O escocês que voa longe

O ciclista e inventor Graeme Obree conhece os extremos da vida: chegou ao auge da carreira de atleta, quebrou recordes, revolucionou o conceito de bicicleta, foi copiado. Em seguida caiu no ostracismo e teve que superar violentas crises pessoais. Agora ele está de volta, pronto para pedalar a mais de 130 km/h e entrar de vez para a história do ciclismo


Por Mario Mele


TREINO CASEIRO: Graeme treina em sua ergométrica para bater o primeiro recorde mundial, em 1993
(FOTO: Matthew Polak)


O ESCOCÊS GRAEME OBREE está em Saltcoats, cidade onde mora a oeste de seu país, dando os últimos retoques em um projeto de bicicleta que pretende revolucionar os veículos movidos a força humana. Sem precisar sair de casa, ele consegue ir longe – é dentro de sua cabeça que os conceitos mais loucos de design tomam forma. O lema desse ciclista, engenheiro e inventor é “use o que você tem”. Por isso, durante a fase de produção de uma nova criação, é comum transformar utensílios domésticos em peças de bicicleta. “Estou otimista com o resultado até agora, mas não arrogante”, diz, referindo-se à bike a qual tem se dedicado nos últimos meses. “Acredito na possibilidade de bater um recorde mundial, mas nada está garantido.”

Graeme só saberá o resultado em setembro, quando tentará pedalar a mais de 133 km/h o modelo que ele mesmo idealizou e construiu. Essa é hoje a maior velocidade que um veículo de propulsão humana já atingiu no plano, alcançada há três anos pelo canadense Sam Whittingham. Em 2009, encapsulado no cockpit de uma bicicleta reclinada, Sam voou baixo em Battle Mountain, Nevada (EUA), durante o World Human Powered Speed Challenge (WHPSC, sigla em inglês para Desafio Mundial de Velocidade com Propulsão Humana), o mesmo evento em que Graeme tentará bater a marca neste ano.

Desde que foi criado, há pouco mais de uma década, o WHPSC é responsável por ranquear as bicicletas e os ciclistas mais rápidos do mundo. A competição consiste em pedalar por 6,5 quilômetros pela RS305, uma rodovia estadual de Nevada com asfalto perfeito, até atingir a velocidade máxima, que é registrada em um trecho pré-determinado de 200 metros. Mas, enquanto Sam e os outros competidores chegam ao WHPSC com protótipos criados no computador e na maioria das vezes feitos de fibra de carbono, Graeme apresentará ao público a Exhibit B, uma bicicleta aro 20’’ (com rodas do tamanho das de uma BMX), que o manterá na horizontal, com o peito virado para o chão durante todo o pedal. Como de costume nas criações de Graeme, o design causa estranheza à primeira vista.

“Para criar a Exhibit B, pensei em um veleiro rompendo o mar e cheguei à conclusão de que a cabeça deve estar à frente dos ombros, que são as partes mais largas do corpo humano”, diz.

Graeme passa horas lendo e pesquisando sobre vários assuntos, e garante ter descoberto nos livros de biologia informações muito úteis – entre elas, maneiras mais eficientes de respirar, como “expirar uma vez e inspirar duas”. “Mas o conhecimento que tenho mais evoluído é o cálculo científico da energia que meu corpo – que também é meu motor – pode produzir.”

O escocês não sabe explicar precisamente como uma ideia nasce em sua cabeça. “A primeira pergunta que surgiu na minha mente para criar essa bicicleta foi: o que um extraterrestre faria para se deslocar o mais rápido possível por uma estrada plana?” A inspiração de Graeme para sua mais nova bicicleta não veio de inventores revolucionários como Steve Jobs ou de ciclistas ultravelozes como Mark Cavendish. Até em matéria de ídolos o escocês prefere continuar no campo da física. “Ninguém me instiga mais do que Isaac Newton”, conta, citando o físico britânico mais influente da história. “Newton esclareceu questões científicas como energia e velocidade e, portanto, faz mais parte dessa bicicleta do que qualquer outra pessoa.”

De iniciais equações de física resolvidas no papel para analisar como o corpo humano pode romper o ar com eficiência máxima até a mão na massa de fato, com barras de aço cortadas e soldadas, ele não recorreu à ajuda de ninguém: pensou e pôs tudo em prática seguindo a própria intuição. “Como engenheiro e construtor autodidata, prefiro o aço”, revela. “Além de ser um material mais barato, ele me possibilita modificar o formato das peças. Já a fibra de carbono é um produto caro, de difícil manuseio e que é usado em aviões, carros e bicicletas porque traz grande margem de lucro.”


REVOLUÇÃO: Recentemente Graeme posou para uma sessão de fotos com sua nova Exhibit B ainda inacabada na Escócia

REFERÊNCIAS: O escocês levanta a bandeira da Grã-Bretanha logo após se tornar campeão mundial em 1995; Isaac Newton, a grande inspiração de Graeme; capa de O Escocês Voador, filme que retrata sua vida


QUEM VIU O FILME O Escocês Voador, baseado em um livro autobiográfico, sabe que Graeme Obree é um nome que se destacou na elite do ciclismo mundial por uns anos durante a década de 1990. Bateu quatro recordes mundiais e foi bicampeão mundial em pista. Disposto a ser o melhor em tudo o que se dispôs a fazer até hoje, ele fechou a pequena bicicletaria que tinha para se dedicar integralmente ao sonho de se tornar um recordista mundial. Ainda como ciclista amador, acreditava que um dia poderia superar uma marca do ciclismo de pista conhecida como hour record (maior distância pedalada em 60 minutos em um circuito oval) que há nove anos pertencia ao italiano Francesco Moser. Em 1984, Moser pedalou 51,15 quilômetros em uma hora, batendo em quase um quilômetro e meio o lendário belga Eddy Merckx. Doze anos antes, Eddy estabelecera a marca e deixara o velódromo como um recordista, mas jurando que “nunca mais passaria por aquela tortura”. Para o escocês, ter a pista oval de algum velódromo a seu dispor por uma hora era tudo com que mais sonhava.

Graeme fez questão de buscar o recorde à sua maneira, começando com a construção de uma bike própria. “Quando tenho um plano, questiono os limites das possibilidades”, explica. Sua intenção era mudar a posição do ciclista na bike, deixando-a parecida com a de um esquiador que desce uma montanha em alta velocidade. Para isso, a primeira mudança foi inverter o guidão de um modelo de estrada. Segundo ele, colar os cotovelos no tronco lhe daria a aerodinâmica perfeita para rasgar o ar como uma agulha. Mas, depois de 30 quilômetros pedalados ininterruptamente, Graeme deu-se conta de que era desconfortável demais permanecer por muito tempo naquela posição – pelo menos em uma bicicleta convencional. O problema foi superado com o desenho de um novo quadro, totalmente revolucionário, cujo único tubo central ligava a caixa de direção ao eixo da roda traseira. A essa primeira bicicleta de fabricação própria, que mantinha os braços do ciclista próximos ao corpo, ele deu o nome de Old Faithful – uma fiel escudeira que “nasceu” em 1993 e que o acompanharia pelos próximos anos.


FAMA: No início dos anos 1990, Graeme ganhou notoriedade, mas em pouco tempo a UCI lhe tiraria a alegria

Até mesmo nos momentos em que seus projetos pareciam dar errado, o escocês conseguia inovar. Certa vez, pessimista com a evolução do desenho da Old Faithful, sem querer reparou na eficiência com que trabalhava sua máquina de lavar roupa. A saída de mestre foi desmontar o equipamento em busca de rolamentos para o eixo dos pedais. Paralelamente, Graeme também dedicava-se obstinadamente a melhorar, com hábitos um tanto bizarros, seu condicionamento físico para os 60 intensos minutos que teria pela frente no velódromo. Além de pedalar insistentemente uma bicicleta ergométrica colocada na sala de estar, ele simulava o movimento das pernas deitado no chão, com os pés para o alto. Isso também serviu para entender melhor a biomecânica do ciclismo e reajustar o bike-fit da Old Faithful.

Resultado: no dia 17 de julho de 1993, na Noruega, Graeme superava, na segunda tentativa, a marca que por nove anos pertenceu a Francesco Moser. Em uma hora, o escocês pedalou 51,59 quilômetros, quase meio quilômetro a mais do que o italiano. Era a concretização de um sonho: Graeme assinou um contrato de patrocínio de um ano com a marca norte-americana Specialized e virou notícia no mundo inteiro. No entanto, apenas seis dias depois, o ciclista inglês Chris Boardman pedalou 52,27 quilômetros em um velódromo na França. Enquanto o escocês recorria aos próprios métodos de engenharia, Chris, que no ano anterior havia conquistado a medalha de ouro nas Olimpíadas de Barcelona, utilizara uma superbicicleta desenvolvida pela equipe de Fórmula 1 Lotus. Projetada em computador, a tal “máquina” do inglês custou meio milhão de dólares para sair do papel.

Menos de uma semana depois de ser coroado por um esforço descomunal, Graeme se viu no posto de ex-recordista, fato que só serviu para aumentar a rivalidade entre ele e Chris. Meses depois, o escocês o derrotaria numa disputa homem a homem para se tornar campeão mundial. E, menos de um ano após ter estabelecido o recorde, Graeme voltou com sua Old Faithful ao velódromo – dessa vez na França – para outra tentativa de quebra o hour record.

O escocês cravou uma nova marca (52,71 quilômetros), mas logo em seguida a União Ciclística Internacional (UCI), o órgão máximo do ciclismo no mundo, baniu a geometria da Old Faithful, que passara a ser adotada em provas oficiais por outros ciclistas, inclusive Francesco Moser. A Old Faithful foi acusada de ser uma bicicleta instável, justamente por causa do guidão inovador. “Numa queda, ela pode inclusive ferir os adversários, caso seja uma prova entre dois ou mais ciclistas”, afirmaram os representantes da UCI. Graeme se defendeu, contando que só caíra uma única vez. Mídias especializadas, como a revista inglesa Cycling Weekly, definiram a atitude da instituição como “burocrática”. “Prefiro não discutir mais esse assunto”, diz hoje Graeme.

Seguiram-se novas especificações técnicas no regulamento da União Ciclística. A poucos minutos da largada de uma competição internacional, Graeme chegou a serrar o selim de sua bicicleta para que ela se ajustasse às novas “medidas padrões”, que eram rigorosamente inspecionadas pelos fiscais da UCI. Eles também barraram o banco cortado, com a alegação de que não poderiam aceitar que uma peça original fosse alterada. Indignado, Graeme foi atrás de um selim infantil para se enquadrar às normas e voltar a ter o direito de competir. “Hoje eu agradeço à UCI”, diz, sem rancor. “Se não fossem eles, talvez eu não tivesse me forçado a inventar novas bicicletas e ficasse na minhazona de conforto.”

Graeme estava atento ao novo regulamento quando disputou o campeonato mundial de 1995. A boa e velha Old Faithful retornava com um novo guidão, exageradamente avançado, que deixava os braços esticados. Na pista, em alta velocidade, o escocês lembrava o super-homem voando. “É a minha bicicleta preferida até hoje”, diz. “Além de uma postura muito bonita, eu me sentia um piloto de caça mirando os inimigos.” O italiano Andrea Collinelli, campeão olímpico em 1996, foi um dos ciclistas metralhados por Graeme naquele mundial.


CUCA FRESCA: Graeme leva o filho para dar uma volta na litoral da Escócia


NA METADE DA DÉCADA DE 1990, Graeme personificava o que o ciclismo de pista tinha de mais evoluído em termos de engenharia e atletismo. Uma prova do sucesso foi a quantidade de seguidores que a postura “super-homem” angariou: só em 1996, Graeme viu a equipe italiana de ciclismo conquistar três medalhas de ouro nas Olimpíadas de Atlanta e o inglês Chris Boardman bater um novo recorde de pista. “Foi uma década bem egoísta”, avalia. “Minhas vitórias, meu dinheiro, minha glória.”

Depois de experimentar o auge, Graeme viveu uma série de tragédias pessoais, que começou com a morte do irmão em um acidente de carro, passou por duas tentativas mal-sucedidas de suicídio e terminou com o divórcio da mãe de seus dois filhos. Ele decidiu por um fim definitivo à fase obscura no começo do ano passado, ao admitir ao jornal Scottish Sun que era gay. “As pessoas perguntam como eu só descobri isso depois de me casar e ter filhos”, declarou ao periódico. “Mas, desde criança, aprendi que era melhor morrer do que ser homossexual, então eu simplesmente me fechei, sem dar muita atenção à minha sexualidade.”

Há alguns anos, Graeme ainda foi diagnosticado com transtorno bipolar, um distúrbio caracterizado por alterações extremas de humor, que vão de momentos de intensa atividade física e mental até períodos de depressão aguda. No entanto, o escocês não acredita que seus experimentos tenham relação com esses sintomas. “As pessoas têm até receio de falar comigo porque acham que o que faço é um estilo de vida que criei para vencer meus problemas”, diz. “Mas tudo é bem mais simples do que parece. Sou apenas a favor de colocar minhas ideias em prática, como um coreógrafo que dança a própria coreografia ou um músico que interpreta a canção que compôs.”

Graeme não espera ser elogiado pelas boas ações e muito menos se sente privilegiado em fazer parte do British Cycling Hall of Fame, que homenageia os ciclistas britânicos mais importantes da história. Ele garante até que, recentemente, rejeitou uma menção honrosa da rainha Elizabeth II porque “não faz sentido ser premiado pelo que se conquista em benefício próprio”. Para ele, neste momento, nada é mais importante do que se reinventar – uma oportunidade que está tendo graças ao World Human Powered Speed Challenge, sua próxima competição agendada. “Não há regras para disputar esse evento”, vibra. “É o outro lado da moeda do engessado mercado de bicicletas, em que marcas não estão dispostas a mudar porque teriam que repensar seus maquinários, seus moldes, e isso custaria caro. No WHPSC, você parte apenas do princípio de que seu veículo deve ser movido à força humana.”

A poucas semanas do evento, Graeme fará os últimos ajustes em sua Exhibit B em uma estrada plana do litoral da Escócia, próxima de onde mora. Aos 47 anos de idade, mas ainda em plena forma, o escocês voador continua o mesmo. O maior exemplo disso é o fato de ter construído sua bicicleta mais recente também na cozinha de casa. “Quando precisei de um pedaço de aço inoxidável para montar o suporte dos ombros, utilizei uma panela.” Retorno em melhor estilo do que esse, só se Graeme alcançasse o quinto recorde mundial de sua vida.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2012)