As coisas acontecem em nossas vidas de forma interessante. No ano passado, sofri uma lesão que levou 4 meses para curar. Desde então venho treinando de forma bem cautelosa (como não fazer corrida dois dias seguidos de forma alguma).
No entanto desde julho deste ano comecei a correr eventualmente em montanhas. Em um desses treinos, levei a câmera e tirei algumas fotos. Na última semana de agosto, meu amigo Airton Imamura postou um concurso da revista Go Outside que premiaria com uma inscrição para o Desafio das Serras a melhor foto de natureza enviada pelos leitores. Enviei uma foto minha correndo no pico dos Marins, mas sem grandes esperanças. Para minha surpresa, minha foto foi selecionada, e graças à ajuda dos amigos do Facebook e pessoas que desconheço a minha foto venceu. Foi tudo muito rápido, visto que o resultado saiu no dia 29 de agosto e a prova seria dia 1 de setembro! Chamei o meu amigo Ricardo Muniz para ser meu parceiro nessa prova, porém eu imaginei que a competição seria de revezamento — então deduzi que cada um de nós faria 40 quilômetros por dia, assim totalizando os 80 quilômetros. Decidida a distância, confirmei todos meus dados com a organização da prova e finalmente fiquei sabendo que se tratava de um evento de 80 quilômetros para ambos! Não havia mais volta, e fomos decididos a dar o máximo mesmo sem treinos longos suficientes. O desafio começou na sexta, pois não havia um ônibus com passagem direta para São José do Barreiro. Pegamos dois trechos, porém o segundo ônibus demorou muito. Saímos às 13 horas e chegamos à cidade por volta das 21 horas. Retiramos os kits e nesse momento tivemos a oportunidade de fazer uma rota curta. Jantamos uma pizza grande. A segunda parte do desafio era encontrar uma pousada, mas todas da cidade estavam l-o-t-a-d-a-s! Nesse momento eu decidi pegar o saco de dormir, isolante térmico e dormir na praça ao lado do pórtico da largada. Eu adoraria fazer aquilo, mas uma moça da cidade ofereceu uma casa para ficarmos e o plano kamikaze foi abortado. No sábado, fomos os primeiros a chegar à praça junto com a organização. Tomamos café e relaxamos assistindo aos preparos finais da prova, que em nossa opinião foi nota 10. Enfim o grande momento da largada chegou: aqueles segundos antes de correr pareciam eternidade. Como combinado, largamos de forma tranquila e pouco a pouco fomos ganhando nosso espaço entre os atletas mais lentos e os mais rápidos. A ideia era aquecer o corpo bem nos primeiros 3 quilômetros para chegar firme na montanha e atacá-la. Porém, antes disso, meu joelho começou a doer (bem leve) e milhares de pensamentos surgiram em minha mente. Como terminaria o desafio? Não poderia decepcionar o Ricardo, minha noiva, Luciana Aragão, e todas as pessoas que votaram na minha foto, nem a Go Outside. A tão esperada montanha surgiu em minha frente antes que eu pudesse encontrar uma solução para meu dilema psicológico. Neste momento eu lembrei uma citação do atleta maratonista Yuki Kawauchi "If I die at this race, it’s ok". Olhei para o céu, sorri e veio à tona meu amor por montanhas. Começamos a atacar sem parar, os medos e barreiras sumiram, a dor no joelho desapareceu, adotamos uma escalaminhada firme e forte, conhecemos a atleta Cilene Sophya (Núcleo Aventura), que nos acompanhou durante um tempo nas trilhas insanas da montanha. Eu e Ricardo seguimos sozinho até o cume e, quanto mais alto ficava, mais eu gritava "Woohoo", não me importava em economizar fôlego, eu queria sentir a montanha no ápice de minhas emoções. Já Ricardo me questionava se eu estava louco.
Antes do fim da descida rumo à base do Adventure Camp, paramos para comer uma barra de proteína, beber água e apreciar o visual, quando do nada apareceu Jimmy, o cão. Isso mesmo, um cachorro. Em seguida, seu parceiro, Felipe Vizioli, que inspiração!, quantas pessoas conseguem correr 40 quilômetros? Quem dirá em montanhas, pois bem ali estava o Jimmy fazendo o desafio de montanha. Ricardo deu um pouco de água e um pedaço de barra de proteína para ele, e logo em seguida saiu correndo livre e forte na natureza atrás do Felipe. A corrida permaneceu tranquila, adotamos um ritmo confortável. Passamos pela base, pegamos um isotônico e seguimos para completar o primeiro dia. Notei que estava em um ritmo um pouco mais acelerado, com a Carla Goulart e Cilene Sophya, mas quando olhei para trás Ricardo havia ficado distante. Decidi esperar. Ele apareceu cansado, mas firme. Adotamos um ritmo mais tranquilo, até que chegamos ao primeiro riacho, entramos de tênis e tudo. A água gelada estava uma maravilha para relaxar. Quando saímos para retornar a correr, o tênis estava muito pesado. Tentamos tirá-los e torcê-los a fim de retirar um pouco de água, mas foi em vão, continuamos assim mesmo.
Não demorou muito até que, de repente, escuto um berro de Ricardo. Olhei para trás e meu companheiro estava jogado no chão gritando de dor. Ele estava tendo a primeira cãimbra de sua vida! Alongamos e fomos caminhando até que aos poucos trotamos novamente. No final estávamos sem água e faltando 3 quilômetros para terminar. Eu estava quase desidratado, aquele momento foi bem difícil, saber administrar uma corrida sem água com a garganta seca pode ser fatal, até que surgiu uma dupla. Pedi um pouco de água, finalizamos o primeiro dia com 6hrs10min (de acordo com meu relógio) e ficamos em décimo primeiro lugar. Chegamos ao acampamento e fomos direto para o lago relaxar. Encontramos uma galera legal, conversamos e congelamos as pernas nas águas geladas, após 20 minutos fomos para ducha e tomar a tão cobiçada sopa de que todos comentavam.
A noite chegou e fomos para o churrasco. Foi uma confraternização sensacional, atletas, staffs, todo mundo conversando e se conhecendo. Eu e o Ricardo adquirimos boas experiências com dois atletas Ironman, Witney e Otávio, dupla essa que nos deu muita força também quando os cruzamos no percurso. Além da prova, da montanha, da curtição, o Adventure Camp e a Go Outside nos deram a possibilidade de criarmos novas amizades. Enfim a noite estava fria e o segundo dia seria impiedoso, portanto fomos dormir, pelo menos tentar. Eu consegui dormir algo em torno de 3hrs apenas, o Ricardo deve ter dormido algo em torno de 5hrs, mas acordamos bem recuperados! O segundo dia estava ali. Na largada, eu estava um pouco apreensivo, lembrando que não tenho o costume de correr dois dias seguidos, sempre intercalo várias atividades. Saímos num ritmo confortável novamente até esquentar bem a musculatura. Subimos o fabuloso morro do Tira Chapéu. Estava filmando o visual, quando olho para trás e vejo o Ricardo descendo alucinadamente. Vou atrás dele praticamente da mesma forma para alcançá-lo. Ele pediu desculpas e disse que não conseguiu controlar a emoção da descida. Compreendi, afinal sou da mesma forma, e o nome da dupla não era Desperate Team à toa. Fui guiando num ritmo confortável quando, de repente, escuto um grito. Olhei pra trás e não o vejo, apenas a natureza envolvendo todo o ambiente. Imaginei que seria uma cãimbra, mas logo em seguida o Ricardo disse "torci o pé". Fomos caminhando levemente para ver se a torção era grave ou se daria para continuar. Aos poucos ele foi relaxando até que voltou a trotar novamente. Em meus pensamentos eu sabia que se o corpo dele esfriasse a dor maior apareceria e seria o fim da prova para gente, mas não comentei nada e continuei a gerar pensamentos e palavras positivas afim de continuarmos firmes. Corremos apreciando toda a região, pegamos confiança na prova novamente. O alto astral reinava de forma espetacular. Passamos pela base, e o Bernardo Rodrigues nos questionou se deveria usar chicote para acelerar a gente no percurso novamente, afinal estava uma maravilha aquele lugar, água gelada, açaí, bananas, simplesmente sensacional. Já no trecho final, faltando algo em torno de 13 quilômetros para o fim da prova, a dificuldade foi ao ápice. O desgaste do dia anterior, o calor e o percurso difícil estavam tomando conta dos pensamentos e multiplicando o peso. Nesse momento, o Witney e o Otavio passaram por nós, a vibração positiva de ambos me lembrou do potencial da mente humana, então eu parei de me levar simplesmente pela inércia e comecei a lembrar de coisas positivas. Lembrei da Luciana, do Zein (meu estimado cão que faleceu) e minha energia se renovou. Naquele instante comecei a falar para o Ricardo que esta seria a nossa última corrida juntos, pois no fim de semana que vem me mudarei para Belo Horizonte. Por isso deveríamos dar o nosso máximo nesses 10 quilômetros finais, e assim o fizemos. Corremos bem como se tivéssemos acordado naquele instante, mas essa energia foi se perdendo aos poucos, pois o sol castigava demais. Até que surgiram fotógrafos avisando que faltavam menos de 1000 metros para chegar! Aceleramos novamente e rompemos todas as barreiras que se impuseram contra nós dois até a linha de chegada, e finalizamos com 5hrs39min. A emoção foi indescritível.
VAI COMEÇAR: Momentos antes da largada do Desafio das Serras, que rolou na Bocaina
Texto e fotos Natan de Souza
NO PÉ: Natan nos preparativos para o desafio