Muito além do asfalto


PEDALA: Ciclista durante uma das edições da RAAM

Foi dada a largada para a 31ª edição da prova de ciclismo mais desafiadora do mundo, a Race Across America (RAAM). Conhecida por uma logística insana, a prova leva atletas de todo o mundo a percorrer 4.830 quilômetros para cruzar os Estados Unidos de leste a oeste.

Ontem (dia 12), as mulheres deram início ao evento, em Oceanside, na Califórnia. Agendada para hoje, o pelotão masculino se prepara para começar o desafio. Este ano, a edição conta com a participação de 25 brasileiros, entre eles o santista Claudio Clarindo. “Vou competir com 50 ciclistas, todos com muita vontade de completar a temida RAAM. Com três participações concluídas, sou um dos mais experientes”, conta Clarindo.

A categoria por equipe larga no dia 16 de junho. Os atletas que concluírem o desafio terminarão a prova em Annapolis, em Maryland. Para mais informações, vídeos e fotos, acompanhe competição no site oficial do evento (raceacrossamerica.org).

No mês de junho na revista Go Outside (ed.85), você conferiu com exclusividade uma reportagem sobre os bastidores da competição. Leia a seguir o texto na íntegra e entenda por que a RAAM é tão temida e, ao mesmo tempo, admirada pelos ciclistas.


PLANETA BIKE: Na Race Across America, cada ciclista faz sua estratégia
e muitas vezes pedala sozinho durante dias

Prova de ciclismo das mais desafiadoras do mundo, a Race Across America não exige apenas pernas de aço, mas uma logística insana e um séquito de especialistas para acompanhar atletas para acompanhar atletas por 4.830 quilômetros nos EUA

Por Ana Paula Oliveira

TODO VERÃO NORTE-AMERICANO a cena se repete, e só a entende totalmente quem está lá dando o sangue na estrada: pelas rodovias que cruzam os Estados Unidos da costa oeste até a leste, hordas de ciclistas atravessam o país em uma competição de 4.830 quilômetros sob um sol escaldante seguido de noites mal-dormidas. A lado de cada um deles, seguem veículos repletos de treinadores, mecânicos, nutricionistas e outros especialistas em fazer com que as pessoas em cima das bikes não sucumbam diante de tanta exaustão física. Criada em 1982 por quatro colegas que disputaram quem chegaria primeiro de Santa Monica, em Los Angeles, até o Empire State Building, em Nova York, a Race Across America (ou RAAM, como é conhecida) atrai anualmente centenas de malucos do pedal dispostos a encarar um desafio insano por puro amor à magrela. E há cada vez mais brasileiros entre eles.

A 31ª edição da competição tem largada no dia 12 de junho em Oceanside, na Califórnia, e chegada em Annapolis, em Maryland. Cruza 12 estados do país e contabiliza quase seis vezes a elevação do Everest em ascensão acumulada. Neste ano, além das categorias solo, dupla e quarteto, haverá pela primeira vez octetos. Para se ter uma ideia da grandiosidade do evento, 2011 teve a participação de 330 atletas, mais de mil pessoas nas equipes de apoio, além de 250 funcionários da organização. A edição de 2012 terá 25 atletas canarinhos, divididos em quatro quartetos, um octeto e um solo (o santista Claudio Clarindo).

>> E para os iniciantes…
Uma boa pedida é a Race Across the West (RAW), versão compacta da prova. Ela viaja pelos primeiros 1.400 quilômetros da RAAM e serve como uma classificatória para sua irmã mais longa. Em seu quinto ano consecutivo, a prova conta com os formatos solo, dupla e quarteto. Não menos difícil, é um estilo ideal para quem não conseguiu tirar tantos dias de férias ou ainda não se sente preparado para cruzar a América sobre a bike. >>

Diferentemente de provas nas quais só disputam profissionais como o Tour de France, o Giro d’Italia e a Vuelta a España, a RAAM é aberta a amadores e acontece continuamente, sem etapas, ou seja, não há largada e chegada diárias. Cada competidor escolhe quando descansar, quantas horas dormir e quanto tempo ficar em cima da bike. Após o início oficial, o cronômetro só para no dia 25 de junho – isso significa que, para cruzar a linha de chegada, é preciso vencer não apenas os outros, mas o sono e o desgaste físico e psicológico. Escolher uma estratégia certa – o que inclui decidir quando dormir e comer e de quanto em quanto tempo realizar o revezamento dos atletas – é essencial.

POR TRÁS DE QUEM ESTÁ SOBRE O SELIM, mesclam-se chefes de equipe, treinadores, mecânicos, nutricionistas, médicos, navegadores e, de vez em quando, até cônjuges e amigos torcedores. A essa babel do ciclismo, que quase sempre se abriga em trailers, somam-se problemas de todas as naturezas, da verba curta à falta de banho (lenços umedecidos são os melhores amigos dos competidores e seu time), passando pelas quase sempre inevitáveis tensões entre os competidores, que passam dias e dias num, verdadeiro reality show feito de bicicletas, trailers apertados e muito cansaço acumulado.

Expoente e veterano da prova, Ricardo Arap, treinador da Race Assessoria Esportiva, já foi para a RAAM oito vezes, nas categorias solo, dupla e quarteto. Em duas ocasiões, abandonou a competição – em uma delas, apenas 48 horas depois da largada. “Foi uma sucessão de erros que culminou na minha desistência”, confessa ele, que estará lá novamente este ano, em um quarteto. “Hoje faço diferente. É imprescindível estar preparado psicologicamente para não sucumbir no meio do caminho.”

A equipe por trás dos ciclistas é responsável por praticamente tudo e um bom apoio é disputado quase que a tapa. Alimentação e hidratação, navegação, roupas limpas, medicamentos e suplementos, reparos e manutenção das bikes, acessórios e equipamentos – eles cuidam de tudo para que o atleta tenha em mente apenas uma meta: pedalar forte pelo maior tempo possível. Em média, duplas e quartetos costumam pedalar diariamente de 550 a 800 quilômetros, enquanto quem vai solo contabiliza de 400 quilômetros a 550 quilômetros rodados a cada 24 horas.


AMOR À BIKE: Largada de 2011; à dir., o santista Claudio Clarindo, que
compete na categoria solo
(FOTO: Marcio Milan (esq) Claudio Clarindo)

Encontrar um time de apoio que esteja afinado com os propósitos dos atletas é o começo da jornada. A maioria dos integrantes do apoio não é remunerada, mas mesmo assim eles precisam aguentar dirigir horas a fio, ter conhecimento de navegação, tolerar falta de sono, conseguir dormir dentro de um trailer durante dias seguidos e lidar bem com a convivência repleta de pressões e responsabilidades. “É importante que todos tenham algum conhecimento de ciclismo para entender os atletas e suprir suas necessidades”, afirma Mario Sanchez, que chefia duas equipes que disputarão a RAAM neste ano.
PEDALA: Ciclista dando duro na RAAM e, ao lado, atleta tenta se
recuperar em banho gelado

Já os atletas precisam ter capacidade física e mental suficientes para pedalar sem parar, faça chuva ou faça sol. É preciso suportar temperaturas entre zero grau (na altitude do Colorado) e 40 graus (no deserto do Arizona). “Não paramos em nenhum momento em hotéis ou restaurantes. Dormimos no carro durante uma semana”, conta Mario. A estratégia varia de acordo com cada equipe e categoria. “Meus quatro ciclistas se revezam a cada hora durante o dia, pois é muito quente e, à noite, pedalam duas horas cada um. Isso ajuda a aumentar o intervalo de sono deles à noite”, afirma.

Um bom mecânico é, claro, indispensável. “A maior parte da prova está na mão do apoio. Quando a equipe toda está comprometida com a prova, com a estratégia, com o planejamento e com a navegação, as surpresas e os imprevistos são bem menores. A concentração é extremamente relevante, porque evita acidentes, penalidades e perdas de percurso”, diz o empresário Marcio Milan, que já participou sete vezes da RAAM e volta este ano em um quarteto misto.

ENQUANTO O CICLISTA ESTÁ NA ESTRADA, ele tem a escolta obrigatória de uma van, que segue logo atrás dele orientando a rota. Já o trailer com o apoio e os outros atletas da equipe espera no ponto de encontro mais adiante, cuidando de tudo para que a hora do revezamento seja perfeita. Assim que desponta no horizonte, o próximo ciclista já está com a bike a postos, aquecido, alimentado e pronto para encarar a perna seguinte.

No quarteto de Mario Sanchez, por exemplo, há uma equipe de apoio com 12 pessoas, duas vans e um trailer. Nas vans e na cabine do trailer vão um motorista e um navegador. O local sagrado de todas as equipes é a cozinha, de onde saem todas as refeições. “Antes de largar, providenciamos um belo estoque de alimentos sugeridos por nosso nutricionista”, diz Mario.

Depois que encerra seu turno, antes de cair na cama, o ciclista precisa ainda rever a estratégia das próximas horas, alimentar-se e hidratar-se, talvez passar pela sessão de massagem, alongamento e tudo mais que estiver disponível para que se recupere rapidamente. A brasileira Daniela Genovesi, aliás, lançou mão inclusive da yoga nos poucos momentos de descanso para ajudá-la com seu feito incrível e inédito: em 2009 não apenas conquistou o campeonato da prova solo como se tornou a primeira sul-americana a terminar a competição. No percurso, foram quase 12 dias pedalando cerca de 20 horas diárias. “Perder” algumas horas para fazer sessões de yoga foi fundamental para mantê-la centrada durante todo o percurso.

Um dos pontos fortes do empresário Ronaldo Mattar, que por duas vezes esteve na RAAM, como apoio e como atleta em dupla, foi sua extrema organização – de treinos à logística do percurso. “É uma piração participar de uma prova dessa. Apesar de tudo, sinceramente não sei se voltaria lá”, diz. Antes de estrear como atleta na RAAM, Ronaldo treinou com seu parceiro de prova por aproximadamente um ano. “Focamos no treinamento de volume, intensidade e qualidade”, conta, dizendo que chegou a pedalar 700 quilômetros a cada duas semanas.

Mas é possível treinar em menos tempo. O ideal, de acordo com Marcio Milan, que também pratica ultramaratona, é dedicar oito meses à preparação, com treinos de percursos variados, incluindo subidas, pedais noturnos, dias de chuva, frio e vento. “É interessante realizar pelo menos um simulado para testar a prova o mais próximo da realidade possível”, diz ele. Como estratégia para melhorar o resultado obtido no passado (sete dias e 16 horas, completados na categoria quarteto), ele vem treinando cerca de 300 quilômetros por semana. Os treinos começaram em julho de 2011. “É indispensável também se dedicar ao fortalecimento muscular, no mínimo, duas vezes por semana”, finaliza Marcio, autor do livro Vencendo Desafios (editora Atheneu), no qual narra a história de um homem apaixonado pelo esporte.

O CUSTO DE UMA PROVA DESSAS varia conforme o conforto e a qualidade dos equipamentos usados − pode ser feita com menos carros, menos pessoas no apoio, bikes mais baratas. As inscrições vão de US$ 2.000 a US$ 5.000, dependendo da categoria. Uma equipe mais modesta gasta cerca de US$ 40 mil na brincadeira, enquanto uma mais abastada como a de Ricardo Arap desembolsa algo em torno de US$ 60 mil. “Qualquer um pode participar. Basta se planejar, tanto em relação aos custos quanto em relação ao treinamento”, diz Ricardo.

>> A RAAM em números
>> Um ciclista chega a gastar 6.000 calorias por dia durante a prova
>> As equipes têm nove dias, no máximo, para completar o percurso – mas a maioria termina em sete dias e meio
>> Atletas solo têm 12 dias para concluir a prova (o mais rápido terminou o percurso em oito dias)
>> Em equipes de oito, cada atleta pedala cerca de três horas por dia
>> A idade dos inscritos varia de 13 a 75 anos
>> 40% dos ciclistas são de fora dos EUA
>> 15% são mulheres
>> A RAAM é uma ótima plataforma para levantar fundos de caridade: por ano, mais de US$ 2 milhões são arrecadados para as mais variadas causas

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2012)