A ONG norte-americana 88 Bikes distribui bicicletas para jovens carentes, provando o quanto a magrela pode transformar o mundo para melhor
Por Mariana Mesquita
NO MEIO DO TRÂNSITO CAÓTICO DA ÍNDIA, em que carros caindo aos pedaços lutam para atravessar ruas de asfalto completamente destruído, uma jovem disputa espaço com pedestres, vacas e riquixás. O veículo que a transporta é bem diferente dos típicos triciclos que funcionam como táxi em muitos países da Ásia, mas se mostra valente na hora de enfrentar um dos tráfegos mais desorganizados do mundo. Em cima de sua bicicleta, Asha [nome fictício que, em hindi, significa “esperança”] é testemunha e prova das bem-vindas mudanças que a organização não-governamental 88 Bikes vem imprimindo desde 2010 em uma nação marcada pela pobreza extrema.
Criada em 2007, a ONG tem conquistado pontos para lá de positivos com um projeto à primeira vista simples, porém de impacto profundo: com a ajuda financeira de voluntários, a 88 Bikes doa magrelas para crianças e adolescentes órfãos ou que sofreram algum tipo de violência. Desde que foi fundada pelos irmãos norte-americanos Dan e Jared Austin, a organização já distribuiu mais de três mil bicicletas para jovens de vários países. Parece pouco, mas não é.
Veja, por exemplo, o caso de Asha. Nascida há 18 anos, ela sonha em ser cabeleireira. Em 2010, a jovem foi vendida como escrava sexual para um vizinho da comunidade onde vivia com sua família. Por sorte, conseguiu fugir da emboscada e, no meio do caminho, encontrou um centro de reintegração social chamado Free the Slaves. Naquele mesmo ano, chegou ao país a 88 Bikes. “Quando recebi minha bike e pedalei pelas ruas da Índia, algo mudou dentro de mim. Hoje eu me sinto mais confiante para encarar os homens de igual para igual”, diz Asha, que recentemente voltou a morar no vilarejo de sua família.
São histórias como essa que vem provando aos fundadores da ONG o quanto iniciativas que envolvem bicicletas são poderosas. Diferente de muitas organizações que dão objetos a pessoas em necessidade, a 88 Bikes mostra direitinho ao doador a trajetória de sua magrela, bem como o impacto causado na vida de quem a recebe do outro lado do mundo. “Além de explicar ao doador para onde vai seu ‘investimento’, nós queremos que a criança entenda que existe um ser humano em outro continente que se importa com ela”, explica Dan. Com isso, junto com a magrela eles entregam também um cartão personalizado com a foto do doador e, no verso, a localização no mapa-múndi dele e da criança. Dan registra uma foto do jovem segurando o cartão ao lado da bike. Depois de impressa, a imagem segue para o doador como lembrança de sua boa ação. “Nossa missão vai muito além de presentear crianças. A bicicleta é apenas uma ‘isca’, uma forma de integração social e, principalmente, de felicidade”, diz ele.
Em 2012, a organização se lançou em um novo desafio, batizado de Asha, em homenagem à garota indiana. O objetivo é conseguir comprar milhares de magrelas e distribuí-las, exclusivamente para meninas, pela Europa Ocidental, África Oriental, América Latina e Sudeste Asiático.
A RELAÇÃO DOS IRMÃOS AUSTIN com a bike é antiga. Em 1999, concluíram um longo pedal pelos Estados Unidos. Dan cruzou o país da costa oeste a leste com dois objetivos em mente: produzir um filme que narrasse a trajetória da expedição, além de um livro. Ambos os projetos foram concluídos e batizados de True Fans [Fãs Verdadeiros]. “Essa foi a primeira grande viagem que fizemos. Revelou-se muito transformadora. Posso dizer que a bicicleta me mudou completamente”, conta Dan.
Entre outras tantas descobertas com a magrela, foi pedalando pelas ruas do Camboja, no Sudeste Asiático, que os irmãos deram início à 88 Bikes, cinco anos atrás. Depois de dissecar os picos e curiosidades do país, que nos anos de 1970 teve milhares de habitantes assassinados pelos comunistas bizarros do grupo Khmer Rouge, Dan e Jared decidiram doar suas bikes para duas crianças de um orfanato local. “Foi impagável ver a felicidade daqueles dois meninos. Mas, por outro lado, foi triste aceitar que outras 86 crianças não ganharam o presente. Arrecadamos dinheiro e voltamos lá para presentear todas as 88 crianças do local. Foi assim que começamos o projeto”, explica Dan.
Baseada em Nova York, a organização sobrevive de doações de pessoas físicas e do apoio de algumas empresas, universidades e ONGs. Além de doações para a compra de bicicletas, que custam cerca de US$ 88 e podem ser feitas pelo site oficial do projeto (88bikes.org), a organização promove a manutenção das magrelas já distribuídas – o custo, nesse caso, é de US$ 44. “Outra forma de ajuda é curtir nossa página no Facebook (facebook.com/88bikes) ou seguir nosso Twitter (twitter.com/88bikes)”, diz Dan. É possível também fazer parte do grupo de voluntários que lideram os projetos organizados pela 88 Bikes, que incluem workshops de arte e pintura, entre outras atividades. Para participar, é preciso enviar um e-mail para o site da organização.
Mesmo após quebrar inúmeras barreiras com o projeto, Dan e Jared continuam acalentando novos desafios. “Em 2012 queremos concluir um documentário sobre a 88 Bikes. Temos muito material destes cinco anos de trabalho e creio que ficará bem legal”, diz Dan. O norte-americano não hesita em dissecar uma questão importante: as bicicletas podem, afinal, mudar o mundo? “Eu escuto com frequência essa pergunta. As bikes, sozinhas, não podem mudar o mundo. Mas o sentimento de liberdade e de força que proporcionam pode, sim, transformar a realidade ao nosso redor”, diz.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2012)
CRIANÇA FELIZ: Meninas do Camboja passeiam com bike doada pela ONG
BEM LEGAL: Estande da 88 Bikes no Camboja; indiano faz manutenção na magrela;
cambojanos com as bicicletas doadas pelo projeto
OLHA O PASSARINHO: A garota Kate Krachi, de Gana, na África, posa para foto mostrando
seu mapa personalizado e a bicicleta nova; o "cartão-postal" foi entregue ao doador da bike