A primeira vez é mesmo inesquecível

Por Maximo Kausch


VISUAL: A parede de Lhotse entre 8000 metros e o cume de 8516 metros


Todos me perguntam como é eu comecei a guiar expedições na montanha. Até gostaria de contar uma história mirabolante e bem sucedida. Mas a verdade é que minha primeira experiência no ramo foi um verdadeiro fiasco!

Comecei em uma montanha chamada Lhotse, a quinta mais alta do mundo. Aos que nunca ouviram falar do Lhotse, é fácil apresentá-lo: escale o Everest até os 8.000 metros de altitude e vire à esquerda. Basicamente, o Lhotse divide a aproximação e os três primeiros acampamentos com a famosa e histórica rota nepalesa do Everest, porém é menos conhecida e, dependendo das condições, é tecnicamente mais difícil.

Naquela ocasião, tínhamos 17 clientes para o Lhotse e somente 8 para o Everest e eu fui como assistente da expedição. Além de mim, havia outros quatro guias, encarregados de cuidar do bem estar dos clientes pagantes.


VAI ARRISCAR?: Imagem da lateral do bimotor da Yeti Airlines

Reunir todo o equipamento em Kathmandu não foi fácil. Eram sete toneladas de bagagem. Além disso, somente uma hora antes de voarmos para Lukla, onde a caminhada começa, é que as passagens aéreas chegaram. A Yeti Airlines tem aviões bimotores, e carregam até 16 pessoas. Era preciso três aviões para acomodar toda a expedição e cada um deles tem que voar com a maior carga possível. Todos os compartimentos vão cheios de cereais, malas e coisas do gênero.

Depois de uma hora e meia de voo, o momento mais perigoso de toda a expedição: o pouso. A pista tem 20 graus de inclinação, e termina em uma parede de rocha. Na última vez que estive por ali, um avião colidiu porque o piloto simplesmente se esqueceu de abrir o trem de pouso. Para se ter ideia, o aeroporto de Lukla está no programa"10 World’s Most Dangerous Airports", da Discovey Channel. E ele é o número 1 da lista.

Para transportar a carga, tínhamos 45 yaks– animais que chegam a pesar meia tonelada – à nossa disposição, em uma semana de trilhas, pontes e glaciares.

Nos primeiros três dias, quatro clientes tiveram edemas pulmonares. O estado de um deles era tão grave, que podíamos ouvir a respiração há cinco metros de distância. Todos foram evacuados por helicópteros ou yaks até as terras mais baixas. Com tantos percalços, os sherpas, que são pessoas extremamente supersticiosas, começaram a dizer que nossa expedição teria "bad juju", que significa “má sorte”. Fizemos uma cerimônia budista para reverter a situação. Participei de dezenas destas cerimônias, que são chamadas de "Puja". Um Lama benze todos os equipamentos que vão tocar a montanha, inclusive as cordas, piquetas, capacetes e parafusos de gelo. Foram várias horas de cerimônias pedindo licença aos deuses para escalar aquelas montanhas.

Estava tudo indo bem, quando um corvo preto decidiu parar bem em cima da torre rochosa que foi montada para a cerimônia. Para os budistas, isso é má sorte. O bicho insistiu em ficar, parecia estar esperando a cerimônia terminar para comer os restos de comida. Não sou religioso e muito menos supersticioso, mas é inegável que os sherpas tinham um alguma razão, considerando a nossa chegada à base.

COMEÇAMOS A SUBIDA À MONTANHA. Temos que lembrar que, em montanhas imensas como aquela, leva-se 60 dias para chegar ao cume. O motivo é aquela coisa chata chamada aclimatação. Devemos subir vagarosamente, e deixar o corpo se adaptar à altitude extrema. Além disso, temos que transportar toneladas de coisas para os acampamentos mais altos. Como se não bastasse, nestes ambientes existe um dos piores fenômenos meteorológicos testemunhados pelo homem: os ventos conhecidos como "Jetstreams", que chegam a uma velocidade de 200 quilômetros por hora.

Ao sair do acampamento, há uma imensa cachoeira de gelo de 4 quilômetros, que separa a base da montanha do acampamento 1. São torres, túneis, pontes, paredes de 50 metros, abismos de 80 metros… Tudo de gelo. É até bonito ver uma dessas cachoeiras coberta de pedrinhas de gelo. O problema é que estas pedrinhas têm o tamanho de uma casa. E elas se mexem.

Tive azar na minha primeira investida na cachoeira de gelo, subi com uma mochila pesada, de 30 quilos, e me aproximei rapidamente das imensas torres de gelo que tinham a altura de um prédio de 20 andares. O acampamento base se tornava cada vez mais distante, e uma linda montanha chamada Pumori começou a dominar a visão, a oeste do horizonte. As grandes torres de gelo que estavam no flanco oeste do Everest começaram a me preocupar, mas elas não se mexeram naquela ocasião. Pelo menos não naquele momento.

Após já ter percorrido o que eu acreditava ser 3/4 do caminho até o acampamento 1, parei em um platô de gelo para descansar e comer um chocolate. Até então sem escutar uma voz há um tempo, ouvi um grito vindo atrás de uma torre de gelo, não muito longe dali. Deixei minha mochila no local, com o chocolate em cima, prometendo a mim mesmo que voltaria logo.

Continuei a subida – sem mochila – para ver o que estava acontecendo. Entre uma torre e uma grande greta, a 5.800 metros de altitude, estava um casal Pelos gritos e posição, parecia que o homem tinha fraturado a perna. Logo que cheguei, notei um sherpa vindo na direção do acampamento 1. A primeira atitude foi tirar o homem do perigo e colocá-lo em cima de uma plataforma estável. Depois foi hora de imobilizar a fratura. Tive a ideia de usar as barras de alumínio de uma mochila (que não fosse a minha). A do sherpa acabou sendo a vítima: colocamos uma barra de cada lado da perna e amarramos com fitas de escalada que estavam na minha cadeirinha. A fratura foi na altura da canela, e o pé ficou pendurado pela pele e músculos. Acabei usando o meu colchonete para isolar a perna do frio, afinal estávamos a quase 6 mil metros de altitude. Mais dois mosquetões e duas fitas de escalada, a perna estava pronta para a viagem. Teríamos que descer o homem até o acampamento base.

O ferido se apresentou como Ben Webster, líder de uma expedição canadense. Ele nos deu a ideia de construir uma cadeira para transportá-lo até o acampamento base, que eu avistava de cima e parecia bem distante dali. Enquanto isso, sua companheira passou o pedido de auxílio por radio. Algumas expedições se organizaram na base, e mandaram mais seis sherpas para nos ajudarem. Um deles tinha uma mochila de armação, e acabou cedendo-a para a fabricação da cadeira. Mais algumas fitas e mosquetões e Ben estava sentado na cadeira improvisada. E nós estávamos prontos para carregá-lo.

A primeira greta foi bem trabalhosa, já que minha experiência em carregar pessoas, limitava-se a carregar pessoas mortas. Logo um grupo de sherpas vindos do acampamento 1 apareceu e, sem questionar, pulou na nossa frente para carregar a cadeira. Isso nos deu uma oportunidade de descansar e começar a revezar na traseira (a parte mais pesada). Ben não parava de reclamar de dor, mas isso iria acabar, pois os sherpas que se aproximavam, vindos do acampamento base, traziam morfina. Durante horas, prometíamos a Ben que a morfina estava chegando em “10 minutos”. E assim foi por toda a descida.


RISCO: Atravessando uma greta de vários metros

Cruzamos mais seis gretas, quatro delas com escadas. Na última, percebi que estava extremamente cansado. Cruzar uma escada carregando um homem de 80 quilos, próximo a um abismo de várias dezenas de metros, não é nada fácil. Eu tinha que encaixar os meus crampons em cada degrau da escada, com um campo de visão que se limitava à fresta entre meus antebraços, pois estava segurando a cadeira.

Ao percorrer 8 metros com Ben, eu já tremia, de tanta força que tinha que fazer. O sherpa sentia o mesmo. Faltando um metro para terminar a escada de alumínio, praticamente o jogamos do outro lado da greta para salvar nossas vidas. A corda plástica de 8 milímetros não iria aguentar uma queda simultânea de três pessoas, e nós sabíamos disso. Estávamos exaustos e descansávamos na borda da greta, quando um grande grupo de fortes sherpas chegou, levantou Ben e continuou a viagem.


DEPOIS DO SUSTO:Ben e a esposa no hospital improvisado do acampamento base

Subindo o mais rápido que podia, demorei quase uma hora para chegar de volta à minha mochila. Antes que acontecesse alguma outra coisa, finalmente comi meu chocolate, sem nem sentir o gosto.

Algumas nuvens vindas do Pumori, que se acumulavam há horas, trouxeram a neve. Eram quase 5 horas da tarde quando avistei as barracas no acampamento 1. Meus companheiros estavam do lado de fora, esperando por mim.

"O que aconteceu? Por que demorou tanto?". Exausto, respondi:

"Vocês não acreditariam o “presente” de boas vindas que o Khumbu me deu!". Khumbu é o nome da famosa cachoeira de gelo.

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