Onde os dopados não têm vez


REI MORTO, REI POSTO: Após anos de investigação, Lance perdeu os títulos do Tour de France

Em outubro de 2012, a União Ciclística Internacional (UCI) comprou a briga da USADA, a agência antidoping norte-americana, e derrubou o maior colecionador de títulos do Tour de France, o atleta Lance Armstrong (leia mais aqui). Mesmo depois de ter negado qualquer envolvimento com doping, Lance pode estar arquitetando sua última cartada para tentar retomar sua carreira esportiva. Segundo o jornal norte-americano The New York Times, o ciclista pode vir em breve a confessar ter usado substâncias proibidas para melhorar o desempenho. Segundo o Código Mundial Antidoping, sob o qual Lance está sendo punido, se ele confessar todas as informações e detalhes da infração cometida, quais eram os envolvidos e como a fraude foi mantida em sigilo, o atleta pode reduzir a pena e abrandar a punição sofrida (que hoje o impede de disputar qualquer competição esportiva). Ainda segundo o jornal, Lance está sendo pressionado a confessar por pessoas ligadas à Livestrong, fundação que ele criou após superar um câncer.


Em dezembro de 2012, a Go Outside publicou uma reportagem sobre os novos rumos do ciclismo e da luta antidoping após a queda de Lance Armstrong. A seguir, leia a reportagem na íntegra.

Depois da derrocada do mito Lance Armstrong, líderes mundiais chegaram à conclusão de que só há um jeito de salvar o ciclismo: sendo implacável com quem usa substâncias proibidas para vencer seus adversários


Por Mario Mele


NINGUÉM SABE AO CERTO QUANDO SUBSTÂNCIAS DOPANTES se tornaram uma espécie de doença crônica e incurável do ciclismo de estrada. Mas em outubro, depois que a agência norte-americana antidoping USADA (United States Anti-Doping Agency) divulgou um relatório de mil páginas colocando o nome de Lance Armstrong no topo de um sofisticado esquema de trapaças – que incluía o uso de substâncias e procedimentos ilegais e ameaças a possíveis testemunhas do jogo sujo –, o ciclismo profissional de repente se viu no momento mais conturbado de sua história.

“Lance Armstrong deve ser esquecido pelo ciclismo”, declarou o irlandês Pat McQuaid, presidente da União Ciclística Internacional (UCI), instituição que desde 1900 regula e vigia a modalidade. Ao apagar definitivamente o nome do maior ídolo do ciclismo mundial de sua lista de campeões, a UCI sabia que o esporte se debateria como um peixe fora d’água. Agora a entidade mostra serviço para que a modalidade mais tradicional e lucrativa do esporte recupere a credibilidade e finalmente passe a respirar ar limpo. Será uma longa estrada.

Pat preside a UCI desde 2006, e não é raro tanto o homem quanto a instituição serem atacados por ex-ciclistas profissionais. Um deles é o norte-americano Tyler Hamilton, cujo nome revezou-se entre notícias de vitória e de doping ao longo da última década. Recentemente, Tyler acusou a UCI de “ser conivente com o doping de atletas”. Para uma revista alemã, ele declarou que a “instituição sempre soube, mas encobriu as atitudes desonestas de Lance”. “Em um cálculo conservador, 80% dos ciclistas que disputam o Tour se dopam”, acrescentou.

Entre 1999 e 2001, Tyler e Lance foram parceiros na equipe US Postal Service. Cansado de se ver na posição de vilão enquanto o colega construía seu império, Tyler desencadeou a última e fatal caça ao então heptacampeão do Tour de France. “Eu vi Lance injetar-se EPO mais de uma vez, como todos fazíamos”, disse no ano passado em um dos programas de televisão de maior audiência de seu país. Desde então, a USADA dedicou-se a reunir as evidências que finalmente colocaram Lance no banco dos réus.

A denúncia foi também um tiro no pé, já que o Comitê Olímpico Internacional logo se manifestou para anular a medalha de ouro que Tyler havia conquistado em Atenas, em 2004. Para a UCI, ele também não passa de mais um atleta desprezível, que depois de meter a boca no ciclismo aproveitou os holofotes para lançar seu livro The Secrety Race (A Corrida Secreta, sem tradução para o português), em que traça o perfil detalhado de um Lance Armstrong impostor e sem ética.

Ao contrário de Lance e Tyler, no entanto, a UCI ainda tem tempo de provar sua inocência. Na batalha para tornar o ciclismo transparente, o órgão criou uma linha telefônica confidencial para os próprios atletas fazerem suas denúncias anônimas. “Temos que estimulá-los a exporem seus problemas e outras questões relacionadas ao doping”, disse Pat McQuaid em entrevista coletiva durante a apresentação oficial do “disk-doping”.

Para o médico gaúcho Eduardo de Rose, membro-fundador da Wada (Agência Mundial Antidoping) que acompanhou cada parágrafo da investigação da USADA, o momento nunca foi tão propício para a tão necessária renovação. “Não conheço na história dos esportes um caso de doping tão marcante quanto o de Lance”, disse. “Mas não acho que a queda desse ídolo seja um tombo, e sim um plus para o ciclismo”, completou esperançoso.


O USO DE SUBSTÂNCIAS OU MÉTODOS ILEGAIS para melhorar a performance é um problema que persegue os esportes desde quando os atletas se viram na posição de adversários. No ciclismo, o primeiro caso foi registrado em 1896, durante a extinta Bordeaux–Paris. Naquela época não só era permitido, mas bastante comum, o uso de drogas como cocaína, cafeína, anfetamina e estricnina para “turbinar” as funções vitais.

Também era relativamente comum que sistemas respiratórios e cardíacos não suportassem o esforço excessivo, e ciclistas desabando inconscientes depois de irem além dos próprios limites passaram a fazer parte do esporte. O caso do francês Jean Malléjac é histórico. A estrada ficou estreita depois que ele zerou a subida ao Mont Ventoux, no Tour de France de 1955. Jean ziguezagueou alguns metros antes de cair suando, com um pé preso no pedal e a outra perna ainda pedalando no ar. O jornalista Pierre Chany, que cobriu 49 edições do Tour de France, relata no livro que narra a história dessa prova que Jean declarara na ambulância que fora obrigado a tomar drogas contra a própria vontade e que, por esse motivo, entraria com um processo na justiça alegando tentativa de homicídio. Mas o ciclista parece ter mudado de ideia e passou a negar qualquer procedimento anormal até sua morte, em 2000, aos 71 anos.

Jean não é o único nome que entrou para os primeiros capítulos da história do doping. O lendário Fausto Coppi, italiano que dominou as corridas de bicicletas nos anos 40 e 50, também revelou a um programa de televisão, ainda naquele tempo, que as “anfetaminas eram a única maneira de se manter competitivo nesse esporte”. Já o belga Eddy Merckx, outro mito incontestável do ciclismo, foi pego no teste antidoping no Giro d’Italia de 1969, mas sempre negou veementemente as acusações.

Mesmo com a criação da primeira lei antidoping, em 1964, na França, os métodos para melhorar artificialmente a condição física continuaram a se desenvolver e alastrar, chegando às pistas: em 1999, quinze anos depois de ter batido a hora-recorde, o italiano Francesco Moser assumiu ter apelado ao doping sanguíneo antes de entrar no velódromo. Naquele tempo, a prática de manipular o sangue do atleta para estimular o organismo a fabricar mais hemácias ainda não era proibida.

Ao fundar a WADA (a Agência Mundial Antidoping) em novembro de 1999, o Comitê Olímpico Internacional (COI) pretendia que os esportes – inclusive o ciclismo – entrassem no século 21 de cara limpa. Governos de todos os países assinaram um documento de aceitação e, hoje, mais de 100 federações esportivas internacionais são vinculadas à Agência. Mesmo assim, o doping movimenta hoje um crime organizado mais rentável do que o tráfico de entorpecentes, segundo a Interpol – Organização Internacional de Polícia Criminal, que desde 2006 trabalha em parceria com a WADA para combater o comércio de “drogas de performance”. “É que, exceto em alguns países como os da Escandinávia e a França, as punições para quem se dopa são brandas”, explica De Rose.


EX-AMIGO: Tyler Hamilton, que acusou Lance de doping

Até hoje, as maneiras de burlar os exames mantiveram-se à frente dos mecanismos de detecção. Lance passou batido nas 218 vezes em que foi testado pela UCI. O norte-americano Floyd Landis, outro ciclista envolvido nas acusações contra Lance, escapou de 46 testes até ter seu título do Tour de France 2006 cassado: um exame antidoping feito no 17º estágio da prova deu positivo quanto à presença de um tipo de testosterona sintética. Calhou que, naquela etapa, Floyd havia protagonizado uma escapada heroica em que abriu sete minutos de seus adversários.

“Tecnologias de controle de sangue, capazes de identificar o uso de hormônios como a eritropoietina (EPO) e de artimanhas que aumentam a capacidade aeróbica do atleta, desenvolveram-se apenas nos últimos quatro anos”, explica De Rose. “Lance provavelmente aproveitava as lacunas do controle de doping para fazer manipulação de sangue e, antes de um exame, aplicava soro fisiológico para normalizar as taxas sanguíneas.”

Além de conseguir desenvolver testes cada vez mais precisos de detecção, a WADA tem outro desafio: convencer governos federais a fazerem ajustes em suas leis para facilitar o controle dos atletas. As leis federais de cada país são basicamente voltadas à proteção da saúde, o que às vezes atravanca procedimentos antidoping, como a entrada e saída de amostras de sangue e urina.

Os testes laboratoriais, no entanto, não são a única forma de caracterizar o doping. “Portar uma substância anabólica no bolso já é considerado doping”, explica Eduardo. Depoimentos de partes envolvidas em uma acusação também podem acelerar o julgamento do atleta. A cláusula está presente no Código Mundial Antidoping (instituído em 2004 pela WADA e assinado por confederações mundiais) e, de fato, ajudou a encurralar o maior ganhador de títulos da história do Tour de France.

Ainda segundo o Código Mundial Antidoping, os títulos de um atleta podem ser suspensos até oito anos após ele ter conquistado o último. Contando a partir do Tour de 2005, Lance ainda teria um ano para ser investigado, por isso a USADA acelerou a perseguição. A justiça tardou, mas não falhou.


NA FOGUEIRA: Este boneco do Lance de nove metros, feito pelo artista britânico Frank
Shepherd, foi queimado no evento Bonfire Night, na Inglaterra, em outubro deste ano


O BRASIL ESTAVA ATRASADO NO ASSUNTO até outubro, quando começou a funcionar no país a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD). Já que seremos a próxima sede olímpica, a WADA pressionou o país para criar uma entidade independente e acima das federações nacionais. Além de ser uma garantia da integridade dos exames, o órgão vai centralizar os dados sanguíneos de atletas de todas as modalidades.

Para José Luiz Vasconcellos, presidente da Confederação Brasileira de Ciclismo, a ABCD vai ajudar a controlar o uso de substâncias proibidas no ciclismo nacional, que há menos de dois anos viveu seu maior drama no assunto: oito ciclistas foram pegos em exames antidoping. Para piorar a situação, a CBC foi acusada de acobertar os casos. Recentemente, o doping custou a demissão do técnico da seleção de ciclismo de estrada, Antonio Carlos Silvestre. De acordo com a CBC, o afastamento foi em razão de uma declaração de Antonio insinuando que ciclistas brasileiros se dopam em competições nacionais.

Assim como a UCI, o presidente da CBC também acredita que o ciclismo brasileiro pode voltar a ser visto como uma competição honesta. “O esporte está no caminho, cresce um pouco a cada ano e vai estar bem melhor, em todos os sentidos, em 2016”, disse, esperançoso.

Outros líderes do ciclismo mundial, como o diretor do Tour de France, Christian Prudhomme, acreditam que o ciclismo profissional pode começar uma nova história, mas para isso precisa levar à risca nos próximos anos a política da “tolerância zero”. “A única maneira de acabarmos com a cultura do doping é aplicando regras drásticas”, disse Christian durante a apresentação do Movement for Credible Cycling (MPCC), no mês passado. Idealizado pelos organizadores das maiores voltas ciclísticas em atividade em parceria com a WADA, o MPCC quer humanizar o ciclismo. A manifestação visa o bem das competições de bicicletas e será regida por um rigoroso código de conduta, já assinado por 11 equipes profissionais. Um dos tópicos obriga a demissão imediata de qualquer atleta pego pela malha antidoping.

É mais uma tentativa de o ciclismo ressuscitar seu espírito esportivo e incentivar futuros atletas a competirem limpos. O fato de Lance Armstrong ainda ser considerado “o cara” por 99,9% de seus fãs só reforça o quanto o ciclismo não inspira confiança. Comentários como “todos se dopam, a diferença é que Lance ganhou sete vezes o Tour” são comuns nos fóruns mundiais sobre ciclismo.

Exceto pelos fieis admiradores, ninguém passou a mão na cabeça do ciclista texano: menos de uma semana após a UCI assinar embaixo do relatório da USADA, Lance viu patrocinadores vitalícios darem tchau e terá que devolver os 3 milhões de euros que recebeu pelas vitórias no Tour. Segundo matéria publicada recentemente pela revista Forbes, o ex-heptacampeão do Tour de France deixará de ganhar em torno de US$ 15 milhões por ano.

A cifra vinha do apoio de marcas como Nike, Oakley e Trek e das aparições públicas em que contava sua história de superação – Lance cobrava US$ 200 mil para dar uma palestra sobre como venceu, além das sete edições do Tour, um câncer em estado avançado. Alguns ex-patrocinadores também pretendem reaver a grana paga a ele como bônus por vitórias e títulos. Até o jornal londrino The Sunday Times anunciou que tomará medidas legais contra Lance. O ciclista havia processado o periódico em razão de uma matéria publicada em 2004. Na época, Lance recebeu uma bolada para compensar a falta de provas do jornal que o acusava de doping.

O ciclismo profissional também sofreu grandes perdas financeiras com a derrocada de Lance. Após o escândalo, o banco holandês Rabobank anunciou o fim da equipe profissional que custeava há 17 anos. “É com dor no coração que tomamos esta decisão inevitável”, disse o diretor financeiro, Bert Bruggink. “Mas nós não estamos convencidos de que esse esporte possa se tornar limpo e honesto.”

O Tour de France, o evento de maior audiência do ciclismo, já comunicou que não haverá novos campeões para cobrir os sete anos, entre 1999 e 2005, da era Lance – alguns vice-campeões também já deram positivo em testes antidoping. Em 2013, para que a 100ª edição do Tour seja lembrada como o início da libertação do passado manchado, a grande batalha será contra o doping.


(Reportagem
publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2012)