A saga de um trio de amigos que pedalou 1.343 quilômetros na Transamazônica – “rodovia” que rasga a maior floresta tropical do planeta – contada aqui em primeira mão por um dos aventureiros ciclistas Por Daniel Santini
Fotos Marcelo Assumpção
“A IDEIA VEIO DE REPENTE: que tal percorrer todo o sul do Amazonas pela rodovia Transamazônica, a BR-230, de bicicleta? Este é o trecho mais precário da estrada e, não por acaso, o escolhido para nossa expedição. Entre as cidades de Lábrea (AM), de onde partimos, até Itaituba (PA), nosso ponto de chegada, a rodovia não foi até hoje asfaltada, e o terreno oscila entre argila dura salpicada por pedras escorregadias e areiões nos quais a bicicleta só faz afundar. Diversão pura para quem gosta de pedalar em terrenos difíceis, como nós. A rota, construída na época da ditadura militar na década de 1970, ávida por mostrar um Brasil em franco progresso, rasga na horizontal a Amazônia, a maior floresta tropical do planeta.
Viajamos em três – eu, Daniel Santini, repórter e autor deste texto, o fotógrafo Marcelo Assumpção e o ilustrador Valdinei Calvento –, unidos pelo interesse em aprender mais sobre a região e em ver de perto os resultados e impactos da abertura da estrada 40 anos depois de sua inauguração oficial. Em um momento em que as grandes obras se multiplicam na Amazônia, incluindo hidroelétricas polêmicas e canteiros com milhares de trabalhadores alterando completamente a rotina de pequenas cidades, decidimos conferir os resultados do primeiro megaprojeto de engenharia naquela floresta. Seguimos de avião até Lábrea, cidade em que a construção foi interrompida ainda na década de 1970, e de lá avançamos pedalando até o Pará.
De saída, já deu para ter uma noção de como seria nossa rotina nas semanas seguintes. Primeiro problema: o calor, que torna impossível pedalar entre 11h e 14h. Ou entre 10h e 15h, nos dias mais quentes. Depois, as nuvens de poeira que sobem toda vez que uma picape ou um caminhão passam. E, por último, os insetos. Muitos, de todas as formas, tipos e tamanhos – uma colorida orquestra de zumbidos com amplo repertório de picadas e ferroadas que exige atenção constante. O repelente afasta os mosquitos, inclusive os da malária, endêmica em muitas das áreas que atravessamos, mas não as abelhas e borboletas, sempre presentes. A cada parada para descansar, tínhamos que nos acostumar com dezenas (dezenas mesmo!) delas pousando nos braços, nas roupas, no cabelo, doidas por gotinhas de suor com umidade e sais minerais. E a gente suou, mas suou mesmo. Cada um perdeu pelo menos cinco quilos ao longo dos 1.343 quilômetros percorridos de 28 de julho a 1º de setembro de 2012.
DE BICICLETA, TALVEZ SEJA MAIS DIFÍCIL VIAJAR, principalmente em uma região tão quente e com terreno tão irregular. Mas sem ela não teríamos tido tantas oportunidades de conhecer pessoas e aprender sobre os costumes locais. Bicicleta abre portas. Seja nas aldeias, repletas de crianças que nos abordavam correndo e querendo brincar, seja nos vilarejos, nos quais a gente mal tirava o chapéu e as luvas e os mais velhos já vinham perguntar de onde vínhamos e para onde iríamos. A curiosidade quase sempre era acompanhada de hospitalidade. “Podemos lavar o rosto?” “Não, vocês vão é tomar banho.” “Venham comer, a gente fez bastante comida, sobrou macarrão e arroz.” “Querem um pouco de água gelada?” Esse cuidado e preocupação nos deu um conforto maior do que se tivéssemos feito o mesmo trajeto em motos ou jipe, nos hospedando em hotéis com banho de água quente e camas macias.
Acolhidos por ribeirinhos, índios, garimpeiros e peões das fazendas de gado que dominam a paisagem, dormimos em redes durante todo o percurso. Nos trechos mais isolados, a opção foi armar acampamento na mata mesmo. Sempre, além da rede, utilizamos mosquiteiro, proteção que garantiu que não tivéssemos nenhuma surpresa com aranhas, escorpiões, formigas cortadeiras e outras criaturas. Aliás, para quem viaja utilizando a energia do próprio corpo, pedalando, caminhando ou remando, um conselho amigo: vale mais a pena levar rede, mosquiteiro e toldo do que qualquer barraca de camping. O toldo é especialmente útil para evitar o sereno. Em nossa expedição, levamos também sacos de dormir, fundamentais para manter a temperatura do corpo durante a madrugada, já que a Amazônia pode ser bastante fria à noite.
Tivemos apenas uma dificuldade com as redes. Bem no meio do caminho, nas cercanias de Apuí, município marcado pelo desmatamento, pela presença de madeireiras e carvoarias e pelas queimadas, atravessamos trechos de mais de 50 quilômetros sem encontrar sequer uma árvore para servir de apoio. Impossível armar acampamento. Fomos obrigados a continuar pedalando até encontrar o barraco de um peão que havia acabado de queimar o pasto e nos ofereceu pouso. Adormecemos cercados de carvão e cinzas, com um ar pesado. A devastação é tamanha que por centenas de quilômetros onde antes havia floresta hoje só se encontra pasto. São sequências intermináveis de campos com bois e vacas magros, quase abandonados, tentando resistir ao calor. A pecuária extensiva, voltada para o abastecimento de grandes frigoríficos e para a exportação, ocupa as áreas desmatadas.
A Transamazônica é o caminho para a destruição, uma destruição que é, por vezes, bastante violenta. Encontramos pequenos agricultores ameaçados de morte por denunciar grileiros e madeireiros, em um contexto no qual faltam instituições e funcionários públicos para garantir condições mínimas de fiscalização e controle. A ausência do Estado só agrava a situação. A Polícia Federal, por exemplo, só tem bases em Porto Velho, Manaus e Santarém; não há nenhuma nos precários 1.343 quilômetros que percorremos.
As dificuldades de comunicação e trânsito também não ajudam. Às vezes é difícil ir de um município a outro mesmo de carro. Encontramos no caminho balsas e pontes quebradas, que nos forçaram a equilibrar as bicicletas em canoas e atravessar rios com auxílio dos ribeirinhos. Fomos parados em um bloqueio de índios e fazendeiros locais exigindo energia elétrica entre Humaitá e Apuí. O protesto já durava mais de dez dias e havia provocado uma fila interminável de caminhões, e apenas conseguimos convencer os manifestantes a permitir nosso avanço por estarmos pedalando. Naquele dia, ficamos com a estrada só para gente, livres dos motoristas alucinados que se aproveitam da ausência total de fiscalização para pisar no acelerador sem nenhum cuidado, deixando um rastro de animais silvestres atropelados – chegamos a cruzar com um macaquinho ainda quente depois de ter tido a cabeça esmagada no meio da pista.
O trecho mais difícil foi o de 449 quilômetros entre Jacareacanga e Itaituba, recheado de subidas impossíveis de se imaginar nessa região. Que ninguém se engane achando que a Amazônia é uma grande planície. Foram tantas e tão difíceis as pirambeiras que, de uma média de uns 80 quilômetros por dia, caímos para uns 40 quilômetros nesse trecho.
Felizmente aprendemos a sobreviver às condições adversas conversando com as pessoas. Foi um motoqueiro local quem nos ensinou, por exemplo, a esfregar velas na corrente da bicicleta em vez de usar óleo. A parafina lubrifica sem lambuzar os elos e, assim, a poeira constante não gruda. Dicas simples, mas que foram essenciais para prosseguirmos. Viajar assim é também fazer uma jornada de autoconhecimento e de expansão dos limites. Saber suportar situações extremas para conseguir chegar a uma sombra e, só então, parar. Aprender a manter a calma mesmo quando a água acaba e não há nenhum igarapé por perto – ou apenas igarapés poluídos por garimpos clandestinos. Dar valor para o mel silvestre comprado na última cidade, para o caju amarelo gordo e maduro na beira da estrada, para o abacaxi doce oferecido por uma moradora das margens da estrada.
Para mais informações e imagens sobre a expedição, acesse cicloamazonia.org
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2012)
EQUIPE UNIDA: O jornalista Daniel (esq.), o fotógrafo Marcelo (centro) e o ilustrador Valdinei,
com suas bikes e todo o equipamento que levaram na viagem
REGISTRO: Cenas da expedição
SÓ O PÓ: Daniel no começo de mais um dia de pedal, cercado pela secura e poeira típicas
de quando a mata é derrubada; abaixo o jornalista observa uma queimada próxima de Apuí