Modalidade amadora do ciclismo de longa distância, o Randonnée – ou “Audax”, como é conhecido por aqui – atrai cada vez mais brasileiros apaixonados por desafios em duas rodas
Por Bruno Romano
SOZINHO EM ALTO MAR e diante do desafio de dar a volta ao mundo, o expedicionário brasileiro Amyr Klink criou alguns “jogos” para sua mente esquecer como o destino final estava longe. Pensar no percurso completo era muito desanimador, ainda mais com os pés encharcados há semanas – como o navegador relata no livro Mar sem Fim (Cia. das Letras). A solução foi manter a carta náutica dobrada. Seu objetivo passou a ser chegar ao fim da próxima dobra, completando assim uma linha imaginária ao redor do planeta.
A estratégia também é bastante usada pelos randonneurs, como são conhecidos os ciclistas amadores adeptos de uma modalidade em que não há vencedores. O que vale é chegar dentro de um tempo estipulado pela organização – em outras palavras, os eventos são de regularidade – e completar os brevets (como são chamadas as provas) progressivamente. Como nas aventuras de Amyr, não há uma corrida contra o relógio (nem contra ninguém). É a autossuficiência, aliada ao bom preparo e a administração do esforço, que molda um bom randonneur.
“O amadorismo é a forma que escolhemos, anos atrás, para promover o verdadeiro espírito do ciclismo. Continuamos fazendo isso ainda hoje, pois acreditamos que é a melhor maneira de espalhá-lo pelo mundo”, explica Jean-Gualbert Faburel, vice-presidente do Audax Club Parisien (ACP), a entidade máxima da modalidade no mundo, que funciona desde 1904 (um ano depois do primeiro Tour de France). O órgão francês é o único que pode certificar os feitos, por meio de um número de homologação. A partir dele, o ciclista pode fazer um brevet maior, no mesmo ano-calendário (de novembro a outubro), seguindo a sequência de 200, 300, 400, 600 e 1.000 quilômetros, culminando na mítica Paris-Brest-Paris (PBP) – evento de 1.200 quilômetros que nasceu em 1981 como uma competição quase impossível em que bikes precárias atravessavam essa enorme distância em estradas de terra.
O percurso da PBP continua o mesmo, mas a forma de completá-lo mudou: saíram as provas com vencedores, e foram criados os Audax (onde um único pelotão faz o trajeto com uma cadência determinada) e depois os Randonnée, onde cada um decide seu ritmo. No Brasil, os dois nomes viraram uma coisa só: os eventos organizados no país são tecnicamente Randonnées, mas ficaram conhecidos como Audax, apesar das diferenças de formato.
“A ACP organizou provas no estilo Audax até 1921, ano em que começou a fazer os Brevets de Randonneurs Mondiaux (BRM), que são os mais praticados hoje em países como o Brasil. Do nosso ponto de vista, são a forma mais interessante de atravessar longas distâncias”, completa Jean-Gualbert, que herdou a paixão pelos brevets do avô, antigo dirigente do ACP. Para seguir participando dos brevets, Silvia teve de lidar com seu maior medo: o de ficar sozinha na estrada com a bike – que até 2011 era uma mountain adaptada e depois passou para um modelo de estrada. Chegando sempre nos tempos limites e administrando com garra suas dores e receios, ela “desabou de chorar” ao completar o brevet dos 300 quilômetros e “recebeu champanhe na cabeça” quando chegou a 20 minutos do corte no dos 400 quilômetros. Mas um erro de cálculo a fez perder um PC no terceiro dia de um brevet de 600 quilômetros. Para sua surpresa, outros ciclistas que participaram da mesma prova organizaram uma “vaquinha” para Silvia participar de outro Audax 600, duas semanas depois (a inscrição custa, em média, R$ 25, mas há gastos com transporte até a prova, hospedagem e alimentação). Ela aceitou o desafio e fechou a série brasileira em 2011, o que lhe dá o direito de ir à Paris-Brest-Paris, realizada de quatro em quatro anos (para participar da PBP, é preciso completar ao menos o brevet de 600 quilômetros).
“Em ano de PBP, a motivação acaba sendo maior entre os participantes”, destaca Denis Cardoso, 37 anos, presidente do Audax Brasil, de São Paulo. Organizador e participante (“brevetou” até os 400 quilômetros), Denis foi o responsável pela relação com o ACP de 2007 a 2009. A função de representante do ACP no país pertence hoje ao gaúcho Roberto Trevisan. “O Rio Grande do Sul tem um contingente maior de participantes, e é bom existir esse revezamento”, conta Denis, que quer organizar neste ano provas mais “autossustentáveis”, baseadas nas experiências que teve fora do país. O tema é bastante discutido entre organizadores brasileiros, que costumam debater, juntos, o calendário de cada ano.
“Buscamos mais estrutura porque temos sempre muita gente nova nas provas”, resume Martin Montingelli, publicitário de 36 anos que participa e é voluntário nas provas do clube Audax Randonneurs São Paulo. De fato, a cultura de bike na Europa e em países como Canadá e Austrália (dois com tradição em Audax) é bem mais desenvolvida, assim como a malha rodoviária e a educação dos motoristas de lá. “A organização nunca terá fins lucrativos. O que pode sobrar de grana em um brevet de 100 ou 200 quilômetros será usado em uma prova de 600 quilômetros, que exige mais apoio”, completa Martin. A intenção de dar suporte maior é apoiada pelo Audax Club Parisien. “Queremos focar na qualidade das provas, com respeito às regras e à segurança dos ciclistas, e não em promover a habilidade dos organizadores em ganhar dinheiro”, diz Jean-Gualbert.
Tudo para que o lema de que “qualquer um pode competir (e completar)” seja mantido. “Todo tipo de bike é permitido: mountain, tandem, fixa etc. Vale até mesmo patins ou qualquer outro equipamento de propulsão humana. Em Paris, no ano passado, uma senhora completou uma Audax de Ceci, com cestinha e tudo”, diz Martin. Para ser homologado, o ciclista tem de cumprir um horário limite (ver quadro), com as únicas obrigações de comparecer na largada com capacete, colete refletor e luzes dianteiras e traseiras e de carimbar sua passagem nos PCs.
O BRASIL VEM GANHANDO DESTAQUE NA ACP. Das 45 nações associadas em 2011, o país foi o 10º em número de quilômetros rodados. “Em 2003, tivemos o primeiro brasileiro a completar uma série aqui, o Manuel Terra. Ele foi o único brasileiro a concluir uma PBP naquele ano. Já em 2011, dos quase 6 mil inscritos, 58 eram brasileiros”, afirma Rogério Pólo, engenheiro químico e organizador do Audax Randonneur São Paulo, clube que registrou 269 homologações no último ano-calendário.
Antes de Manuel, o gaúcho Kaio Oliveira foi o primeiro a fazer 1.200 quilômetros, na Boston-Montreau-Boston, completando a PBP no ano seguinte, mas brevetando a série até 600 quilômetros fora do Brasil. Hoje, com a criação de novos clubes, já é mais fácil carimbar o passaporte em solo nacional. A ACP deu 2.025 homologações a brasileiros em 2011, contra 51 em 2003.
O Clube Audax de Porto Alegre foi fundado em 2008. Em quatro anos, organizou 16 provas, com 810 inscrições e 676 homologações. Em 2012, já foram feitas duas provas e mais cinco estão programadas (veja datas e locais dessas e de outras em randonneursbrasil.com.br). “Gostei da ideia de não ser uma competição e sim uma prova de superação. Quem faz um brevet de 200 quilômetros em 13 horas recebe a mesma medalha de quem faz em 6 horas”, resume Cícero Vargas, presidente do clube.
Sem ganhar nada para isso, ele segue acreditando na modalidade, que sobrevive sem qualquer objetivo de lucro ou glória: “É um prazer ver os ciclistas chegando aos PCs, uns morrendo e rir, outros chorando muito. Não há dinheiro que pague assistir a tantas luzes saindo para um brevet mais longo, na madrugada. Tudo pelo simples prazer de pedalar”. Um prazer que existe para mostrar que, como dar a volta ao mundo sozinho em um barco, nada é impossível. (Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2012)
PELOTE: Participantes do Audax de Florianópolis, em 2010
(FOTO: Eduardo Green)
YES, I CAN: Nesta e na foto ao lado, ciclistas tentam completar brevet de 300 km em Brasília
(FOTO: cedida pela Audax Brasil e à direita Roberto Berlim)
DESDE QUE CONHECEU OS AUDAX, Silvia Oliveira não sossegou. Depois de trabalhar como voluntária em uma prova em 2010, ano em que começou a pedalar, a professora de educação física de 31 anos decidiu fazer um brevet de 200 quilômetros em Holambra (SP). “Fez um calor incrível, dá até arrepio de lembrar. Além de tudo, levei comida para caramba e sobrou quase tudo. Mas, no fim, me apaixonei e tive certeza de que a bike era muito mais do que eu imaginava”, diz ela.
UM PEDAL DE CADA VEZ: Ciclista se esforça para completar brevet de 300 quilômetros
(FOTO: cedida pela Audax Brasil)