Depois de passar maus bocados (como quase morrer na África após um ataque de carrapatos na bunda), nosso impagável MARK JENKINS decide parar de ser mané e fazer um curso de primeiros socorros de aventura – e descobre que até leva jeito para a coisa
ACIDENTES ACONTECEM. Assim é a natureza da natureza, já que o caos é parte da vida. O truque é saber o que fazer quando algo dá errado – coisa sobre o qual eu, durante anos, nunca tive a menor ideia.
Mais de uma década atrás, meu irmão Dan e eu tentamos atravessar a África de bike. Começamos no Marrocos. Tirando vomitar tâmaras estragadas e sermos esfregados com força demais em uma casa de banhos de Marrakesh, tudo estava indo muito bem. Ao sul de Casablanca, passamos a noite em um dos trechos mais elevados da cadeia do Atlas, buscando refúgio em uma pequena cabana. O homem que cuidava do lugar, um berbere de um metro e meio de altura, nos ofereceu chá de menta doce. A única comida era um pote de azeitonas gigantes. A certa altura, Dan precisou dar uma mijada e desapareceu pela porta da cabana na escuridão.
Como ele demorava a voltar, comecei a me preocupar. Meia hora depois, o berbere e eu fomos procurá-lo. Aparentemente, Dan tinha tentado dar a volta até a casinha, mas não sabia que a cabana ficava na beira de um penhasco. O berbere saiu na escuridão balançando um lampião. Estávamos os dois olhando na beirada da encosta quando ouvi Dan susurrar: “Que belo guardião do seu irmão você é!”. Desci pelo penhasco e, quando alcancei Dan, ele estava deitado nas pedras com um pé arrebentado. “Quebrei a perna ao tentar fazer xixi”, gritou ele meio rindo, meio se contorcendo de dor. Puxamos o cara de volta para a cabana e o deitamos na cama. Foi então que eu disse: “Prepare-se, porque isso vai doer”. Dei uma puxada no seu pé, e ele gritou e desmaiou. Endireitei a perna, mas não coloquei uma tala, por isso ela ainda estava mole. Dan ficou com dores excruciantes por uma semana até engessar a perna. Depois modificamos os pedais da sua bike e continuamos nossa travessia pela África.
PAMONHA: Nosso Mark Jenkins, à dir., logo após um acidente no Colorado
Se eu tivesse tido aulas de medicina de aventura, eu saberia que, quando se coloca os ossos no lugar, não se pode dar um puxão forte. Em vez disso, deve-se puxar o membro suavemente e com firmeza, permitindo que os ossos se realinhem em seus devidos lugares gradualmente. Então se coloca uma tala na fratura, usando o que estiver ao alcance. Uma almofada de espuma funciona bem, assim como gravetos amarrados com uma jaqueta.
A verdade é que eu deveria ter feito um curso de primeiros socorros decente há uns 30 anos. Achei que poderia ir aprendendo as coisas pelo caminho, a cada nova expedição. Mas depois de outra viagem à África, durante a qual reinou o caos – mais detalhes nas próximas linhas –, decidi que estava sendo irresponsável ao não saber exatamente o que fazer numa emergência. Por isso juntei US$ 600 para fazer um dos melhores treinamentos dos Estados Unidos, o curso NOLS Wilderness First Responder (apelidado de Woofer, uma adaptação da sua sigla), e me preparei para dez dias seguidos de dez horas de instrução médica diária.
QUANDO A TURMA SE REUNIU, havia 30 de nós. Tínhamos entre os 18 e 57 anos e estávamos todos apreensivos enquanto esperávamos a sessão de orientação em uma sala da Universidade de Wyoming. O rigor e a seriedade do curso eram famosos, e os alunos emitiram resmungos coletivos quando dois pesados livros didáticos de medicina foram entregues a nós. Nossos instrutores, o guia de esqui Ryland Gardner e o especialista em áreas selvagens Dusty Downey, são experientes homens da vida ao ar livre. Assim que nos viram, deram uma risada sarcástica.
“Ao final desta aula”, disse Dusty, “vocês saberão como lidar com tudo: de pulmão perfurado a torção dos testículos”. Durão e direto, com cabelos loiros acastanhados, Dusty nos encoraja a ver o curso como uma preparação para emergências em lugares onde não há ambulâncias, o kit médico é menor que seu sanduíche e “você é o médico de plantão”.
Entre as palestras, haveria cinco exercícios práticos de emergência outdoor por dia, além de outros dois à noite. É inverno em Wyoming, por isso toda essa representação teatral será feita na neve e no vento. Durante cada encenação, metade dos estudantes teria de interpretar os pacientes feridos – usando sangue falso, ossos quebrados falsos e vômito falso –, enquanto a outra metade prestaria socorro. Fomos instruídos a não “sair” do personagem até que os instrutores nos pedissem isso. Ao final dos dez dias, haveria uma prova escrita e uma prova prática de meia hora.
Até lá, espera-se que aprendamos tudo sobre o essencial dos primeiros socorros longe da civilização. E isso não é pouco: como fazer curativos, estancar sangramentos, realizar ressuscitação boca a boca, tratar de hipotermia e hipoglicemia, reconhecer a diferença entre choque compensatório e descompensatório, perceber uma fratura na coluna ou um ataque isquêmico transitório e até mesmo remover um anzol ou carrapato preso na pele.
O que me traz de volta à África… Era abril de 2007. Eu estava no interior do Congo e tinha umas duas dúzias de carrapatos grudados na bunda. Isso não teria acontecido se meu guia, M’viri Bwily, não tivesse aberto um talho no dedão com um facão. Ele veio correndo para minha tenda, esguichando sangue em tudo. Tive que fazê-lo sentar e levantar o braço, e aí pressionei seu dedão por 20 minutos. Quando o sangramento finalmente parou, ficou claro que ele precisava de pontos, mas M’viri recusou. Por isso ele não pode mais me acompanhar na floresta para procurar gorilas. E, se ele estivesse comigo, teria me dito para não sentar no mesmo lugar em que os gorilas sentam, já que as feras são infestadas com carrapatos. Culpa minha: eu havia dito para ele ficar no acampamento e manter o braço erguido acima da cabeça. Florestas são o paraíso das infecções e, como estávamos a dias da clínica mais próxima, fiquei com medo de ele perder o dedão, a mão ou mesmo a vida se a ferida piorasse. Por isso lhe dei minha única dose de doxiciclina, um antibiótico.
Depois da visita à terra dos gorilas, comecei a ter dores de cabeça e fiquei com o pescoço duro – o que eu não sabia era que esses eram os sintomas clássicos de febre de picada de carrapato africano. Com não tinha pinças decentes (outro erro), fiquei agachado perto da fogueira, arrancando-os com um canivete, uma lanterna de cabeça e um espelho. Mas o que eu precisava mesmo – conforme aprendi durante um telefonema via satélite para um biólogo especialista em vida selvagem – era uma dose de, adivinha só, doxiciclina. No final das contas, M’viri e eu nos recuperamos, mas não foi uma experiência bacana.
O PRIMEIRA DIA DE AULA começou às 8h em ponto, com Ryland Gardner, sarcástico e em boa forma, citando frases de escritores renomados sobre a estupidez gerada pela falta de conhecimento.
Aí teve início um furacão de conhecimento médico jogado em cima de nós por Ryland e Dusty Downey, sobre uma série de tópicos: ferimentos no tórax, imobilização da coluna vertebral, emergências neurológicas. Depois de uma hora de aula teórica, somos arremessados no frio para nosso primeiro exercício prático – uma simulação de um acidente aéreo em grandes altitudes. Os feridos estão esparramados pela neve quando nós, os socorristas, chegamos. Nós nos espalhamos para tentar ajudar.
Atordoado com todo aquele sangue falso, me ajoelho ao lado da minha paciente para tentar parar o sangramento, mas não reparo que ela não está respirando. Ela acaba morrendo porque eu não desobstruí suas vias aéreas. Outro socorrista tentar mover sua paciente antes de fazer um exame minucioso. Opa, a coluna vertebral da vítima está partida e ela morre. De volta à sala de aula, podemos rir de nossos erros, mas todos nós sentimos a enorme pressão de ter de fazer a coisa certa na ordem certa. Ao longo do dia, continuamos cometendo erros fatais.
No próximo exercício prático, fico tão preocupado com uma perna quebrada que me esqueço de imobilizar a cabeça da vítima, o que é fundamental. Em outro, interpretei mal o comportamento da paciente e disparei a fazer massagem cardíaca nela, só para descobrir que estava tendo um ataque de asma e tudo que precisava era de seu inalador. Em mais outro, esqueço-me de perguntar à paciente com um ferimento na cabeça se ela perdeu a consciência, sinal de uma possível concussão. No paciente seguinte, não reconheci os sintomas de um estado de choque.
Ao final do primeiro dia, uma das estudantes fala por todos nós quando diz: “Eu fico tão estressada com esses exercícios que me sinto paralizada, com medo de fazer merda”. Ryland reconhece que é fácil deixar a urgência do momento te fazer agir rápido demais e acabar errando. “Vocês precisam se forçar para permanecerem calmos, desacelerarem e pensarem com clareza e lógica”, explica.
Em outras palavras, não entre em pânico. E o único jeito de não entrar em pânico é praticar não entrar em pânico. O que é exatamente o que fazemos nos nove dias restantes, hora após hora, dia após dia. Aos poucos, todos fomos ficando mais relaxados, mais competentes, mais confiantes. Como profissionais de emergência, paramos de nos apressar. Com calma, realizamos uma avaliação completa da pessoa, do ferimento e do ambiente.
SOCORRO ALADO: Tem horas em que só um
helicóptero pode salvar a vida de alguém
NA METADE DO CURSO, temos um dia de folga. Alguns estudantes vão esquiar, enquanto parte do grupo resolve se reunir para fazer uma revisão geral, tentar novos exercícios práticos e elaborar perguntas de teste uns aos outros. Venho estudando todas as noites depois das aulas, mas ainda me sinto ansioso. Ficamos trocando perguntas durante horas:
P: Quais são os sinais iniciais de edema pulmonar de altitude elevada?
R: Fadiga excessiva, tosse seca, falta de fôlego.
P: Na ressuscitação boca a boca, qual é a proporção de compressões por respirada?
R: Trinta compressões (a uma velocidade de 100 por minuto), então duas respiradas.
P: Qual é o tratamento para uma perfuração com piquete de gelo no peito?
R: Feche o buraco, cubra com bandagens e evacue a pessoa para um hospital imediatamente.
Essa última situação me assombra. Uma vez caí uns 30 metros de um glaciar no Shishapangma, um pico de 8.000 metros no Tibete, e quase acabei empalado pelo meu piquete. Outra vez, quando tentava parar de deslizar em um vale de Wyoming, nos EUA, o piquete de gelo se soltou e quase furou meu peito.
Sempre supus que, se seu tivesse me perfurado de verdade, mesmo a dias de distância de um hospital, eu teria sobrevivido. Mas o curso me ensinou que eu estava errado. Para alguns acidentes, não faz diferença quem você é ou o quanto você é duro na queda: você vai morrer de qualquer jeito.
MENTIRINHA: Alunos do curso encenam resgate
O FERIMENTO MAIS COMUM em terras isoladas é algo menos dramático que ataques de ursos ou picadas de cobras. É, na verdade, o tornozelo torcido. Quem nunca tropeçou e sofreu uma torção dessas? O tratamento básico: fita crepe. O curso da NOLS ensina um jeito de amarrar o tornozelo com fita à prova de falhas que eu poderia ter usado nas 17 vezes que passei por essa situação.
O curso também te prepara para lidar com uma lista de emergências outdoors menos comuns, mas muito mais interessantes, algumas das quais se cruzam com minhas próprias experiências.
Como a vez em que meus três irmãos e eu estávamos bancando os espertos ao fazer mountain bike no Moab, em Utah, durante os dias mais quentes do verão. Fazia uns 40 graus, e meu irmão Steve de repente desapareceu. Encontramos o cara pelado, escondido debaixo de um espinheiro, murmurando de um jeito bizarro e derramando o que sobrou da sua água na região genital. Ele estava com insolação, o que poderia ser fatal, ou era só exaustão causada pelo calor? Provavelmente insolação por esforço, a julgar por seu nível de reação. É claro que a gente não fazia a menor ideia disso na época, por isso o molhamos com água e o forçamos a beber. Graças a Deus, ele se recuperou.
TREINAMENTO: No curso de medicina outdoor, exercícios práticos são obrigatórios
Teve ainda aquele ano em que eu estava descendo o Denali e encontrei um casal francês subindo aos trancos e barrancos a montanha rumo ao cume. A mulher estava sendo praticamente puxada pelas cordas, e suas maçãs do rosto e o nariz estavam brancos. Sem pedir permissão, coloquei minha mão nas bochechas dela e expliquei-lhe que estava tendo queimaduras por frio. A moça parecia confusa. Disse ao casal que eles estavam andando devagar demais e deveriam dar a volta. O parceiro dela me xingou, e os dois continuaram. Dez horas depois, começou uma operação de resgate. A mulher acabou sendo arrastada montanha abaixo em um saco de dormir, com queimaduras de frio não só no rosto, mas em todo um lado do seu corpo.
Outra lembrança: o ano em que escalei o monte Quênia e topei com quatro encanadores de Londres, um dos quais sofrendo de uma um sério mal-estar de altitude. Era um cara gigante, que sentia uma dor de cabeça de rachar o crânio, tinha a pulsação acelerada e a respiração ofegante, além de vomitar e estar com uma leve falta de coordenação dos movimentos. Falei aos ingleses que eles precisavam levar seu amigo para baixo imediatamente. O grupo se ofendeu. Era a expedição deles – passaram anos planejando essa aventura. Em 48 horas, foram do nível do mar a mais de 4.250 metros de altitude, e nenhum norte-americano metido a esperto iria pará-los. Fazer o quê? Continuei meu caminho.
Às três da madrugada, ouvi batidas na porta da minha cabana. Eram os encanadores. O amigo deles agora estava inconsciente. Ele tinha se cagado, mijado e vomitado todo, e sua respiração estava difícil. Pegando emprestados os carregadores de meia dúzia de outras equipes, organizamos uma operação de resgate. Carregando o gigante numa maca, o levamos até um ponto de ônibus a 3.000 metros de altitude onde, sem uma palavra de agradecimento, os três encanadores o abandonaram e voltaram à montanha – onde, karmicamente, não conseguiram chegar ao cume.
O TIPO DE CURSO QUE decidi fazer é do mesmo tipo que a maioria dos guias de montanhas e de rafting, patrulheiros de esqui e gerentes de programas recreativos é obrigada a cursar. Mas ele também é perfeito para quem gosta de passar muito tempo em regiões selvagens. Aprendemos a medir sinais vitais – pulsação, pressão sanguínea, temperatura – e ler o que esses números querem dizer. Aprendemos a improvisar talas para dedos deslocados e pés quebrados, como fazer uma tala de tração para um fêmur quebrado, como imobilizar um paciente em uma maca, e até mesmo como dar uma injeção de soro salino. Para mim, a habilidade mais valiosa que aprendi foi como realizar uma avaliação de coluna vertebral.
Não acho que eu já tenha tido um parceiro de alpinismo, esqui ou canoagem que não tenha sofrido uma queda grave em algum momento – batendo a cabeça, machucando as costas, dando de cara numa árvore, topando o pé numa pedra e, inevitavelmente, quebrando algo. Braços e pernas são uma coisa, mas machucar as costas ou o pescoço é algo delicado: faça um diagnóstico incorreto e a coluna vertebral pode acabar partida, causando paralisia ou morte. Em uma avaliação de coluna bem feita, que é realizada somente depois da avaliação geral do paciente, há cinco passos bem definidos a serem seguidos que podem dizer de modo preciso se o paciente precisará ser carregado, ou se ele pode andar por conta própria.
Dois anos atrás, fui apanhado por uma avalanche enquanto escalava no gelo. Meu parceiro foi varrido e, quando consegui alcançá-lo, ele estava pendurado por uma corda, de cabeça para baixo. Eu o soltei e o coloquei deitado na neve, e fiz tudo que pude pensar naquela hora. Se soubesse na época como fazer uma avaliação de coluna vertebral focada, saberia que meu parceiro tinha quebrado o pescoço e eu não poderia fazer nada para salvá-lo. Do jeito que aconteceu, quase surtei de tanta ansiedade.
Perto do fim do curso, participamos de um exercício noturno de quatro horas nas montanhas, a mais de 3.000 metros de altitude. O vento estava tão forte que parecia que iria arrancar as estrelas do céu. Fomos divididos em equipes e enviados para a floresta gelada, com neve até os joelhos. A lua estava brincando de esconde-esconde. Nossas lanternas de cabeça balançavam como borboletas fosforescentes.
Por alguma razão, estou pensando na lição de Dusty Downey sobre como usar uma injeção de epinefrina para compensar o perigoso choque anafilático. “Não tenha medo”, ele insistiu. “Enfie-a de uma vez na coxa do paciente. Em algumas situações, é a única coisa que pode salvá-lo. E nada – nada mesmo – é mais importante que salvar a vida de uma pessoa.” Sua voz falhou quando ele disse isso, e dava para ver que ele tinha uma história que não iria contar ali. Agora, arrastando-me pela neve azul sob as estrelas, ocorre-me que esta, em resumo, é toda a razão para o curso que estou fazendo: adquirir a capacidade de salvar uma vida humana.
Depois de uma hora de caminhada noturna na neve, minha equipe ouve um grito e começamos a correr por entre as árvores. Encontramos nossa vítima na base um pequeno barranco. Ele havia caído. Está gritando dor. Será que quebrou a coluna? Uma perna? Perfurou um pulmão? Bateu a cabeça?
Não importa. Agora a gente saber o que fazer.