Quando um estudante toma a decisão de ser médico, ele, provavelmente, não imagina quantas emoções e experiências incríveis irá viver por conta dessa escolha. Foi exatamente assim que aconteceu comigo.
Vou começar voltando lá ao primeiro ano de medicina, com um fato bizarro que aconteceu já no início da faculdade. O "seu Zé", monitor do laboratório de anatomia e morfologia, decidiu pegar uma peça para nós estudarmos e acabou caindo dentro do tanque de formol cheio de cadáveres e objetos de estudo (cérebros, rins, fígados,…). Foi um fato que virou assunto na faculdade inteira e será bem difícil esquecer a cena daquele senhor em situação tão bizarra.
Outro acontecimento, bem melhor de ser lembrado, ocorreu durante um ciclo de pediatria. Interna do sexto ano, saí correndo no hospital, quando decido chamar pela paciente: “Sra. fulana!". Quando levanta uma menininha de 4 anos, toda vestida de rosa, no maior estilo fofura, e carregando uma bolsa pink, com uma postura que muito adulto não tem. Ela me olha e caminha em minha direção.
E eu perguntei:
– Você quer esperar sua mãe para iniciarmos a consulta?
E ela mais que prontamente me responde:
– De maneira alguma, doutora, minha mãe foi ao toalete e você já pode ir falando comigo para me ajudar a solucionar o meu problema…
Imagina um vocabulário desses para uma menininha linda, com um jeitinho muito meigo e especial.
Sem perder mais o tempo dela, comecei a consulta:
– Então … como eu posso te ajudar a solucionar o seu problema?
E ela responde :
– Bem doutora, eu estou péssima… (enquantoisso leva a mão à cabeça num gesto tão adulto que eu não sabia se eu ria ou se a agarrava ou se continuava a consulta)
E foi nesse meio tempo que a mãe dela entrou no consultório e, sem saber que eu e a sua filha já tínhamos começado a consulta, diz as mesmas palavras enquanto faz o mesmo gesto, usando praticamente a mesma entonação: “Bem doutora, minha filha anda pésssima…”
Isso me fez pensar tanto… É assustador como os filhos podem aprender tudo com seus pais. Crianças são como esponjas: tanto para a maneira de pensar, falar, gesticular e ver o mundo. Que responsa, né?!
Outra dia, já como plantonista de um hospital em São Paulo, atendi um homem que trabalhava em uma fábrica e mexia com solda. Ele chegou ao Pronto Socorro já com as calças na altura do joelho, apenas com um pano cobrindo as partes íntimas. Quando viu que eu seria a médica que o atenderia, ele disse um: “ Ah não!”
Eu logo pensei: "Isso não pode ser bom…”
Então, ele tirou o pano da frente e disse:
– Doutora, fui fazer xixi hoje cedo na firma onde trabalho e tive que segurá-lo e esqueci de tirar a luva e estava mexendo com solda.
Aquilo deve ter doído tanto, mas tanto, que eu não me contive e deixei escapar:
– “Ai, meu Deus”
E ele, vendo minha reação, retrucou:
– “E isso porque você nem tem um desses e já ficou com dó de mim, hein, doutora…”
Jamais também me esquecerei de um senhor que estava internado no hospital havia vários meses. Foi uma verdadeira lição de vida, um tapa na cara: ele teve um câncer que quase o matou e espalhou metástases por diversos órgãos. Tinha uma perna amputada, perdeu o filho que foi atropelado enquanto esteve internado fazendo quimioterapia, sua esposa era portadora de uma hepatite crônica e precisava de um transplante. Bom, mesmo com todos essas “desgraças” em sua vida, ele era a alegria daquela ala do hospital. Sempre tinha uma história bonita para contar ou uma piada pra arrancar um sorriso da gente. E, nesse ciclo do internato, eu aprendi que a vida é exatamente o que nós decidimos fazer dela. Durante essa fase, eu nunca consegui terminar uma reclamação que comecei a fazer porque esse senhor sempre vinha à minha mente.
Você conseguiu ler até aqui? Que bom!! Então, tem só mais duas historinhas que quero dividir com você.
Quando um bandido ou um assassino é baleado ou ferido, ele é internado em uma ala especial de alguns hospitais públicos até se recuperar para poder voltar para a cadeia. E nós fizemos alguns estágios em vários hospitais que tinham a ala de presos. Mas foi, justamente, quando eu e minha colega estávamos de plantão que o PCC resolveu atacar as bases da PM e delegacias e hospitais — sendo um deles, inclusive, aquele em que nós duas trabalhávamos.
Nessa ocasião, encontrei-me em meio a um tiroteio e uma tentativa de resgate de um dos pacientes. Achei que ia morrer ali mesmo, de bala perdida! E pensei: tantas outras maneiras melhores para morrer…! Saí na maior velocidade que já devo ter alcançado na vida, entrei no meu carro e, felizmente, escapei do estacionamento antes de ser atingida e ter uma morte besta.
FOCO: Voluntários se esforçam para ajudar o acidentado
E para encerrar a "sessão recordações" vou terminar com um casinho que acredito que poderia ser a realidade para a maioria dos leitores da Go Outside: foi um caso caso inesquecível em um hospital no estado de Washington, na costa oeste dos EUA. Um jovem que voava com um parapente (semelhante a um paraquedas) sofreu um acidente e caiu por muitos metros. Sua sorte foi que, em vez de bater no chão, ele ficou preso na copa das árvores no meio de uma floresta. Ele tinha sinais claros de um trauma gravíssimo, fraturou a pelve, tinha sinais de choques graves, mas a primeira coisa que ele disse ao ser resgatado e trazido de volta ao solo não foi nada do que eu poderia imaginar…
– "Cuidado, cuidado, não corta meu equipamento que preciso dele para voltar a voar!"
O paramédico também "desacreditou" no comentário diante da situação, mas, claro, mandou ver, cortando a cadeirinha e seguindo os protocolos do trauma (ATLS )que eles respeitam à risca lá…
Foi um prazer ter dividido algumas situações que me marcaram com você aqui. Se você quiser ler sobre um tema específico em minha próxima coluna, mande sua sugestão através do Twitter @KarinaOliani.
Karina Oliani é atualmente a única médica da América Latina a ter o título de especialista em Wilderness Medicine pela WMS (Wilderness Medical Society). Karina é presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Áreas Remotas e Esportes de Aventura, atleta e apresentadora da Rede Globo e Globosat.
Nesse artigo, vou dividir com vocês algumas situações que, durante minha carreira médica, me emocionaram, me indignaram e ensinaram a ver a vida por um ângulo totalmente diferente.