 mililitros de suco sem nem parar para respirar. O casal era da Alemanha e estava ali para observar flamingos e outras aves no lago vizinho. Comecei a contar a história de como eu tinha chegado até aquele rochedo, sendo interrompido de vez em quando por um “Nossa!”. Em um dado momento, a mulher abriu uma geladeira de isopor que continha muitos embutidos. Entre eles, presunto de verdade (e não sopa com gosto de presunto como eu comera até uns dias atrás). Um sanduíche começou a ser preparado, e perdi completamente a atenção no que eu estava falando. Devo ter mencionado a palavra presunto várias vezes. Quando ela terminou aquela obra de arte, colocou o sanduíche sobre um prato e me ofereceu. Os dois observaram, boquiabertos, a ferocidade com que eu devorava o sanduíche. Mais dois foram preparados. Orgulhosos, eles me contaram sobre as observações dos flamingos e me passaram o binóculo para que eu visse os pássaros mais de perto. A primeira imagem que veio a minha mente foi a de um daqueles flamingos no forno com batatas e cebolas. Perguntei se as aves eram comestíveis, e o binóculo foi retirado das minhas mãos. Concluí que era hora de ir embora. Os dois contaram que estavam ali havia dois dias, período no qual viram apenas três carros. Decidi tentar a sorte na Argentina e esperar por algum veículo que fosse para lá.
Achei um ponto 300 metros fora da estrada, de onde eu conseguia enxergar pelo menos dez quilômetros para ambos os lados. De tão longe, eu não conseguia ver veículos propriamente ditos, mas dava para detectar a nuvem de poeira que costuma acompanhar os carros em estradas como aquela. Por volta da uma da tarde, avistei a primeira linha de poeira se aproximando. Percorri rapidamente os 300 metros que me separavam da estrada. Esperei durante uma hora, mas ninguém apareceu. Sem entender nada, voltei para meu posto de observação. Algumas horas depois o mesmo aconteceu, e nada de veículo. Tive certeza de que havia algum tipo de desvio que eu não percebera no meu mapa. Andei até um ponto onde eu podia observar pelo menos cinco quilômetros de estrada reta sem desvio. Entendi menos ainda. Quando comecei a voltar ao ponto original de observação, entendi o mistério: o forte vento levantava um rodamoinho de poeira que parecia a nuvem formada por carros. Senti-me um idiota. Acabei pegando uma carona inesperada na manhã seguinte. O motorista ficou bastante surpreso ao encontrar alguém pedindo carona ali (e ficou mais surpreso ainda quando sentiu meu cheiro no banco do passageiro do seu carro). Ao chegar a Grutas, onde ficava o posto de controle de fronteira do lado argentino, reencontrei duas pessoas que estavam ali desde 2001, quando passei por aquele mesmo trecho. Um deles me reconheceu imediatamente, mesmo após 11 anos. Passei algumas horas contando a meus velhos amigos como havia sido minha última década. Os oficiais do exército estavam por perto e também vieram ouvir. Contei sobre o Himalaia, sobre como comprei a moto e outras histórias sobre meu aprendizado. Quando disse que a minha moto tinha ficado para trás, o próprio exército ofereceu uma carona até ela. Acabamos chegando até a moto às 11 da manhã do dia seguinte e, por volta do meio dia, consegui dar a partida.
AO SABEREM DAS AVENTURAS solitárias em que me meto e do tempo que passo sem ninguém a meu lado, muita gente me pergunta se falo sozinho. Tenho que admitir que, certas vezes, para manter a sanidade, falo e explico coisas para mim mesmo. No começo, é estranho. É como quando você conhece uma pessoa e no começo está reservado, mas duas semanas depois lá está você de cueca abrindo a geladeira e procurando cerveja. Uma das primeiras vezes que me peguei falando sozinho foi quando tentava me convencer a manter a calma e a concentração ao cruzar um campo minado no Chile. Sim, um campo minado. Enquanto planejava a viagem, cheguei a me corresponder com o órgão militar chileno, responsável pela remoção das minas terrestres instaladas pelo governo chileno em 1978 na região fronteiriça com a Argentina. Segundo eles, boa parte das minas já havia sido removida e não havia perigo. No entanto, segundo meus amigos da polícia argentina, só algumas minas foram removidas na linha da fronteira, e boa parte ainda estaria enterrada naquela região. Decidi confiar nos chilenos e fui mesmo assim. Minha intenção era a escalar o Nevado Pular e o Salin. Algo me dizia para e deixar essas montanhas para outra ocasião. Trata-se, no entanto, de duas das montanhas mais remotas dos Andes, e a curiosidade não me deixou desistir. Tudo correu bem até que avistei a primeira coisa metálica verde, semi-enterrada. Sim, era uma mina terrestre. Foi um choque, pois eu já tinha dirigido alguns quilômetros na região e só faltava mais um quilômetro para sair dali. Parei a moto e fiquei estático pensando se valia a pena prosseguir. Campos minados, por motivos óbvios, são lugares pouquíssimo visitados, e vários animais selvagens, como ñandus (um tipo de avestruz), raposas e vicuñas acabam se proliferando. Parado com a moto, reparei num grupo de vicuñas transitando livremente pela região. Vicuñas são animais de comportamento estranho. É comum elas correrem para a estrada em vez de se afastarem dela quando seres perigosos como um alpinista faminto se aproximam. Muitas vezes elas pulam na frente da moto quando deveriam fugir, algo que não me preocuparia se não precisasse me esquivar de cargas explosivas. Isso me fez pensar se gerações de vicuñas já não teriam explodido todas as possíveis minas instaladas ali. O fato de não existir nenhum animal morto reforçou a versão dos chilenos em relação às minas. Decidi percorrer o último quilômetro, pois, de acordo com minha teoria, aquela mina talvez fosse uma que falhou e foi abandonada. Liguei a moto e continuei com muita cautela. Após a primeira colina, encontrei uma ossada de vicuña que, obviamente, explodiu em pedaços. O alívio que senti anteriormente desapareceu. Falei pelos cotovelos comigo mesmo para aliviar a tensão. Imaginei que, acelerando e aumentando cada vez mais a velocidade, as possíveis minas explodiriam tardiamente e não daria tempo de arrancarem minhas pernas. Finalmente consegui sair do campo minado e partir em direção ao Nevado Pular. Valeu a pena caminhar por aqueles vales inexplorados. Fora o cume das duas montanhas, não vi nenhum sinal de atividade humana na região toda. Tive que percorrer pelo menos 60 quilômetros na região para atingir o cume do Pular e Salin. Na volta, percorri o mesmo caminho, só que seguindo centímetro por centímetro as marcas deixadas pelas minhas rodas na ida. Ao descer, os policiais argentinos que me alertaram sobre as minas perguntaram como foi. Com base em minha grande experiência em cruzar campos minados com uma moto, adverti que era necessário andar a pelo menos 70 km/h, pois se uma mina explodisse só daria tempo de explodir a roda de trás. Os policiais olharam um para o outro e caíram na gargalhada.
– Você é louco, disse um deles. – E agora? Para onde você vai?
– Vou completar pelo menos 30 montanhas até o fim das minhas férias.
E que férias!
No fechamento desta edição, Max estava de partida para La Rioja, na Argentina, onde mais dez montanhas de 6.000 metroso aguardam. Será que ele consegue escalar mais que sete delas em cinco dias?
Maximo Kausch é alpinista e guia de montanha. Nascido na Argentina, mas criado no Brasil, já escalou montanhas míticas, como o Cho Oyu (8.201metros, no Tibete), o Ama Dablam (6.815 metros, no Nepal), o Lhotse (8.516 metros, no Nepal) e o Gasherbrum II (8.035 metros, no Paquistão). É um dos criadores do site Alta Montanha (altamontanha.com) e colunista do site da Go Outside
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2012)
VOO SOLO: A região dos altiplanos chilenos é uma das escolhidas por Maximo em sua
expedição solitária pelo continente
CORAÇÃO SOLITÁRIO: O alpinista Maximo faz autorretrato nas montanhas andinas, para
aonde foi sem ninguém
NA SECURA: Cenas da expedição pelos Andes, onde água é raridade
ENFIM UM AMIGO: Garoto andino encontrado por Maximo
NO AR RAREFEITO: Grandes altitudes não são um desafio para o escalador, acostumado
a guiar clientes em montanhas do Himalaia