Aos 75 anos, o mineiro Aladir Murta já remou mais de 40 mil quilômetros pelos rios brasileiros. E não tem previsão de parar
Por Mario Mele
HÁ PESSOAS QUE PLANEJAM MEGAEXPEDIÇÕES para quebrar marcas e terem seus nomes imortalizados por um livro ou filme. O mineiro Aladir Murta tinha tudo para pertencer a esse grupo: aos 75 anos, ele é considerado o maior navegador solitário de rios brasileiros de que se tem notícia. Suas remadas já somam mais de 40 mil quilômetros, percorridos da maneira mais rústica possível. Há também um livro inteiramente dedicado a ele e às suas histórias fluviais, que não são poucas. A diferença é que Aladir parece não se importar se é dono de algum recorde. Para ele, o que vale é curtir cada aventura.
Lá se vão 11 anos de exaustiva peregrinação pelos rios do Centro-oeste e Norte do Brasil. “Não quero ser um campeão do mundo ou um recordista”, diz. “Minha intenção é convencer as pessoas, principalmente os povos ribeirinhos, a não agredirem tanto o meio ambiente. Não sei explicar de onde isso brotou, só sei que, quando ‘assustei’, eu já era um defensor dessa causa.” No tempo que tem livre, Aladir se dedica a passar sua mensagem por meio de conversas ou palestras – sem cobrar um centavo por isso. Tais momentos correspondem às poucas horas em que ele não está remando ou acampando numa margem completamente isolada dos rios Araguaia, Negro, Tocantins, Amazonas ou Solimões. AGORA É COMEÇO DE JANEIRO, e Aladir está dando um tempo na casa de parentes em Belo Horizonte, prestes a se lançar em sua terceira grande expedição fluvial. “Sempre que estou em alguma cidade, minha vontade é voltar o quanto antes para a água. Minha vida é navegar”, resume. Como nas viagens anteriores, esta também não terá data para acabar. Aladir esperava apenas a chuva forte que caía no estado do Amazonas dar uma brecha e o rio voltar ao seu nível normal para iniciar a jornada. “Meu ponto de partida será Manaus”, revela. “Navegando pelo rio Negro, quero chegar a São Gabriel da Cachoeira.” São cerca de 850 quilômetros que separam essas duas cidades, e Aladir não vê a hora de colocar sua canoa na água para ser tomado novamente pela sensação de plenitude trazida pela navegação solitária.
Por muito tempo esse mineiro nascido em Coronel Murta – o nome da cidade tem a ver com seus antepassados – viveu uma rotina “normal”. Já foi casado duas vezes, tem cinco filhos. Trabalhou como garimpeiro até virar empresário do ramo têxtil. Morava bem, tinha carro do ano e alguma experiência como comerciante, além de uma passagem pelo Exército. Por uns anos bebeu e fumou, mas foi convencido pela própria intuição de que os vícios, além de gerarem problemas de saúde, servem apenas para minimizar conflitos pessoais. Treinou o desapego, até finalmente ser levado de vez pelos rios.
ERA DIA 14 DE SETEMBRO DE 2000 quando, em Barra do Garças, no Mato Grosso, a presença de Aladir atraiu dezenas de curiosos. Bem na confluência dos rios Araguaia e das Garças, uma das principais portas de entrada da floresta amazônica, o mineiro colocava uma canoa de madeira de 4,5 metros de comprimento na água – hoje Aladir possui um modelo mais moderno, feito de fibra de vidro. Dentro havia o básico necessário para a sobrevivência, como uma barraca de acampamento e duas varas de pesca. Desde aquele dia, o compromisso de Aladir tem sido com seu sonho: descobrir o mundo através da óptica da natureza. “Ao contrário da sociedade, que é o verdadeiro mundo cão, a natureza nunca erra.” Para ele, também não há motivos para se arrepender do estilo de vida levado nos últimos 12 anos. “É um grande prazer poder estar entre os animais, os índios e os povos ribeirinhos. Não se trata de uma felicidade solitária.”
Ser pouco racional em algumas horas ajudou-o a se libertar das amarras sociais. Mas às vezes sua credibilidade diante de olhares de fora é colocada em dúvida pela alta dose de misticismo que ele encontra em cada acontecimento. Aladir diz ter um mentor espiritual que o visita regularmente. Em certa ocasião, deparou com uma caravela branca em pleno rio Araguaia. A miragem foi decifrada por seu mentor, que posteriormente foi até Aladir para dizer que ele já comandou uma caravela em vidas passada. “Hoje sua única arma é o remo”, ainda acrescentou o mentor.
Nem o encontro que teve com o jornalista paulistano Antoninho Rossini naquele mesmo rio, em 2008, foi entendido como casualidade. Eram cinco horas da manhã quando o mentor pediu para ele deixar o rio Javaés, no Tocantins, e descer pelo afluente Araguaia. O motivo: ali estaria a pessoa certa para contar sua história. “Vi uma canoa distante vindo em minha direção”, lembra Antoninho, que naquele dia preferiu ficar sozinho na beira do rio do que sair de barco para pescar com os amigos, a principal razão de sua viagem àquele estado. Ao chegar, Aladir apresentou-se e, sem saber que estava diante de um escritor, explicou que foi enviado até lá por seu mentor. Antoninho relutou em aceitar a história, mas o entrosamento entre eles foi tão grande que se tornaram amigos naquele mesmo dia.
Meses depois, já de volta a São Paulo, Antoninho recebeu uma ligação de Aladir, que informou sua localização: Xambioá, cidade ao norte do Tocantins. Imediatamente Antoninho foi ao encontro do remador e, depois de gravar cerca de 15 horas de conversa, escreveu em 2009 o livro Além dos Rios: Aventura e espiritualidade de Aladir Murta, o navegador solitário (editora Tag & Line). “Não acho que as visões de Aladir são alucinações”, diz Antoninho. “Chequei a maioria das informações e visitei famílias com as quais ele conviveu. Há muita espiritualidade envolvida em sua história.”
O livro expõe, em detalhes, as mais variadas situações vividas pelo navegador. Em seus milhares de quilômetros remados, o mineiro já naufragou, passou fome e ainda testemunhou os mais estranhos rituais indígenas. Sem contar que foi assaltado cinco vezes. Na última, desarmou o ladrão pedindo um abraço. “Ele não só acatou meu pedido como chorou”, recorda. “Ainda perguntou se eu precisava de dinheiro ou se queria uma arma para me defender.” Aladir recusou, justificando que a amizade é bem mais valiosa. “Tenho saudade dos meus amigos e da minha família. O problema é que nasci para navegar, não consigo parar.” Como fiel homem das águas e eterno apaixonado pelos rios, seu último desejo não poderia ser outro: “Se por acaso algum dia você me encontrar morto na beira de um rio, por favor, não me leve para o cemitério. Enterre meu corpo ali mesmo.” (Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2012)