Volta ao mundo em 45 dias

Um trimarã francês de última geração, guiado por uma experiente tripulação, estabeleceu novo recorde de circunavegação planetária

Por Mario Mele


PALMAS PARA ELE: O capitão Loick Peyron, do trimarã Banque Populaire V

QUANDO O FRANCÊS JÚLIO VERNE escreveu sua obra-prima A Volta ao Mundo em 80 Dias, ele não imaginava que, menos de um século e meio depois, um desafio desses poderia ser motivo de piada: em 80 dias já é possível dar quase duas voltas no globo terrestre. Pelos menos se o veículo em questão for um veleiro ultramoderno. Em janeiro, o trimarã (embarcação a vela com três cascos paralelos) francês Banque Populaire V cruzou a linha imaginária entre Ushant (França) e Lizard Point (Inglaterra), na entrada do canal da Mancha, exatamente 45 dias, 13 horas, 42 minutos e 53 segundos depois de ter partido daquele mesmo ponto para uma circunavegação planetária. “Na verdade não foram apenas 45 dias no mar, mas décadas de trabalho e comprometimento com esse projeto”, disse o capitão Loïck Peyron após superar em quase três dias o recorde anterior, que pertencia a outro trimarã francês, o Groupama 3.

Dar uma volta ininterrupta ao redor do mundo a bordo de um veleiro é uma disputa conhecida como troféu Júlio Verne – justa homenagem ao escritor de aventura mais visionário de todos os tempos. O desafio é reconhecido pela World Sailing Speed Record Council (WSSRC), entidade que avalia marcas conquistadas por embarcações a vela no mundo inteiro, e desde a década de 1990 tem motivado a união de construtores e velejadores com o intuito de construir barcos cada vez mais velozes. O teste de fogo do troféu Júlio Verne é uma volta ao mundo atravessando os oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, incluindo difíceis passagens como as dos cabos Horn (América do Sul) e da Boa Esperança (África do Sul).

Nas duas últimas décadas, ocorreram 24 tentativas, sendo que o Banque Populaire V foi o oitavo barco a estabelecer uma marca inédita. E a evolução tem sido significativa: comparado ao primeiro recorde, conseguido em 1993 pelo catamarã Explorer, comandado por Bruno Peyron (irmão de Loïck e um dos idealizadores desse desafio), o Banque Populaire V conseguiu chegar incríveis 35 dias na frente.

“Para completar uma volta ao mundo nessa velocidade é preciso trabalhar no limite a todo instante e passamos por muitos momentos estressantes”, disse Loïck. Um deles foi quando tiveram que costurar cautelosamente os icebergs do oceano Antártico (prolongamento meridional do Atlântico, Pacífico e Índico). “Era necessário controlar o impulso de toda a tripulação, que parecia querer ir cada vez mais rápido”, lembra Loïck. “Gosto de acelerar, mas é necessário saber a hora de ser cuidadoso.”


É CAMPEÃO: O trimarã Banque Populaire V em ação.
Abaixo, tripulação comemora a quebra do recorde

A presença do experiente Brian Thompson – velejador que acumula nada menos do que 160 mil quilômetros ao lado do aventureiro norte-americano Steve Fosset (desaparecido em 2007) e o único inglês entre a trupe francesa – ajudou a domar o ânimo da tripulação, principalmente nos dois dias perdidos por conta do mau tempo. “De qualquer maneira, essa jornada revelou-se especial”, Brian ponderou. “Fomos privilegiados em poder ver um cometa na noite de Natal, e ao passar ao lado de um iceberg que deveria ter a metade do tamanho da ilha de Wight.”

Brian também foi noticiado em seu país por se tornar, com a conquista do troféu Julio Verne, o primeiro britânico a completar quatro voltas ao mundo velejando sem parar. Uma marca um tanto peculiar, à qual ele próprio não se apega. “A qualidade do barco foi um dos fatores que tornaram essa ‘viagem dos sonhos’ possível”, tentou contemporizar.

É BEM PROVÁVEL QUE TODO O EMPENHO COLETIVO para bater o recorde de circunavegação fosse em vão se Loïck Peyron, Brian Thompson e o resto da tripulação não estivessem a bordo do Banque Populaire V. O barco mais veloz da atualidade ganhou o primeiro esboço em 2006, pelas mãos dos designers do VPLP, um escritório francês especializado em arquitetura naval. Os testes no mar começaram a ser feitos em 2008 e, no ano seguinte, o poderoso trimarã de 40 metros de comprimento e mastro de 47 metros de altura conquistaria seu primeiro recorde ao atravessar o Atlântico norte (entre os Estados Unidos e a Inglaterra) em 3 dias e 15 horas. Nessa época, o Banque Populaire V era capitaneado por um de seus criadores, o francês Pascal Bidégorry. Também foi Pascal quem comandou a primeira tentativa do Banque de dar uma volta ao mundo, nos primeiros meses de 2011. Mas o barco se chocou contra um objeto flutuante não identificado e o casco principal fortemente danificado obrigou-os a desistir da empreitada.

Ao assumir o comando naquele mesmo ano, Loïck bateu o recorde de circunavegação às ilhas Britânicas (3 dias, 3 horas e 49 minutos) e venceu a clássica regata europeia Fastnet Race, diminuindo em quase oito horas o próprio recorde, que detinha desde 1999. Tais conquistas (e as que viriam depois) só comprovam que Loïck foi o cara certo para extrair o máximo rendimento do Banque Populaire V e torná-lo não só o veleiro mais veloz, mas também o mais eficiente. Mas, para ele, tudo faz parte de um processo natural. “Pascal Bidégorry, que projetou o Banque Populaire V, e Hubert Desjoyeaux, o construtor, morto recentemente, têm créditos altos nessa conquista”, disse o atual capitão do trimarã mais rápido do mundo. Para Loïck, recordes existem para ser batidos, e a sua marca de circunavegação mais rápida será derrubada um dia também. No momento, no entanto, ele acredita que só um barco é capaz de fazer isso: o seu Banque Populaire V.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2012)







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