Perigo que vem do céu

A chegada de helicópteros que voam muito alto ao Everest e outras montanhas do Nepal provocou uma revolução no sistema de busca e resgate no topo do mundo. Mas, além de salvar vidas, essas máquinas voadoras também têm causado caos por lá, transformando-se em um problema às vezes mortal

Por Nick Heil


LUZ NO FIM DO TÚNEL: De lanterna de cabeça, escaladores exploram as
montanhas na região do Khumbu, no Nepal
(FOTO: Alex Treadway)

NA MANHÃ DE 7 DE NOVEMBRO DE 2010, Sabin Basnyat, 34, um dos melhores pilotos de helicóptero do Nepal, decolou num Eurocopter AS350 B3 do pequeno aeroporto de Lukla. Dois escaladores estavam presos na aresta norte do Ama Dablam, montanha de 6.812 metros localizada a 19 quilômetros do Everest, e Sabin havia sido destacado para resgatá-los.

Era um bom dia para voar – pouco vento e céu aberto –, e Sabin e seu paramédico de montanha, Purna Awale, ambos funcionários da Fishtail Air, uma das maiores empresas privadas de helicópteros, voaram em direção ao horizonte montanhoso. Os escaladores profissionais, um alemão chamado David Gottler e seu colega japonês Kazuya Hiraide, estavam tentando abrir uma nova via na íngreme face norte do pico para atravessar o cume e realizar uma rápida descida pela aresta sudoeste, mais tradicional e fácil. Mas, ao chegar aos 5.790 metros da aresta norte, descobriram que a passagem estava bloqueada por formações imensas de neve e gelo parecidas com cogumelos. Os escaladores haviam levado apenas um mínimo de equipamento, e desescalar pela própria face norte era impossível.

Recentemente, David havia ouvido histórias de escaladores do Himalaia sendo resgatados por helicópteros a altitudes extraordinárias, e como agora os celulares funcionam na região do Khumbu, ao redor do Everest, ele conseguiu ligar para o operador da sua expedição e pedir para ser retirado da montanha de helicóptero na manhã seguinte.

Às nove da manhã, Sabin estava pilotando seu B3 calmamente em direção aos dois homens. Pelo fato de o ar ser tão rarefeito a 5.700 metros, Sabin tinha que se aproximar muito lentamente, com os esquis do helicóptero mal tocando a neve. A essa altitude, ele e Purna poderiam carregar apenas um passageiro por vez. Os montanhistas haviam tirado par ou ímpar, e David havia vencido. Uma vez dentro do helicóptero, voaram até a vila de Chukhung, onde o alemão ficou, e decolaram uma vez mais para resgatar o japonês.

Do local onde havia sido deixado após o resgate, David podia ver a aresta e filmou o helicóptero retornando para buscar Kazuya. Sabin aproximou-se como da primeira vez, chegando lentamente à aresta até estar a poucos metros de Kazuya. O B3 estava quase acima da cabeça do escalador quando ele ouviu um estrondo e recebeu uma chuva de neve e gelo na cabeça.

Sabin bateu com o rotor principal na aresta da montanha. Como um raio, a lâmina se desintegrou. Miraculosamente, Kazuya saiu ileso, mas pode observar, horrorizado, a máquina destroçar-se e rolar montanha abaixo, ricocheteando várias vezes no maciço de rocha até parar 1.500 metros abaixo. Quando a segunda equipe de resgate chegou à cena, encontrou Sabin e Purna mortos. Kazuya passou mais uma noite na aresta, e a Fishtail o resgatou na manhã seguinte com outro B3.


POR UM TRIZ: Escalador atravessa uma greta
em Khumbu
(FOTO: Peter Mcbride)

A TRAGÉDIA IMPRESSIONOU a comunidade de montanhistas do Himalaia. Desde o terrível desastre do Everest de 1996, que deixou oito escaladores mortos num mesmo dia, os acidentes de montanha levantaram duras questões a respeito do risco e da responsabilidade nos picos mais altos do mundo. Desta vez, no entanto, a reação foi intensificada pelo fato de as mortes terem sido causadas pela mesma máquina que deveria estar salvando vidas.

De maneira geral, os esforços para melhorar a segurança no Himalaia, e no Everest em particular, têm melhorado muito nos últimos 15 anos. No Everest, onde várias centenas de escaladores atacam o cume a cada ano, as cordas fixas estendem-se praticamente pelo caminho inteiro; um pronto-socorro de montanha é montando a cada temporada no campo base; o treinamento e os equipamentos dos sherpas, nativos do Nepal que são a força de trabalho na região, melhorou dramaticamente; e operadores comerciais, escaladores e guias agora se comunicam e cooperam.

Com o aumento do uso dos helicópteros B3 – leves e potentes aeronaves desenhadas para operar acima dos 7 mil metros –, tanto o serviço de busca e resgate quanto o comércio na região deram um grande passo à frente. Os B3 têm sido utilizados em resgates em outros destinos de montanha, especialmente nos Alpes, onde salvaram centenas de vidas. Mas, no Nepal, já foram usados de maneira um tanto inusitada, incluindo um voo em 2005 no qual um piloto francês colocou uma modelo nua no cume do Everest. Nos últimos anos, a Fishtail Air, em parceira com a empresa suíça de helicópteros Air-Zermatt, fez com que uma pequena frota dessas máquinas realizasse centenas de resgates no país – entre eles, o de uma equipe de três espanhóis no Annapurna, a 7 mil metros, considerado o resgate aéreo mais alto da história, e a retirada da escaladora americana Cleo Weidlich de um ponto a 6.400 metros no Kanchenjunga.

Porém, como bem ilustra o acidente mortal no Ama Dablam, os helicópteros também introduziram uma nova e assustadora dimensão de risco a essa trama toda. A altitude extrema combinada ao tempo imprevisível (e às vezes violento) do Himalaia potencializa até os menores erros dos pilotos. O Nepal tem uma história triste de aviação civil: pelo menos cinco helicópteros caíram nas montanhas desde 1997 (nenhum deles era um B3). Um relatório de 2009 descreve detalhes de 43 acidentes aéreos com aviões e helicópteros desde 1990, resultando em 338 mortes. Uma recente análise feita por um grupo chamado Initiative for Aviation Safety (Iniciativa pela Segurança Aérea), do Nepal, bota grande parte da culpa nas companhias aéreas do país, que demonstram “profunda negligência com normas e regulamentações”.

NO CAMPO BASE DO EVEREST, há dois helipontos a algumas dezenas de metros dos acampamentos de expedições, e os pousos frequentes incomodam os escaladores. Alguns se preocupam com o fato de que a presença dos B3 pode alterar a tomada de decisões das expedições, encorajando montanhistas a irem além de seus próprios limites. Apesar de David Gottler ser inflexível ao dizer que a facilidade de chamar um helicóptero não afetou suas decisões durante a escalada no Ama Dablam, a ampliação do sistema de segurança está mudando inerentemente o montanhismo no Himalaia. “Antigamente, todos eram autossuficientes”, diz o alpinista Conrad Anker, 49, que fez o cume do Everest duas vezes. “Quando acontecia um acidente, era preciso ter todos os meios necessários para sair da montanha por si mesmo.”

Há provas de que os helicópteros no Nepal estão sendo cada vez mais usados em circunstâncias questionáveis. Pelo fato de as aeronaves serem extremamente caras – um B3 custa US$ 2 milhões, sem contar o piloto e seu treinamento –, a Fishtail e três outras empresas de helicópteros da região têm que vender o máximo possível de voos para conseguir algum lucro. Isso gera vantagens, como o frete de materiais de construção para escolas e hospitais com subsídio do governo ou o transporte de nepaleses doentes que vivem em vilas remotas. Enquanto isso, para atrair clientes privados, as empresas de helicópteros oferecem comissões a operadoras que acionem voos – até 10% em serviços que podem chegar a US$ 2.500 a hora. O resultado é que as agências de escalada e trekking ficam altamente motivadas a encorajar qualquer cliente com dor de cabeça ou unha encravada a pegar uma carona para sair da montanha, desde que tenham contratado um seguro ou possuam dinheiro para pagar pelo voo. Um veterano do Everest reclamou que um escalador foi evacuado de um lugar não muito alto mesmo ainda conseguindo caminhar.

No pico da temporada de primavera, frequentemente há três ou quatro voos por dia saindo do campo base do Everest (que, estando a 5.360 metros, é acessível para vários modelos de helicópteros). Os voos panorâmicos são outro negócio em expansão na região. Há relatos de montanhistas que realizam suas saídas de aclimatação e depois descem de helicóptero até Katmandu para se recuperarem em hotéis confortáveis e então voarem de volta ao campo base para começar o ataque ao cume.

“Esse tipo de coisa está acontecendo de verdade”, diz Eric Simonson, co-proprietário da International Mountain Guides, operadora veterana de Everest. “Mas é raro.” Russell Brice, proprietário da Himalayan Experience, uma das maiores operadoras da montanha, faz eco ao colega. “Os B3 conseguem entrar e sair rapidamente, e estão provando que são confiáveis”, diz Russell, cujos sherpas e guias participaram de vários resgate nos últimos anos. “Eles vão estar presentes lá no alto cada vez mais.”

Com os helicópteros se tornando um recurso no Himalaia, a questão passa a ser: o que isso significa para trekkings e escaladas pelas maiores montanhas do mundo? “É bom os helicópteros estarem lá”, diz Luanne Freer, médica de Montana que fundou e gerencia o Everest ER, clinica médica independente que atua no campo base.


P.S GELADO: Socorristas ajudam ferido no Denali, no Alasca
(FOTO: David Hanson)


SUFOCO: Resgate no Everest, em 2006
(FOTO: Peter Mcbride)

OS RESGATES DE MONTANHA no Himalaia sempre foram improvisados. Apesar das melhoras na tecnologia e na comunicação, não há um “ligue-resgate” no Nepal, não existe uma equipe profissional de busca e resgate, nem departamento governamental à disposição para ajudar. Escaladores e trekkeiros confiam nas operadoras, nos colegas de expedição e na bondade de estranhos quando acontece algum problema. Até recentemente, os helicópteros vinham sendo o último recurso a ser usado, como no famoso ano de 1996, quando Beck Weathers e Makalu Gau foram retirados do Everest a uma então altitude recorde de 6 mil metros.

Foi um escalador em semelhante situação de desespero que mudou essa situação. Em 2005, o renomado alpinista esloveno Tomaz Humar viu-se preso por uma avalanche a quase 6 mil metros na Rupal Face, assustador trecho de rocha e gelo no Nanga Parbat, montanha de 8.125 metros do Paquistão. Na época, Tomaz era herói nacional, e seu acidente tornou-se internacionalmente conhecido, acabando por fazer com que a embaixada eslovena contatasse a Air Zermatt, que conduzia resgates alpinos desde 1968. A empresa estava realizando uma operação de heli-ski no Himalaia e mandou seu melhor piloto de altitude, Gerold Biner, ao Nanga Parbat. Quando ele chegou lá, os militares paquistaneses já haviam tirado Tomaz do paredão usando um helicóptero francês chamado Lama, numa missão que quase matou todos os envolvidos: Tomaz ainda estava ancorado à rocha quando o Lama tentou decolar.

Quatro anos depois, em novembro de 2009, Tomaz estava escalando em solitário o Langtang Lirung, montanha de 7.227 metros no Nepal, quando caiu e quebrou a perna. Uma vez mais, a embaixada contatou a Air Zermatt, mas, antes que os suíços da empresa conseguissem chegar ao local, Tomaz morreu. O incidente incitou a Air Zermatt a convidar proprietários e pilotos da Fishtail Air – cujos três B3 eram as únicas aeronaves do tipo a pertencer a uma empresa nepalesa – a ir até a Suíça para aprender mais sobre buscas em que um resgatista precisa chegar ao local do acidente pendurado por um cabo. No verão seguinte, em 2010, Gerold Biner e vários outros pilotos da Air Zermatt viajaram até o Nepal para realizar missões de treinamento no Himalaia. Os primeiros meses do projeto, pagos pela Zermatt, foram bem. Os nepaleses aprendiam rápido, apesar de ainda precisarem desenvolver a capacidade de conduzir um regate em altitude sozinhos. Daí veio o desastre no Ama Dablam.


ALÉM DO CUME: Helicóptero B3 em uma missão
de grande altitude no Himalaia
(FOTO: Patrick Penna)

“Aquela missão aconteceu na hora errada”, diz Gerold. “Sabin e Purna haviam treinado o resgate com cabo, mas pedimos que não o realizassem, pois ainda não contavam com equipamento de comunicação apropriado. Então eles tentaram fazer o resgate da forma convencional, realizando o pouso parcial muito próximo à encosta.”

O acidente quase causou o cancelamento total do treinamento com helicópteros em altitude no Nepal. A Fishtail perdeu seu melhor piloto, um paramédico talentoso e uma aeronave caríssima. “Achamos que seria o fim do projeto”, diz Gerold. Em vez disso, a Fishtail retomou o programa assim que recebeu de volta um voluntário que havia ido embora logo após a tragédia: Simone Moro, conhecido alpinista italiano e piloto certificado de montanha, que recentemente realizou a primeira ascensão invernal do Gasherbrum II, de 8.034 metros, e que está na lista dos aventureiros do ano de 2011 da revista Outside (leia mais na pág XX). “Os pilotos nepaleses são bons, mas tenho mais experiência na montanha”, diz Simone, que já voou mil horas nos últimos dois anos e meio. “Não tenho medo de olhar lá para baixo.”
A Air Zermatt também voltou ao Nepal na última temporada de primavera, dessa vez para iniciar um programa de treinamento, aberto a qualquer piloto nepalês certificado, que irá durar até 2016 – se a empresa conseguir patrocinadores.

NEM MESMO UM ITALIANO MACHÃO pilotando o melhor helicóptero consegue salvar todo mundo – especialmente no Himalaia. Quando as condições não permitem resgate aéreo, são necessárias equipes terrestres. Por isso, nos últimos anos, Luanne Freer, do Everest ER, e David Weber, guarda de montanha do Parque Nacional Denali, nos Estados Unidos, vêm treinando uma equipe de guardas sherpas no Everest. “Helicópteros são sensacionais, mas não fazem milagre”, diz David. “É preciso gente no chão para estabilizar os pacientes e levá-los a um ponto de aterrissagem quando as condições não são ideiais.”

David acha que o método usado no Denali – um helicóptero de plantão rodando entre os acampamentos altos – é mais realista no Everest do que o sistema europeu, onde pilotos extremamente habilidosos regularmente arrancam esquiadores, escaladores e trekkeiros das montanhas nos Alpes. Desde 2009, David traz sherpas ao Alasca no verão para ensiná-los o modelo Denali. Este ano ele formou quatro sherpas em técnicas de resgate e os colocou no Everest, prontos para trabalhar. Um grande problema no Everest é que a maior parte das operadoras reluta em pagar por um sistema de emergência extra, já que os guias sherpas realizaram muitos resgates heroicos ao longo da história. “É uma boa idéia, mas é utópico. O trabalho de resgate que fazemos sozinhos foi sempre muito bom”, diz Russell Brice, da agência Himalayan Experience, sobre os rangers do Everest.

Ainda assim, conforme aponta David, o sistema atual de “a-gente-segura-a-onda” é um risco para os clientes. Pode também agregar custos às expedições em forma de oxigênio engarrafado e mão de obra (os sherpas que ajudam frequentemente esperam pagamento), e alguns cenários requerem experiência que muitos guias não têm.

A médica Luanne diz que ainda sofre com a memória de algumas tentativas de resgate mal-sucedidas, especialmente uma em 2005, quando um sherpa chamado Karma teve apendicite no campo 4. No momento em que chegou ao Campo 2, já não conseguia andar. “Os voluntários improvisaram uma maca e começaram a descer”, lembra ela. “Foram dias até que o descessem pela cascata. Era uma agonia ver a lentidão da volta. Eles estavam no campo de visão do campo base quando recebemos a última chamada pelo rádio: sem pulso, sem respiração. Um sherpa de 23 anos com a vida toda pela frente morto de apendicite porque não conseguiram trazê-lo a tempo.” Luanne acredita que, das 19 mortes na face sul do Everest desde que abriu a clínica, pelo menos um quarto poderia ter sido evitada, especialmente se houvesse uma equipe de terra disponível quando o helicóptero não pudesse decolar.

“Precisamos de profissionais treinados aqui, e um sistema que os apoie”, diz a médica, que encarou muito ceticismo quando abriu o Everest ER em 2003. Hoje os escaladores ocidentais devem contribuir com uma taxa de US$ 75 para ajudar a clínica, que se tornou um centro de atividades na montanha.


DE PLANTÃO: Transporte de feridos no campo-base do Everest
(FOTO: Jake Norton)

ENQUANTO ESSE TIPO DE INICIATIVA parece ser ainda rara, a invasão aérea está em plena marcha. Com 25 helicópteros operando atualmente no Nepal, o ruído dos rotores tem se tornado uma das características mais familiares da paisagem. Enquanto outras três empresas competem com a Fishtail e compram seus próprios B3, o palco está se armando para uma concorrência de alto nível pelo domínio do mercado, aumentando as chances de acidentes mortais.

Por sorte, há várias propostas sendo discutidas para organizar o tráfego aéreo, inclusive a de todos os voos que saem do campo base do Everest se concentrarem em um heliponto em Gorek Shep ou Lobuche. Outro esforço de conscientização é a exigência de que voos panorâmicos mantenham uma altitude mínima, como se faz nos parques nacionais norte-americanos, para controlar o nível de ruído.
Enquanto isso, a modernização do resgate de montanha no país caminha a passos largos. David Weber declara que tem recursos reservados para iniciar o programa de guardas-sherpas nesta temporada, apesar de ainda não estar muito claro como eles irão se coordenar com as evacuações aéreas. Gerold Biner tem pressionado o Ministério da Aeronáutica do Nepal a estabelecer protocolos claros para missões de resgate aéreo em altitude, incluindo um checklist de avaliação de fatores de risco que, pelo menos na teoria, evitaria tragédias como a do Ama Dablam.

Quando perguntei a David Gottler, o alpinista alemão que foi resgatado em 2010, como ele como se sente após o acidente, ele disse que ainda acha que os helicópteros são uma boa solução para a região. Ainda assim, há um custo, que inclui mais acidentes até que se consiga organizar um sistema melhor de gerenciamento. A região do Everest está voando para o futuro, mas conforme relatos dos veteranos estrangeiros que retornam a cada ano, ainda é uma fronteira onde a autorregulação domina o cenário. Podemos esperar turbulências adiante.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2012)