Roendo pelas bordas

Sem grana, com poucos equipamentos mas com um profundo espírito outsider, o escalador gaúcho Ricardo “Rato” Baltazar brilha em duas temporadas na Patagônia, fincando seu nome entre os mais promissores do esporte no Brasil

Por Mariana Mesquita


DETERMINAÇÃO: Rato curtindo as rochas da Patagônia

SABE AQUELES ESCALADORES QUE ORGANIZAM suas expedições com o maior cuidado e perfeição, sempre em busca de novos recordes? Pois o gaúcho Ricardo Baltazar definitivamente não está entre eles. Para este talento de 30 anos, que já crava seu nome entre os mais promissores de seu esporte no Brasil, o que vale mesmo é deixar a vida seguir o curso natural – mesmo que isso signifique arriscar a pele em escaladas tenebrosas, sem muita grana, com pouco equipamento e quase nada de preparação. Para ele, adepto de um estilo bem outsider e simples de encarar paredões rochosos, o que vale é curtir o visual, de preferência do alto de uma via, cercado de frio, vento e morros.

Recentemente, “Rato”, como é conhecido pelos amigos, brilhou em suas duas temporadas na Patagônia. Esteve nos oito cumes das oito montanhas que se propôs a subir – incluindo os desafiadores Fitz Roy e agulha Poincenot, em El Chaltén. As conquistas no sul da América do Sul foram tantas que seu nome ganhou respeito e admiração nos círculos de escaladores brasileiros. E quem disse que Rato se deslumbra com tanta projeção? “Nunca tive verdadeira ambição de escalar as vias que fazendo. As coisas fluem de acordo com meu tempo e minha energia em determinado momento. Sempre foi assim para mim”, diz ele.
No currículo de Rato, que começou a escalar aos 15 anos, estão ascensões no interior do Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro e em Santa Catarina. Além disso, ele viajou duas vezes para Mendoza, na Argentina, com mochilas remendadas, roupas de escalada feitas em casa, nada de experiência e muita força de vontade. Foi assim que, em 2001, “sem dinheiro nem para um cafezinho”, conheceu o Aconcágua (6.962 metros), a mais alta montanha da América do Sul, onde quase teve seus pés congelados. “Quando enfrento um perrengue desses, só tem um caminho: Marlboro, uísque e uma Bíblia”, brinca ele, sobre seu modo pouco ortodoxo de superar os perrengues.


NO FUNDO: Cavando para bivacar na agulha de Poinceno; à dir.,
na via do Compressor

EM 2010, RATO DESEMBARCOU pela primeira vez em El Chaltén, cidade localizada no Parque Nacional Los Glaciares, paraíso dos praticantes de escalada, na Patagônia argentina. Na ocasião, Rato subiu a Laguna de Los Tres, a trilha mais famosa da região, de onde é possível avistar o mítico Fitz Roy (3.375 metros), considerado uma das paredes verticais mais exigentes do continente. “Foi esclarecedor. Naquele dia, pude entender o que era essa montanha. Com aquela visão na cabeça, firmei a promessa de voltar”, explica.

Dito e feito. Meses depois, naquele mesmo ano, lá estava ele. Tudo aconteceu naturalmente, do jeito que o gaúcho gosta. Para conseguir dinheiro, carregava equipamentos e malas de outras pessoas montanha acima, profissão conhecida na América hispânica como “porteador”.

Não demorou muito até Rato conseguir escalar sem problemas – com a ajuda providencial de janelas de bom tempo e de adesivos que aliviam as dores nos joelhos e articulações – alguns paredões traiçoeiros. Em ordem cronológica, ele conquistou as agulhas Guillaumet, Media Luna, El Mocho e, com uma pitada de loucura, atacou o Fitz Roy, o pico mais treta daquelas bandas. “Aproveito as oportunidades que aparecem para concretizar desafios que eu acho que valem a pena. Encerrada a temporada, porém, é sempre bom voltar para casa e descansar”, diz.

Vindo de uma família simples do interior de Torres, no Rio Grande do Sul, Rato teve uma infância voltada para o trabalho na roça. O contato com a natureza fez com que ele descobrisse o que chama de “casa de montanha”: os cânions do sul do Brasil. Sozinho ou com amigos, ele se pendurava em penhascos com cordas de amarrar gado, saltava em poços e, às vezes, quebrava alguns ossos.

Com 15 anos, foi apresentado à escalada em rocha nas falésias da cidade de Torres pelo escalador Cristian Albuquerque, o Kalu. “Eu já andava nos cânions, mas naquela época minhas técnicas de segurança se resumiam em grande parte a Deus. O Kalu me deu equipamentos e me ensinou a escalar”, explica Rato. Passados dois anos, Kalu sofreu um acidente fatal no cânion Malacara. Apesar do choque, Rato seguiu explorando boulders e cânions locais.

A paixão pela escalada virou profissão. Autônomo e independente, ele tem como ofício no Rio Grande do Sul planejar escaladas para visitantes. Sozinho, cuida de todos os detalhes logísticos, faz parcerias com guias locais, elabora estratégias de ataque, zela pela segurança e saúde do grupo e, principalmente, coloca o maior número possível de clientes nos topos das montanhas. “É bom poder aliar trabalho e satisfação pessoal. As pessoas com as quais trabalho estão sempre abertas e dispostas a encarar as atividades que proponho. No final, é o que eu sei e amo fazer”, conta.


VIBRAÇÃO: Brincando de se equilibrar no Cerro Torre

NO FIM DE OUTUBRO DE 2011, Rato se lançou novamente em uma viagem em direção ao sul do continente. Logo no começo da nova temporada na Patagônia, ele venceu as agulhas de Poincenot (3.000 metros) bem no estilo Rato, ao lado de dois respeitados escaladores austríacos que conheceu sem querer no caminho. Aproveitando o bom tempo, ele conseguiu escalar, acompanhado do argentino Gaston Riolla, a agulha Saint-Exupéry (2.558 metros), formação situada no cordão do Fitz Roy, e a agulha Innominata (2.482 metros), também conhecida como “Rafael Juarez”. Entre uma ascensão e outra, fazia bicos para ganhar uma grana, como consertar uma antena de internet em Chaltén. Detalhe: chegou à região com apenas 100 pesos argentinos, ou cerca de R$ 58, e descolou uma estadia de graça num camping local.

A oeste do Cerro Fitz Roy existe um conjunto de quatro montanhas. Cerro Torre (3.128 metros) é a maior e mais dura entre elas, e sua verticalidade deixa muita gente impressionada. Depois de uma tentativa frustrada de escalar a famosa via do Compressor, na face sudeste desse pico, Rato voltou à “montanha impossível”, desta vez acompanhado pelo argentino Victorio Godoy, de Bariloche.
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Passados dois dias de esforço e longas horas enfurnado em um agasalho remendado com silvertape e esparadrapo, ele pôde fazer o que mais gosta: aproveitar a paisagem do alto do espetacular pico. “Quando cheguei à Patagônia, não esperava nada. Somente queria estar lá e deixar que as coisas caminhassem de forma natural”, diz Rato, após conquistar o cume do Cerro Torre. Mas esta acabou se tornando uma temporada histórica para o escalador, em que ele conquistou todos os cumes a que se propôs.

O escalador tornou-se o quarto brasileiro a vencer o Cerro Torre, e deixou boquiabertos grandes nomes da modalidade. “Geralmente as pessoas levam muito tempo para escalar uma única agulha na região. A diferença do Rato é justamente sua humildade e capacidade de adaptação. Leia-se: a arte da gambiarra, e muita força de vontade de fazer dar certo”, analisa Pedro Hauck, renomado escalador paranaense (CHECAR) e colunista do site da Go Outside. Os dois se conheceram durante uma viagem pelo sul do Brasil, em 2009, e desde então mantêm contato – volta e meia Rato relata suas aventuras no site Alta Montanha, criado por Pedro.


AUTO-RETRATO: A caminho do Fitz Roy

POR RAZÕES QUE SÓ O DESTINO pode explicar, Rato tornou-se a última pessoa do mundo a escalar a via do Compressor usando os grampos fixos na rocha na década de 1970. Sem querer, viu-se envolvido em uma polêmica que repercutiu no mundo todo, quando o canadense Jason Kruk e o americano Hayden Kennedy venceram a via e decidiram descer arrancando os grampos fixados pelo italiano Cesari Maestri há mais de 40 anos (leia sobre o assunto em quadro nesta reportagem). “Eu e meu parceiro estávamos lá. Nós presenciamos o que a dupla estava fazendo. Tentei falar com os caras, mas eles nem deram bola. Desistimos e voltamos a nos concentrar em descer em segurança”, relembra Rato. A população de El Chaltén não gostou da atitude de Jason e Hayden, e a dupla foi considerada person non grata na região.

Polêmicas à parte, o fato é que Rato já mostrou do que é capaz no universo da escalada em rocha, e sua carreira ainda tem muito chão pela frente. A busca por desafios técnicos e a eterna superação dos próprios limites também figuram na lista de suas prioridades. Mas, sem fugir do seu lifestyle, ele conta que não tem nada muito planejado para o futuro. “Não faço ideia de qual será a próxima montanha, também não sei como nem quando chegarei lá.” A única certeza, ao que parece, é que ouviremos falar de novo sobre ele muito em breve.

>> O que eles tinham na cabeça?

Dois escaladores gringos arrumam confusão em uma das vias mais famosas da Patagônia

DURANTE OS ANOS DE 1950, os melhores escaladores do mundo começaram a tentar escalar, sem sucesso, o Cerro Torre, na Patagônia. Um deles, o italiano Cesari Maestri, por pouco não morreu durante uma escalada ao lado dos companheiros Toni Egger e Cesarino Fava. Na época, Cesari afirmou ter feito o cume e foi recebido na Itália como herói. Porém relatos de outras expedições desmentiram Cesari, e o italiano caiu no descrédito. Nos anos de 1970, Cesari voltou ao local para provar que era, sim, capaz de conquistar a montanha. Nessa nova tentativa, desta vez pela face sudeste, o italiano levou uma furadeira e instalou cerca de 350 grampos no paredão. Na época, a via, que ficou conhecida como Compressor, virou tema de acaloradas discussões sobre poluir a natureza com esse tipo de proteção.

Em 2007, foi realizada uma mesa-redonda em El Chaltén sobre uma possível retirada dos grampos, mas os montanhistas decidiram mantê-los, pois já os consideravam um patrimônio histórico. No entanto, escaladores renomados declararam que achariam justo se uma pessoa escalasse o Cerro Torre pela face sudeste sem tocar nos grampos e decidisse arrancá-los na descida. Conclusão: polêmica criada.

No começo deste ano, o canadense Jason Kruk e o norte-americano Hayden Kennedy fizeram a via sem utilizar os grampos de Maestri e, na descida, tomaran a liberdade de arrancá-los. O pessoal de El Chaltén não gostou nada da novidade e ameaçou linchar a dupla gringa, que acabou na delegacia.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2012)