Zen limites

No filme Transcendence, diretor neozelandês e pesquisador australiano desmistificam tabus e tentam provar que atletas de esportes extremos não estão nada interessados em morrer, mas sim em transcender estados de consciência

Por Maria Clara Vergueiro


ILHADO: Josh durante o trabalho de edição do filme Transcendence

O CANOÍSTA EXTREMO PROFISSIONAL Josh Neilson passou cinco anos viajando a bordo de seu caiaque, registrando as aventuras dele e seus amigos. As imagens reunidas pelo neozelandês foram transformadas em um filme para ajudar a captar recursos que contribuíssem com a saúde dos povos da região do rio Nilo, depois que ele mesmo caiu doente vítima de malária, em 2006, durante uma passagem por Uganda.

Depois dessa primeira experiência como cineasta, Josh tomou tanto gosto pelas câmeras que virou diretor de outros filmes. “Ao final das exibições, muitas vezes eu respondia a perguntas dos expectadores. E uma abordagem recorrente era a de que éramos loucos e de que, no fundo, desejávamos morrer. Embora eu soubesse que não era nada daquilo, eu não tinha palavras certas para convencer as pessoas do contrário”, conta Josh, que já inaugurou descidas na Nova Zelândia, Tailândia, Nepal, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Itália, Uganda e Zâmbia, além de ter se formado em Educação Outdoor.

Josh encontrou as respostas para essas perguntas na tese do australiano Eric Brymer, doutor em psicologia do esporte e em ciências do exercício e da nutrição. Eric tem se dedicado a explicar os ímpetos que motivam atletas de esportes extremos a superar seus limites. E ele sabe do que está falando: antes de se formar em psicologia do esporte, Eric trabalhou durante anos como treinador de caiaque de águas brancas. Suas pesquisas demonstram que, ao contrário do que costuma dizer o senso comum, esses atletas estão longe de ser suicidas – o que ocorre é que eles estão de tal forma conectados com suas ações que os riscos, consequências e sensações deixam de ser para eles o que parecem para nós. “Meu interesse com o filme era despir as imagens que vemos nos programas de televisão e mostrar o que está no corpo e na mente dos atletas de esportes extremos, desde a preparação e influências da infância, até a atividade em si, muitos anos depois”, explica Josh.


COLETIVO: Grupo de atletas de base jump saltam com Jokke Sommer em Voss, na Noruega


FÔLEGO: Canoísta em queda dupla no rio Tiedgale; ao lado, William
Trubridge sobe rumo à superfície depois de um mergulho profundo nas Bahamas

EM SUA TESE, defendida em 2005 pela Universidade de Wollongong, na Austrália, Eric classifica como “esportes extremos” aqueles que implicam risco real de morte (como por exemplo o BASE jump), e não os que oferecem somente grandes riscos de lesões (como skate e surfe competitivo). Sua teoria de que atletas extremos estão, na verdade, vivendo um outro grau de consciência e interação com a natureza está embasada nos conceitos da Fenomenologia – área das ciências humanas que acredita que um fato pode ser percebido de diferentes maneiras, dependendo de variados níveis de consciência e intuição. “Partindo do princípio de que uma experiência não permite apenas uma percepção, usamos métodos qualitativos para interpretar seus significados. Analisamos os depoimentos de 15 atletas de BASE jump, escalada free solo, esqui extremo, caiaque extremo e surf de ondas grandes”, explica Eric.

A pesquisa virou a espinha dorsal do novo documentário de Josh, Transcendence, em que o diretor apresenta quatro atletas: o mergulhador William Trubridge, o canoísta Mike Abbott, o base jumper Jokke Sommer e a campeã mundial de bike downhill Vanessa Quin. Assim como na Fenomenologia, o filme busca descobrir e descrever as “relações essenciais” existentes na realidade de cada um deles, numa tentativa de desconstruir o estereótipo de que atletas extremos são, simplesmente, “jovens loucos e viciados em adrenalina”. “Nenhum deles está no esporte para correr riscos. Muitos dos atletas entrevistados consideram atividades como dirigir mais arriscadas do que aquilo que fazem. Eles têm perfeita consciência das suas capacidades e do ambiente que os cerca”, declara Eric.

Transcendence – que o diretor lança em abril e pretende disponibilizar na internet, em canais de televisão, festivais, premières e DVD – foi filmado na Austrália, Bahamas, Estados Unidos, Noruega e Nova Zelândia, captando imagens fantásticas dos quatro personagens e depoimentos do pesquisador. “Uma coisa que eu aprendi ao realizar este filme”, relata Josh, “é que independente do ambiente com que cada atleta está envolvido – água, ar, rochas –, os traços psicológicos são os mesmos. Eles expressam sensações muito próximas em situações semelhantes, mesmo estando em lugares muito distintos”.


OLHO NO LANCE: Josh filmando cenas para Transcendence

Tanto os depoimentos dos atletas pesquisados na tese de Eric, como aqueles registrados no filme de Josh descrevem os momentos de concentração em suas respectivas performances como ocasiões em que sentem o tempo desacelerar, o corpo se fundir ao ambiente, e a sensação de paz e de estarem flutuando, por exemplo. Na fenomenologia, estas percepções são traduzidas como estados de transcendência do tempo, do espaço e do próprio corpo. Josh explica que existem dois tipos de medo: aquele que é inexplicável, que alerta que algo não está certo e que é melhor parar, e existe um outro, que pode ser superado e transformado em foco, em consciência plena. “Quando este segundo tipo de medo é superado e eles experimentam um vôo, mergulho, descida ou ascensão incrível, isso dá a eles um enorme sentimento de realização e os torna mais confiantes para as experiências posteriores”, conclui Josh.

“Quando li a pesquisa do doutor Eric, tive uma profunda compreensão de mim mesmo e dos outros atletas de esportes extremos”, conta Josh. “E, assistindo o filme depois, tive certeza de que nele conseguimos mostrar este outro lado desses esportes”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2012)