Em um caiaque emprestado, o sueco Christian Bodegren rema sozinho da Venezuela à Argentina pelos rios mais míticos do continente sul-americano
Por Camila Nunes
A PRINCÍPIO, MUITOS DISSERAM QUE ELE ESTAVA LOUCO. Afinal, cruzar sozinho, em um caiaque emprestado, toda a América do Sul pelos rios que cortam o continente não parecia mesmo um feito fácil. Após 280 dias na mais pura mata fechada, o sueco Christian Bodegren pode, enfim, rir por último. Remou águas doces da Venezuela até a Argentina, conheceu de perto rios míticos como o Amazonas, o Madeira e o Paraná e vivenciou de forma original o que de melhor essa região do planeta tem a oferecer. Tudo isso sem um pingo de pretensão ou qualquer luxo, a não ser por um laptop com acesso à internet. Ao fim da expedição, já à beira do argentino rio El Tigre, o barbudo aventureiro apenas disse: “Remei contra a corrente por muito tempo. Mas minha teimosia durou bem mais do que as dúvidas daqueles que não acreditavam em mim”. Não foi por acaso que esse sueco de 38 anos se tornou um aventureiro de raiz. Nascido e criado em uma vila de apenas 300 habitantes no sul de seu país, ele cresceu encantado com a ideia de poder conhecer o que lhe era mostrado nos livros de geografia da escola. Quando se deu conta, estava desbravando o mundo sozinho. Sua primeira grande viagem foi ao Egito e à Israel, no começo da década de 1990. “Estar ali era como pisar em um outro mundo, completamente diferente da aldeia verde de onde eu vinha. Senti uma incontrolável necessidade de viver novas experiências”, diz. Depois de passear pelas savanas africanas, subir as montanhas Gran Paradiso, na Itália, e atravessar o deserto do Saara montado em dromedários, ele finalmente mirou as pás de seus remos para a América do Sul. “Consultei livros sobre a história dos primeiros homens que atravessaram o continente pelos rios e fiquei fascinado pela região. O sonho levou a uma ideia que, por fim, tornou-se realidade.” A preparação para a viagem durou alguns meses. Foi preciso estudar a fundo mapas, costumes, correntezas e coletar informações sobre como as populações ribeirinhas sul-americanas se transportam. Só então Christian escolheu o caiaque como forma de explorar esse canto do mundo. Experiente remador, ele costumava competir na modalidade quando era mais jovem. Em setembro de 2011, chegou ao ponto de partida de sua jornada: Caracas, na Venezuela. Antes de começar a remar, enfrentou alguns perrengues brabos. Logo de cara teve seus equipamentos perdidos no aeroporto de Caracas, o que o obrigou a repensar toda a expedição. Com a ajuda do amigo Aramis Mateo, proprietário de uma empresa de turismo com caiaque na Venezuela, conseguiu um antigo modelo, que precisou reformar. Batizou a embarcação emprestada de The Green Arrow (A Seta Verde) e, com ela, partiu pelo rio Orinoco rumo ao sul do continente. Seus dias se dividiam entre remadas, cochilos na rede, muitas picadas de mosquitos e encontros inesquecíveis com animais selvagens, além das muitas pessoas que o ajudaram pelo caminho. Vez ou outra, percebia uma movimentação estranha, que deduziu fazer parte do tráfego de drogas típico das fronteiras. “Talvez eu tenha tido sorte, mas todas as histórias que me contaram sobre saqueadores na Venezuela e na Colômbia me parecem agora um Eldorado, um mito que nunca se concretizou”, disse em novembro do ano passado em seu diário online, atualizado graças a um sistema de satélite ligado a um laptop com bateria solar que permitiram a parentes e amigos acompanhar toda a aventura. Graças ao GPS integrado ao caiaque, a rota do remador era atualizada em tempo real. “Eu imagino o que Antonio Raposo Tavares diria dessa parafernália toda”, postou em seu diário, citando o explorador português que percorreu mais de 10 mil quilômetros pelos rios brasileiros entre 1648 e 1651.
De fronteira em fronteira, Christian passou pelos rios Madeira, Negro, Amazonas e Paraná, entre muitos outros. Neste último, encontrou um grupo com cerca de 150 remadores, participantes de um encontro anual de caiaques. O sueco os acompanhou em diferentes rotas por dois dias, até dar continuidade a seu trajeto rumo a Buenos Aires, pelo rio da Prata. Remar contra a corrente durante a temporada de chuva foi sua maior dificuldade. Apesar disso, depois de nove meses e 10 diass ele chegou a uma praia na província de Tigre, a cerca de uma hora da capital argentina, celebrando a conquista com espumante e, claro, a bandeira da Suécia. As referências a outras viagens e expedições são temas frequentes em seu blog. De maneira quase didática, ele escreve sobre a vida selvagem, os animais que encontra pelo caminho e até arrisca dar receitas de pratos que inventa, como o sushi de piranha (que, na verdade, está mais para ceviche). Entre um desabafo e outro sobre os perrengues enfrentados, o aventureiro conta pequenas histórias de outros exploradores e de gente que conheceu durante o trajeto – entre elas, um casal de brasileiros que o hospedou durante o Natal, moradores de uma comunidade ribeirinha próxima ao Madeira. “Conhecer pessoas e lidar com as diferenças são o lado mais interessante de toda a viagem”, diz. Para ele, viajar sozinho não é um problema – “exceto pela vontade de dividir a aventura com alguém”. Quando estava no Saara atravessando o deserto de leste à oeste, entre 2009 e 2010, o sueco aprendeu que para se fazer uma expedição é necessário também se preocupar com algumas burocracias e costumes locais. Viajando com quatro dromedários, ele teve que vendê-los em uma parte do caminho, pois não conseguiria atravessar com eles a fronteira entre a Líbia e a Argélia. O que ele não sabia é que a venda dos animais é proibida em toda aquela região. Resultado: foi condenado pela Tunísia a ficar cinco anos sem retornar ao país. “Eu provavelmente sou o único sueco a ter cometido um crime como esse em toda a história. Prometi a mim mesmo que não iria vender nenhum dromedário na Venezuela”, brinca. Mal terminou essa expedição, Christian já planeja a próxima, apesar de não saber exatamente o destino. A única condição é que o local seja completamente diferente de todos os que já explorou antes. Atualmente morando na Noruega, ele trabalha como instalador de andaimes em plataformas de petróleo em alto-mar. Nas folgas, volta para a Suécia, onde faz bicos como carpinteiro para completar o orçamento. “Às vezes me pergunto quantas toneladas de andaimes tive e terei que instalar para poder pagar meus sonhos. Não tenho ideia e também nem quero pensar nisso”, afirma, rindo. “Prefiro focar meus pensamentos nas futuras aventuras que ainda estão por vir.”
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2012)
Ô, COISA BOA: Christian comemora o fim da expedição; cenas da aventura na América
do Sul (entre elas, uma moradora cuida da mão do sueco, machucada de tanto remar)
(FOTO: Christian Bodegren)
OUTROS CARNAVAIS: Christian durante expedição pela
montanha Gran Paradiso, na Itália, alguns anos atrás