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Um inglês e um norte-americano decidem desbravar 9.000 quilômetros de norte a sul do Brasil a pé, a remo e de bike, em uma expedição de 18 meses pelas regiões mais isoladas do país


Por Bruno Lazaretti


CASINHA DE SAPÉ: A expressão de Aaron Cervenak e Gareth Jones na foto parece séria,
mas os dois estão curtindo muito a expedição Brazil 9000

“NÃO AGUENTO MAIS”, desabafou o índio Fidel, da tribo patamona. O londrino Gareth Jones e o californiano Aaron Chervenak, ambos de 31 anos e companheiros de uma ambiciosa expedição em terras brasileiras, cruzaram olhares, sem esconder certo desespero. Estavam apenas no terceiro dia de um trajeto de pouco mais de uma semana até o ponto mais ao norte do Brasil, o monte Camburaí, na fronteira entre Roraima e a Guiana. Os dois gringos atravessaram o árido lavrado de Roraima guiados por Fidel, mas foi no começo da selva que a saudade da mandioca, ou apenas o bom senso, bateu no índio e ele anunciou sua retirada. A dupla de amigos murchou. “Tentei convencê-lo com mais dinheiro, mas nossas técnicas de persuasão capitalista não surtiram efeito”, conta Gareth. No dia seguinte, o guia pegou o caminho de volta para casa, e os dois companheiros seguiram viagem, resignados. Sua jornada de 9.000 quilômetros pelo país ainda nem tinha começado e já dava sinais claros das dificuldades que viriam pela frente.

Gareth e Aaron tiveram a ideia de sua expedição, batizada de Brazil 9000, em 2010, depois de descobrirem uma canoa portátil que os permitiria cruzar o território nacional de seu ponto mais setentrional (98 quilômetros mais ao norte que o deságue do rio Oiapoque) até o Arroio Chuí usando apenas força humana. O trajeto de oito dias até o monte Camburaí era só o prólogo – e um índio desistindo era certamente um mau sinal. Talvez a aventura acabasse antes de começar. Talvez eles morressem de cobra ou tiro. Talvez os índios macuxis, da reserva Raposa Serra do Sol, os abatessem a flechas quando pedissem para cruzar suas terras.

Mas eles sobreviveram. Cinco dias depois, estavam no meio do morro Camburaí em busca do marco BG-11A, misterioso monumento que uma expedição militar cravou no ponto mais ao norte do Brasil em 1998. Foi por aí que eles descobriram que não só os mapas eram inúteis nessa região, mas que as marcações grosseiras do GPS não estavam ajudando. Após subirem o rio Maú até sua foz, respiraram fundo, voltaram-se ao Sul e iniciaram a marcha até Boa Vista – agora, sim, poderiam começar a subtrair quilômetros dos 9000 mil até o Chuí.

Os dois viviam no Rio de Janeiro quando decidiram explorar a Amazônia pela primeira vez, em 2010. Depois de conhecerem os macetes da selva em uma viagem pelo Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, entre o Amapá e o Pará, compraram a canoa portátil e preparam-se durante dois anos para a empreitada, na qual poderiam usar apenas as pernas e os braços, remando, caminhando e pedalando.

Conversamos com os dois durante a pausa deles em Boa Vista. Enquanto você lê esta entrevista, Gareth e Aaron devem estar no meio do mato em algum ponto remoto do país. Para acompanhar seus passos, visite o site brasil9000.com.


CENAS BRASILIS: Imagem da viagem, que no momento passa pela região Norte do país


GO OUTSIDE Como vai a viagem? Quanto vocês percorreram até agora?

GARETH JONES: Acabamos de terminar a primeira parte da expedição, do monte Caburaí, na fronteira com a Guiana, até Boa Vista. Levamos 37 dias e percorremos 754 quilômetros até agora.


A viagem toda deve durar quanto tempo?

AARON CHERVENAK: Estimamos 18 meses, usando uma média diária de 17 quilômetros. Não temos pressa e queremos documentar o Brasil durante a travessia.


Quais equipamentos são mais essenciais para uma viagem desse porte?

G: Para viagens pelos trópicos, é preciso tratar bem a água. Por isso, um filtro ou uma reserva de cloro é mais que necessário. E talco! É isso que deixa nossos pés decentes e os impede de apodrecerem e caírem.


Vocês usam algum tipo de proteção contra bichos?

A: Minha filosofia é cobrir todas as áreas expostas do corpo. É desconfortável, mas mordidas de mosquito são um problema porque podem infeccionar. É tão bom se coçar! Uso luvas, lenço, meias, chapéu. E me convenço de que o suor excessivo refresca. Contra cobras, eu estava usando um tecido tipo cordura nas canelas, até que um índio me viu e riu da minha cara, falando que isso não me protegeria nem de uma capivara.


NA AMIZADE: Os gringos encontram amigos locais no parque de Tumucumaque


Vocês já tiveram um encontro traumático com um peixe candiru [conhecido por entrar no canal da urina?

G: Não, mas alguns pescadores nos avisaram. Nunca mais vamos fazer xixi fora da canoa!


Como vocês se conheceram?

G: Na Universidade de Manchester, no Reino Unido, em 2003. Aaron tinha vindo da Califórnia visitar uns amigos em comum. Ele pediu para ficar alguns dias e acabou passando dez meses acampado debaixo de uns armários sob a escada do meu apê. A gente morava em cima de uns vendedores de kebab, e a caverninha do Aaron sempre exalava aromas exóticos de gordura. Foi assim que começou nossa amizade.


O quão bem vocês se conhecem?

G: Muito bem, como irmãos. Isso é maravilhoso e difícil. Ainda estamos aprendendo como não irritar um ao outro, em especial nos dias em que estamos exaustos, famintos e sedentos. Não conhecemos ninguém (nem casais!) que têm de passar por esse nível de intimidade. Nós cagamos um do lado do outro no mato, comemos do mesmo prato. Partilhar os pontos mais altos e baixos de nossas vidas.

A: Faço minhas as palavras dele. Nós somos como o pior tipo de casal: brigas, compromisso e nada de sexo! Mas também temos momentos fantásticos que nos lembram a razão de estarmos juntos no meio de uma aventura. Uau, olha só, até parecemos um casal falando assim!


O que faz vocês funcionarem como equipe? Quem é responsável pelo quê?

G: Primeiro de tudo, adoramos a selva e amamos o estilo de vida que escolhemos. E cada um de nós tem habilidades específicas. Montar o acampamento agora é rápido. Encontramos uma clareira ou margem de rio umas 16h, e o Aaron já começa a tratar a água para a noite, anota as informações do GPS e carrega nossos equipamentos eletrônicos no carregador solar. Eu junto lenha, faço fogo e cozinho o jantar e o café da manhã dos próximos dias. Quando sobra força, atualizamos nossos blogs antes de desmaiarmos nas redes às 20h.

A: O Gareth é um potro de corrida e curte meter a mão na massa logo cedo. Meu forte é andar longas distâncias, então ajudo o Gareth naqueles bloqueios físicos e mentais que aparecem em trechos complicados. Por outro lado, o Gareth rema melhor e é mais consistente. Ele me motiva durante os estreitos mentais que pintam depois de oito horas na canoa.


Vocês têm papos profundos na mata?

G: Quando andamos na selva sozinhos, ficamos meio longe um do outro para minimizar o risco de picadas de cobra. Então não nos falamos muito, entramos meio que em um transe, dando um passo por vez em nossos mundinhos. Já me flagrei falando sozinho. Remando é outra história: a conversa vai mais longe do que o papo de boteco porque a natureza imensa ao nosso redor coloca tudo em perspectiva. Falamos do nosso tempo curto neste planeta. Também dividimos fantasias sobre comida – uma pergunta comum é o que a gente comeria se estivéssemos em casa. Sonhamos com milk-shakes, comida de mãe e pratos tailandeses.


Vocês engoliram essa de que o Christopher McCandless (o protagonista de Na natureza Selvagem) era esquizofrênico?

A: Acho que McCandless era um jovem sábio que acreditava que a vida era mais do que essa esteira confortável que o mundo estende para a classe média alta. Pelo que li sobre ele, acho que acreditava que, mesmo jovem e privilegiado, tinha que buscar um caminho alternativo, sair da bolha e procurar a compaixão de estranhos, a beleza na natureza. A única desgraça foi que ele morreu tentando, então virou combustível para o argumento de que sair demais “da caixa” é irresponsável, egoísta e perigoso.


Como foi o primeiro contato de vocês com a selva?

G: A primeira coisa que me impressionou foi perceber como é barulhento aqui. Insetos, pássaros. É tão ruidoso quanto o centro de uma cidade.

A: É chocante presenciar a conexão entre flora e fauna. Troncos mortos no meio da água viram casa para morcegos. Árvores caídas dão vida nova à floresta porque deixam a luz entrar.


Vocês têm uma relação especial com o Brasil ou é só uma fase, do tipo que, no ano que vem, vão explorar, sei lá, a tundra siberiana?

A: Este momento da minha vida é o Brasil. Namoro uma brasileira, então tenho contato emocional direto com o país. É uma nação que cresce o tempo todo, e é muito louco estar em um lugar que muda a cada minuto. O Brasil terá grandes momentos ainda, e fico contente de estar aqui. Mas quem sabe a tundra siberiana esteja no meu futuro…

G: É uma relação de vida, um laço que nunca se rompeu desde que um amigo me deu uma fita cassete com músicas do Vinicius, Gil e Jorge Ben. Eu precisava entender do que falavam essas canções, então fui para o Rio depois da universidade. Fiquei dois anos lá, minha família achou que nunca mais voltaria. Quando retornei, juntei grana, pedi demissão do trabalho e parti de novo para o Brasil. Viciei.


Vocês falam português? Quais expressões são mais úteis na expedição?

G: Tem muito bandido/onça/sucuri/jacaré por aqui?

A: Tem comida aqui?

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2012)







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