À frente da série Monstros do Rio, do canal Discovery, o inglês Jeremy Wade persegue os maiores e mais extraordinários peixes de água doce do planeta
Por Mario Mele
Enquanto exibe para as câmeras um esturjão ou uma raia gigante recém-tirados da água, ele dá explicações científicas de sua presa. Em seguida, devolve-a com vida para o rio de onde veio. Durante uma folga das gravações da quarta temporada, Jeremy conversou com a Go Outside por telefone. Leia a seguir alguns “causos” desse surpreendente pescador:
GO OUTSIDE Você acredita que esteja colaborando para comprovar certas “estórias de pescador”?
JEREMY WADE Sim, esse é o ponto de partida de cada episódio do meu programa. Por exemplo, um dia você ouve falar de alguém que foi puxado para baixo d’água ou algo do tipo. O que faço é investigar a veracidade disso. Às vezes, essa história não é totalmente verdadeira, mas tento descobrir o que aconteceu de fato. É um pouco como tentar encontrar o monstro do lago Ness. Se você investigar direito e perguntar por aí, encontra boas evidências. Então, no fim de cada capítulo de Monstros do Rio, normalmente você vai ver um animal muito diferente e estranho para a maioria das pessoas.
Você sabe de onde surgiu a ideia de que todo pescador é um cara meio mentiroso?
Eu acho que em todos os países os pescadores têm essa reputação, talvez por exagerarem mesmo nos fatos que contam aos outros. Mas acredito que às vezes eles dizem a verdade, já que passam muito tempo olhando para a água. E, quando se está atrás de peixes, você está sempre à procura de qualquer sinal de vida.
Aconteceu uma coisa interessante comigo na Amazônia: vi algo estranho na água e comentei com as pessoas que estavam por perto. Mesmo os pescadores de lá disseram: “Eu não acredito que você tenha visto algo assim”. No ano seguinte, voltei ao mesmo lugar e, enquanto estava fotografando uns botos cor-de-rosa, por acaso registrei aquele mesmo animal. Daí fiz uma grande investigação e descobri que se tratava de um golfinho ferido, por isso aquela forma estranha. Ou seja, eu mesmo já estive na situação de “ver alguma coisa”. Pescadores estão acostumados com pessoas que não acreditam neles, mas muitos têm mais conhecimento do mundo subaquático do que cientistas profissionais. Sou biólogo e sei que um animal que vive na água, com comida suficiente, pode continuar crescendo. Por isso existem peixes enormes. Com animais terrestres, isso nunca acontece, porque se ele comer muito ficará gordo e não conseguirá se mover.
Como é uma viagem de pesca perfeita para você?
É uma pergunta difícil, porque percebo que as viagens mais marcantes não foram as mais agradáveis. Há lugares muito difíceis de se chegar, sem infraestrutura alguma, como o Congo, na África central, onde fisguei um enorme peixe-tigre-golias. Eu gosto de mordomias, claro, mas se é confortável demais é porque não se trata de um destino tão remoto. Por isso prefiro sacrificar um pouco o luxo em favor de um lugar inóspito. Um bom exemplo disso está nesta quarta temporada do programa, em um episódio gravado na Mongólia. É um lugar frio, mas lindo.
É possível medir os riscos nesses locais isolados?
O perigo existe, por isso você tem que estar preparado, de preferência ao lado de pessoas que conhecem o lugar. Hoje eu conto com uma equipe que viaja comigo, e temos recursos para ir mais longe. Procuramos estar sempre conscientes de nossos riscos e agir de acordo com eles.
Você acha que o Congo é o melhor lugar do mundo para pescar?
Não é um lugar bom de se ir, pois não é fácil chegar lá. Mas a pescaria é muito boa. Quero dizer, sempre que algum lugar é difícil de chegar, a pescaria é boa. Em lugares de fácil acesso, os peixes desapareceram. Essa é a nossa grande dificuldade.
Quantas vezes você já esteve no Brasil?
Já perdi as contas, acho que talvez umas 15 vezes. Antes de eu gravar Monstros do Rio, estive aí umas 10 ou 12 vezes. Eu viajava para Manaus e então seguia para o interior do estado sem equipe de filmagem, sozinho. Ocasionalmente eu escrevia artigos sobre pesca para revistas. Além do Amazonas, já pesquei muito no Araguaia, no Mato Grosso.
Como foram suas experiências por aqui?
Aprendi muito no Brasil. Tinha ouvido falar muito do rio Amazonas e enfim pude conhecê-lo pessoalmente em 1993. A região é vasta, viajei de barco por três meses e ainda faltou muita coisa para eu conhecer. Voltei nos dois anos seguintes e fiquei surpreso. Naquele momento, eu estava tentando pescar o pirarucu. Conheci várias pessoas, principalmente pescadores. A população é grande no Amazonas, então a pesca comercial é intensa. Gostei de aprender sobre a região, e não necessariamente apenas sobre pesca.
O quanto você considera comercial a pesca na Amazônia? Chega a ser preocupante?
De modo geral, os rios têm sofrido com a pesca comercial, mesmo em alguns lugares como o Congo. Mas no Amazonas há frotas de barcos pesqueiros com tecnologia sofisticada e redes enormes que operam a partir de Manaus. Sei que as pessoas precisam comer, mas isso tem gerado um enorme impacto. O número de peixes e o tamanho deles declinaram muito nos últimos 50 anos. Acredito que a situação não seja tão preocupante quanto nos mares, mas o crescente número de pescadores tem afetado a quantidade de peixes mesmo em áreas remotas da Amazônia.
Você acha que o Brasil tem que tomar cuidado com a pesca predatória?
Sem dúvida. Há peixes e animais cuja pesca ou a caça são ilegais. Mas essa é uma questão muito complexa, porque as pessoas muitas vezes não têm alternativa de renda. Você não pode simplesmente falar para elas pararem de pescar. Não é um problema que acontece só no Brasil, é de âmbito mundial. Precisamos alimentar da humanidade, mas isso tem que ser feito com equilíbrio para deixarmos peixes para as próximas gerações.
O que você acha de projetos para reverter essa situação, como o criado pela marca Patagonia no Canadá para salvar o salmão selvagem?
Essa é uma questão delicada. Não se pode, por exemplo, excluir as pessoas que moram e dependem do lugar para sobreviver. Mas existe a pesca por esporte, que não é um sustento – você pesca e, depois, devolve ao mar ou rio. Nesse caso, o que acontece é que uma parte do povo local trabalha como guia de pesca. Às vezes isso funciona: promove-se o turismo e a pesca esportiva em um trecho do rio. Já estive em rios onde há um número grande de peixes de bom tamanho por conta disso.
Você se sente otimista quanto ao futuro dos rios ou dos oceanos?
No oceano, há muitos países envolvidos, todos preocupados com a mesma água e nunca ordenam nada. Em um rio, no máximo são dois países envolvidos, portanto é mais fácil aplicar alguma política comum. Penso que há mais esperança quanto ao futuro dos rios do que o dos oceanos.
É por isso que você prefere a água doce à salgada?
Prefiro a água doce porque ela é misteriosa. É relativamente fácil descer no fundo dos oceanos ou comprar livros que contam tudo sobre peixes que vivem em recifes de corais ou em águas profundas. Houve muitos programas de televisão, como o de Jacques Cousteau, para apresentar a vida nos oceanos – ao contrário do que acontece com os peixes de água doce. Normalmente, a visibilidade nos rios e lagos é baixa e não se pode usar uma câmera subaquática. Não se sabe muito o que existe nos rios – mesmo a quantidade de água doce sendo muito menor quando comparada ao mar.
Há algum lugar onde o peixe é considerado um animal sagrado, como a vaca é na Índia, e onde a pesca poderia ser excelente?
Na Índia há um peixe sagrado chamado sareng. Em um dos episódios da quarta temporada, vamos ao país. Mas a Índia, em geral, é um lugar muito deprimente para uma visita de pesca. Há gente demais em todos os lugares, e na maioria dos rios há poucos peixes. Você tem que procurar muito até encontrar peixes grandes, mas eles existem.
Que países têm os melhores pescadores?
Interessantemente o Brasil é um país onde aprendi muito com os pescadores. Notei o quanto se pesca com vara de bambu e linha aí. Também aprendi muito com pessoas que utilizam redes e arpões. Mesmo que sejam estilos de pesca bem diferentes do meu, passei a entender o comportamento de certos peixes e saber onde encontrá-los. Outra coisa: é ótimo ver que pescar e libertar os peixes está se tornando mais popular no Brasil.
As aventuras de Jeremy Wade pelos rios mais remotos do mundo são exibidas às terças-feiras, às 22 horas, no canal Discovery
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2012)
RETRATO: Jeremy posa para a foto segurando uma mandíbula de tubarão, na Austrália
(Foto: Ben Roy)
PACIENTE COMO TODO BOM BRITÂNICO, o biólogo de formação e pescador extremo por opção Jeremy Wade, 56 anos, esbanja disposição. Ele costuma montar acampamento em lugares bem remotos e esperar horas, às vezes dias, até que seu anzol seja beliscado – não por um peixe qualquer, mas por seres aquáticos bizarros jamais filmados ou mostrados na TV. “Pescar em si não é meu objetivo final”, explica Jeremy, que já navegou pelas águas doces de todos os continentes à frente do programa Monstros do Rio, exibido pelo canal pago Discovery. “O peixe é a evidência para responder a uma grande pergunta, desvendar um mistério.”
EM AÇÃO: Trabalhando a bordo de um bote inflável no rio Delger Moron, na Mongólia; pescando com a água batendo na canela no mesmo rio; e adentrando o rio Okavango com pescadores locais, em Botsuana, na África
(Foto de baixo para cima: Charlie Bingham e Christopher Stitchman)
Você já passou alguma vez por mentiroso também?
FALA "XIS": Em Krabi, na Tailândia, Jeremy mostra por que veio (FOTO: Ben Roy)