Na primavera, as modestas montanhas da península de Troll, na Islândia, acolhem flocos de neve perfeitos, luz do sol até as 22h e descidas íngremes e raramente desbravadas que escondem um dos melhores picos de esqui no mundo Por Nick Paumgarten
OS CAVALOS NA ISLÂNDIA são notoriamente pequenos, mas se você chamá-los de pôneis levará uma bronca ou escutará a impublicável tradução da frase truntupussustrimlar. Apesar do tamanho diminuto, eles podem percorrer vastas distâncias em tölt (uma marcha rápida, em islandês) ou em flugskeio (um “passo voador” ou galope). O mesmo acontece com as montanhas locais: elas podem parecer pequenas, mas ninguém que já tenha feito um trekking ou esquiado na região se arriscaria a chamá-las de colinas. O terreno alpino islandês é ilimitado e completo, quer você o explore em flugskeio, quer em tölt. No noroeste do país, a mais de cinco horas de carro da capital, Reykjavík, está um trecho de terra em formato de pata chamado península de Troll. Diz a lenda que o último ogro islandês foi morto em uma caverna lá, em 1764, por um fazendeiro furioso porque ele teria roubado e comido sua vaca. O pico mais alto dessa península está a apenas 1.500 metros do nível do mar, mas tem o oceano a seus pés, e até mesmo em maio se pode descer esquiando até a costa. A umidade proveniente do mar e os invernos longos e escuros (o Círculo Polar Ártico fica a apenas alguns quilômetros ao norte) resultam em neve em boa quantidade e qualidade durante toda a primavera. Ocasionalmente se pode encontrar neve fofa, mas em abril e maio – a alta temporada da estação de esqui de Troll – é mais comum que se ache neve em grãos do tipo raro que aguenta o dia inteiro enquanto você segue o alto e extenso arco percorrido pelo sol. Em maio, alguns raios de luz do crepúsculo persistem até a meia-noite, o que significa que você pode partir para a montanha na hora do happy hour. “Ok, garotos, é hora de se vestir”, diz nosso guia, Fridjon (pronuncia-se Frion), na primeira tarde por lá. Tínhamos chegado uma hora antes, depois de uma longa viagem de carro pela árida costa oeste da Islândia, onde vimos mais radares de velocidade do que árvores. Meu irmão e eu estávamos sentados do lado de fora debaixo do sol, familiarizando-nos com algumas latas de Viking Lager (a famosa cerveja local). “Agora? Já são cinco da tarde”, questiona meu irmão. “O sol está brilhando”, diz Fridjon. “Talvez você nunca veja isso de novo.” Deixamos de lado as cervejas e calçamos nossas botas de esqui. Depois de alguns minutos, um helicóptero já tinha depositado meu irmão, dois amigos e eu em cima de um pico chamado Horse. De um lado, o vale sem neve de onde tínhamos acabado de vir e, do outro, o fiorde da face norte. De lá dá para sentir o cheiro da maresia. Fridjon diz algo em inglês que eu não entendo e parte, saltando por cima de uma cornija. Depois ataca 600 metros de descida praticamente vertical sem parar ou olhar para trás. Suas curvas eram sincopadas e despretensiosas – casuais até.
Nós quatro nos espalhamos pelo paredão nevado, cada um escolhendo uma variação pessoal da linha de descida. Isso era muito melhor do que cerveja. Nos 90 minutos seguintes, nós barbarizamos seis descidas, subindo e baixando como um ioiô pela encosta vertical em direção à cidade costeira de Dalvik e ao mar da Groenlândia. Os flocos de neve vieram em muitas variedades, alguns congelados e secos como croutons e outros cremosos como iogurte. A luz âmbar e angulosa do sol quase não diminui, é como se o dia estivesse aprisionado. E continuou daquela maneira até bem mais tarde, quando voltamos a nos juntar às nossas Vikings e começamos a ter uma ideia de onde tínhamos nos metido.
ESTÁVAMOS SOB OS CUIDADOS de Jökull Bergmann, nativo de Troll e único guia de montanha islandês com certificação internacional. Jökull foi o pioneiro do esqui na península. O primeiro não-islandês que ele levou para esquiar lá, em 2000, foi um amigo íntimo e de longa data da minha família, um greco-suíço fanático por esqui que meu irmão e eu chamamos de Frog. Ao longo dos anos, Jökull e Frog passaram muitas semanas esquiando os picos que rodeiam a antiga sede da fazenda da família de Jökull, em um remoto vale chamado Skidadalur. Frog gosta de fazer pequenos filmes de suas viagens e seus vídeos da Islândia, que chegavam a nossas caixas-de-entrada no final da primavera, se transformaram em uma constante provocação. Desta vez, Frog nos convidou e organizou um grupo de oito – incluindo meu pai, irmão, um guia de montanha suíço e outros três colegas dos Estados Unidos – para experimentar o novo roteiro de Jökull: heli-esqui no Ártico. A família de Jökull tem trabalhado com pecuária no vale desde que seus antepassados chegaram lá, vindos da Noruega, no ano 850. Isso mesmo, 850 (os islandeses são capazes de traçar suas linhas ancestrais graças às Sagas, histórias das famílias nórdicas escritas nos séculos 13 e 14, e aos seus inigualáveis e superpreservados arquivos genealógicos). Quando Jökull nasceu, em 1976, a fazenda pertencia a seus avós maternos. A mãe tinha 19 anos, o pai havia sido um caso passageiro que ela nunca mais viu. Quando garoto, Jökull passou muito tempo com seu avô Hermann, um criador de ovelhas e apaixonado por natureza que ensinou ao menino os nomes das flores e pedras da região e fez longas caminhadas com o neto pela parte mais alta da região, da qual os fazendeiros do vale haviam mantido distância devido aos caprichos do tempo e dos ogros.
Seu avô faleceu na noite de Ano Novo de 2001. Depois do funeral, Jökull foi escalar em gelo em uma cachoeira perto da fazenda e acabou sendo pego por uma avalanche e arremessado para um penhasco. Depois de rolar 600 metros montanha abaixo, ele quebrou três vértebras perto do pescoço e outros treze ossos. Ficou três meses de cama, sendo atendido pela mesma enfermeira que havia cuidado de seu avô na casa de repouso, uma mulher chamada Sunna. Jökull e Sunna se apaixonaram, tiveram um filho e se mudaram para British Columbia, no Canadá, onde nos anos seguintes Jökull terminou seu treinamento e trabalhou como guia de heli-esqui perto de Revelstoke. Toda primavera ele voltava à Islândia para guiar travessias de esqui pela península de Troll. Pouco depois, Jökull e sua mãe conseguiram comprar a fazenda de volta. Em 2008, ele e Sunna retornaram à Islândia, ele arranjou um helicóptero e abriu um negócio próprio. Agora era possível explorar as montanhas islandesas em flugskeio. À MEDIDA QUE A PRIMAVERA chega, as encostas das montanhas do Skidadalur começam a parecer o teclado de um piano: tiras verticais de pedra vulcânica negra separam valetas nevadas a intervalos regulares. O semicírculo de montanhas lembra o interior de uma antiga Olivetti, com desguarnecidas cristas se espalhando como as hastes metálicas das letras de uma máquina de escrever. A paisagem era um alfabeto de ladeiras pedregosas entre brancas valetas nevadas. Quando chegamos ao vale, havia um pouco menos de neve – aquele tinha sido um inverno excepcionalmente seco, mas mesmo assim ali ainda parecia ser o melhor lugar do mundo para esquiar durante a primavera. A sede da fazenda é a última construção ao longo da estrada. Está rodeada por dois amassados estábulos de metal, uma pequena cabana de madeira (onde fica a sauna e uma sala de massagem) e uma frota de excêntricos veículos: um Citroën ano 1990, um Lada 1968, uma van Econoline com pneus gigantes e, claro, o helicóptero – um negro AStar que Jökull arrenda dois meses por ano (os dois pilotos que trabalhavam com ele enquanto estivemos lá tinham nomes ao estilo dos sete anões – Snorri e Sigi – e voavam uma vez a cada dois dias). Na sede da fazenda podem dormir confortavelmente 19 pessoas. A decoração é rústica e limpa. A mãe de Jökull, Anna, e seu companheiro, Öddi, mantêm a casa. No café da manhã e no jantar todos se reúnem ao redor de uma grande mesa de madeira na cozinha, onde Sonja Eyglóardóttir, a chef, se vira para preparar três excepcionais refeições por dia para 19 pessoas usando apenas um fogão de seis bocas e um forno. Os bolos, tortas e biscoitos são sempre caseiros, e ela usa majoritariamente ingredientes locais. Quando pergunto onde ela aprendeu a cozinhar, ela responde: “Não aprendi, sou designer gráfica”. Pode ser verdade, mas nunca provei melhor sopa de lagópode-branco (uma ave típica de lá, que o próprio Jökull caça), ovas de peixe-lapa, sushi de baleia e vinho caseiro de dente-de-leão. Sonja segura a onda em meio à uma casa sempre repleta de homens corpulentos e famintos. Nosso grupo era barulhento, propenso à discussão, e um dia Sonja comentou: “É como se cada um de vocês tivesse engolido um rádio”. Jökull, aos 35 anos, possui um jeito magricela e desengonçado de marionete. Tem cabelo comprido, loiro e enrolado, e olhos sonolentos que se movem com uma combinação islandesa de humor seco e extrema contenção. Ele costuma levar um guardanapo na mão para secar o nariz, e é um usuário regular de tabaco em pó. Parece que o helicóptero o incomoda um pouco, mas ele diz que ama a logística do seu negócio e que, diferentemente do que acontece em outras partes do mundo onde os helicópteros não são bem vistos, os nativos da Islândia o adoram, e chegam a pedir que suas hélices alvorocem seus lares. Jökull prefere o esqui de travessia, mas ele viu como a chegada das operadoras de heli-esqui no leste da costa da Groenlândia acabou com o negócios das pequenas empresas locais. “Aqui, era uma questão de tempo”, disse ele. “Eu estava construindo um negócio de esqui de travessia, mas sabia que ele seria arruinado. Sendo o primeiro com um helicóptero, eu pelo menos posso controlar como essa atividade vai evoluir na Islândia.”
NA SEGUNDA MANHÃ, acariciamos as teclas do piano do Almenningsfjall, pegando uma canaleta escarpada atrás da outra. Algumas são como ampulhetas que se estreitavam inclinadas para dentro em ângulos de 45 graus, demandando muito cuidado. Outras são mais largas e brandas, nas quais se pode ganhar mais velocidade na saída. Todas desembocam no gigante salão do glaciar. Depois exploramos o outro lado, onde os flocos de neve ainda estão macios, e terminamos em uma ladeira amarelada que definhava até um prado cheio de árvores musguentas ao lado de um riacho. Espalhamo-nos pelo solo esponjoso e devoramos os sanduíches de cordeiro assado de Sonja aproveitando o sol do ártico. Depois embarcamos de volta em direção ao oeste, cruzando a cordilheira de vale em vale, até o outro lado da península. O acúmulo de descidas e curvas, a chegada de algumas nuvens e a luz constante induziam a uma espécie de delírio. No dia seguinte, com chuva e neblina dominando o horizonte, caminhamos até algumas cachoeiras e fomos de caminhão a Dalvik para um banho nas termas públicas da cidade e para assistir a um jogo de futebol num bar local (outros passeios pelos arredores de Troll incluem Siglufjördur, a antiga capital mundial do arenque, e salto de esqui em Ólafsfjördur). Uma tarde optamos por andar até uma fazenda vizinha para espiar alguns cordeiros recém-nascidos. Duas meninas da lá, com tranças no cabelo, olhavam-nos com espanto enquanto os rádios que havíamos engolido transmitiam argumentos sobre a diferença entre a carne de carneiro e a de cordeiro.
Outra manhã de garoa chegou, com uma espessa neblina. Não nos deixamos abater e, quando vimos, já estávamos com nosso equipamento de esqui, indo para o vale nos carros bizarros da frota da fazenda. O céu clareou. Da vizinha cidade de Dalvik, o helicóptero nos levou por fiordes até os picos que Jökull chama de “Costa Dourada”, atrás dos quais ficam os áridos campos de neve e os borbulhantes riachos da Terra Escondida. Passamos a primeira parte da manhã esquiando em direção ao interior, meio que esperando nos surpreender com algum hobbit pela trilha, e depois nos desviamos em direção à costa. O desafio, antes do almoço, era um drop por cima de uma corcova e para dentro do fiorde, com o reflexo do oceano tremeluzindo na ponta dos nossos esquis e grãos de neve congelada tilintando ao nosso lado como diamantes. Enquanto fazíamos curvas pelo paredão nevado, parecia que estávamos mergulhando no mar. Sem querer eu examinava atentamente a superfície da água em busca de baleias. Terminamos em uma escarpa cheia de musgo na beira de um penhasco, encarando do outro lado da água a península de Troll e murmurando elogios. “Cavalheiros, vocês ainda querem mais esqui?”, Jökull pergunta no final. “Acho que vocês não vão querer ir para lá”, completa.
Mas nós fomos. Quatro horas depois ainda estávamos na Terra Escondida, dropando por cima de colunas para dentro de canaletas e cumbucas naturais que se afunilavam até baías e praias desertas. Um amigo, o guia de montanha suíço Norbi Julen, estava impressionado não apenas pela ausência de fendas e riscos de avalanche, mas também com a forma com que a neve fica preservada durante toda a tarde, apesar do sol – ao contrário do que acontece nos Alpes, onde a incidência direta da luz solar transforma gelo em papa em apenas uma hora. “Gostaria de ser guia aqui”, diz. Ser convidado também não era nada mal. Uma viagem de quatro dias e meio nos rendeu o equivalente a três dias de esqui – um aproveitamento mais que respeitável. Em nosso último dia, ficamos mais perto da fazenda e outra vez fomos surpreendidos por Jökull. “Querem uma aventura?”, perguntou. Aterrissamos no topo de uma serra em formato de mesa chamada Stafnstungnafjall e fomos em direção a um estreito corredor com uma cornija que se abria, 550 metros abaixo, em um campo de pedregulhos de gelo. Descemos um de cada vez, não muito coordenados. “Esta foi a primeira vez que alguém desceu este corredor”, Jökull anunciou quando terminamos. “O que vocês acham do nome Paumgarten Couloir?” (Paumgarten é o sobrenome de minha família.) Não muito entusiasmados. Felizmente Snorri, observando-nos do ar, já tinha lhe dado outro nome: o de uma despudorada, mas agora desprezada, ex-mulher. Depois de algumas descidas, uma espessa neblina baixou e Snorri penetrou por ela para nos pegar. Nós entramos, cautelosamente. O helicóptero, a poucos metros do chão, avançou lentamente ao longo do curso de um rio com fluxo de água torrencial, a neblina escorrendo pelo para-brisa. Nós estávamos felizes. À medida que o pedregoso solo vulcânico e sem neve passava debaixo do helicóptero, a gente se dava conta de que aquela caminhada teria sido muito longa, mesmo em um tölt.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2012)
UM LUXO: Helicóptero deixa esquiador no topo do monte Hestur
DEMAIS: Esquiador experimenta a neve perfeita próxima à cidade de Dalvik
Quando Jökull tinha 16 anos, passou um verão escalando em Chamonix, na França, e nas Dolomitas, na Itália. Foi seu primeiro encontro com verdadeiros guias de montanha. Ele viu aqueles homens alpinos, de aspecto desgastado e duro, com seus distintivos oficiais e decidiu que queria ser um deles. Poucos anos depois, retornou a Chamonix para começar o longo e árduo processo de certificação, mas voltou à Islândia depois da morte de sua avó, em 1999, para ficar com seu avô, que estava vivendo em uma casa de repouso (o tio de Jökull tinha perdido a fazenda para o banco). Jökull tirou seu avô da casa de repouso e este levou o neto e seu amigo Frog em um pequeno barco a motor até o outro lado do fiorde para uma travessia de esqui, em uma cordilheira isolada chamada Terra Escondida. Jökull também levou Frog para ver a sede vazia da fazenda, e prometeu que algum dia a conseguiria de volta e a transformaria em uma pousada.
ÁGUA NA BOCA: As pistas naturais de esqui da península de Troll
SONHO MEU: Rolê pelo vale do Skidadalur