De cara com a morte

Em setembro, o freesurfer potiguar Aldemir Calunga viajou para o México para fazer aquilo que mais ama: surfar ondas grandes. Durante a viagem, ele tomou a maior vaca de sua carreira. A prancha perfurou seu rosto, e o acidente deixou-o entre a vida e a morte. Em depoimento a MARIANA MESQUITA, ele relata os momentos de aflição que passou até poder entrar no mar novamente


TEMPO BOM: Calunga pega onda em uma session histórica que ficou conhecida como Big
Wednesday, em 2010, em Fernando de Noronha
(Foto: Aleko Stergiou)

“EU SEMPRE TIVE UMA RELAÇÃO MUITO ÍNTIMA com o mar. Quando era criança, vivia em uma comunidade de pescadores e acompanhava meu pai, um veterano de guerra da Marinha do Brasil, em seus passeios de lancha pelo Rio Grande do Norte. Foi essa paixão pela água salgada que me levou para o surf.

Comecei a surfar quando tinha apenas 9 anos de idade.Durante a adolescência, conquisteidestaque emcompetições amadoras e regionais. Anos mais tarde, um dos meus patrocinadores, o [surfista de ondas grandes] Caio Pereira, construiu uma pousada em Fernando de Noronha. Por isso, naquela época, eu passava temporadas treinandonas ondas de lá. Foi questão de tempo até que eu me rendesse à adrenalina e percebesse que viajar em busca dos melhores tubos e das maiores ondas do mundo era minha grande paixão.

No fim do colegial,eu precisava decidir o que fazer da vida. Sabia que o surf seria minha profissão, mas esse era um assunto bastante polêmico dentro de casa. Meu pai sempre trabalhou muito para conseguir sustentar nossa família e, apesar de apoiar minha decisão, para ele o surf tinha de ser encarado como um passatempo, e não como trabalho. Para conseguir viver do jeito que eu queria, decidi ir morar em Puerto Escondido, no México. Passei dois anos na região e, durante esse tempo, venci o Mexican Pipeline, um importante campeonato de lá.


ENGRAÇADINHO: Calunga fazendo graça em mergulho por Fernando de Noronha
(Foto: Aleko Stergiou)

Quando eu voltei para o Brasil, em 1997, conhecio Petrônio Tavares, dono da marca de surfGreenish, que me ofereceu patrocínio para trabalhar como freesurfer [atleta que não compete regularmente e ajuda a divulgar a marca com fotos e vídeos de suas performances]. Foi aí que consegui passar a viverfazendo aquilo que amo, respeitando as comunidades por onde passo, ao lado de bons amigos, sem perder a humildade e o bom humor esem precisar ficar na fissura por novos títulos. Nessa nova fase, curtidiversas temporadas de surfem lugares como Taiti, Havaí, Indonésia eAustrália.

Em setembro de 2012, fui para o México para mais uma session. É difícil me lembrar direito de tudo que aconteceu. Para conseguirrecordar de como foi a maior vaca da minha vida e até dos meses anteriores ao acidente, tive que recorrer a longas conversas com amigos e familiares. Minha memória foi inteiramente ejetada.Antes do acidente, por exemplo, eu havia comprado um carro novinho e, quando voltei ao Brasil, simplesmente não me lembrava disso.

Fazia alguns anos que eu não voltava a Puerto Escondido. No dia fatídico, lembro de olhar a previsão de ondas e ver que as condições eram muito boas. Não estava tão treinado, mas decidi seguir em frente, afinal Puerto Escondido era como uma segunda casa para mim. Eramumasdez horas da manhã, havia ondas perfeitas e tinhabons amigos na área. Foi nessa viagem que conheci o surfista e salva-vidas Marcos Monteiro, que estava na praia para treinar para um campeonato de ondas grandes.Mal sabia eu que ele, instantes mais tarde, me livraria da morte. Antes de eu cair na água, batemos um papo rápido. Com os pés na areia e olhando para o mar,lembro de contar para ele sobre alguns dos remédios aos quais sou alérgico. Loucura, né?

Com o mar repleto de outros surfistas, eu estava decidido a pegar o maior número de ondas grandes que conseguisse. Queria aproveitar ao máximo aquele momento. Por isso, decidi entrar no mar com o leash [corda que fica presa na prancha e no tornozelo do surfista], coisa que não costumo fazer.


SEGUNDA CASA: O surfista Calunga se aventura pelas ondas de Puerto Escondido,
no México, local onde sofreu o acidente em 2012


De repente vi a onda chegando. Era uma das boas, apesar de não muito grande. Logo me posicionei e comecei a remar. Depois disso, não me lembro de mais nada. Sei que, momentos depois de tomar a vaca, a prancha foi pelos ares e eu fui sugado pela água. O leash, preso no meu pé, puxou a prancha de volta, que com a ajuda do vento veio em direção a minha bochecha, como um estilingue. Perdi alguns dentes, machuquei o rosto e desmaiei. Passei cerca de seis minutos em baixo da água. A mesma cordinha que me fez desmaiar me salvou, porque fiquei preso na prancha que boiava no mar. Foi nessa hora que Marcos, que estava na água há alguns metros de mim, me resgatou e prestou os primeiros socorros. Em meio à forte corrente e às ondas grandes quebrando na nossa cabeça, ele conseguiu me tirar da água. Depois ele eos salva-vidas da praia iniciaram uma reanimação cardiopulmonar, e fui levado respirando para a UTI de um hospital da cidade.

Logo que cheguei, fui sedado e entubado. Os médicos disseram que eu não teria grandes chances naquelas condições. Diante disso, o amigo [e surfista norte-americano] Greg Longme ajudou e conseguiu rapidamente um avião parame transferir para um hospital melhor na Cidade do México. Durante todo esse tempo, o Petrônio esteve do meu ladoe foi o grande responsável por todos os meus cuidados, pela divulgação de notícias do acidente e por um imenso apoio para minha família. Passei por duas broncoendoscopias para retirar areia e outros resíduos do pulmão.

Foram 16 dias na UTI e sete dias em coma. Quando acordei, enxergava tudo cinzento e não me lembrava de nada. Ao abrir os olhos, perguntei ao Petrônio, que estava do meu lado, o que havia acontecido e, aos poucos, fui me acalmando.


RESGATE: Marcos tenta reanimar Calunga depois de tirá-lo da água (Foto: Dama Dorsey)

Mesmo delirando e sem memória, eu não me esquecia do mar. Ficava me imaginando descalço na praia da Pipa,no Rio Grande do Norte, e isso me dava coragem e força para acreditar que eu ficaria bem. A cada dia que passava, as coisas iam melhorando, e as cores, voltando. Naquele momento, nada me importava além da paz de espírito. Eu só queria poder respirar fundo de novo. Durante vários momentos no meu pensamento, reencontrei amigos e familiares, como meu pai, que repetidas vezes me disse para aguentar firme. Acredito que a ioga e a religião espírita me ajudaram a manter a calma e a me colocar no caminho correto.

A primeira vez que eu voltei ao mar com a prancha depois do acidente foi ao lado doMarcos. Ele veio para o Rio Grande do Norte há um mês. O encontro foi regado de abraços, lágrimas e emoções. Com certeza manteremos contato. Não foi à toa que nos conhecemos e que tudo isso aconteceu.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2012)







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