Que pedrada!

A escalada sem corda em rochas pequenas, conhecida como boulder, é curta, mas exige muita força, técnica, agilidade e inteligência. Dissecamos todos os segredos da Lucid Dreaming, uma dificílima via grau v16 aberta por Paul Robinson na Califórnia

Por Matt Samet

BOULDER, EM PORTUGUÊS, significa rocha. Mas o termo pouco traduz a técnica e o preparo físico necessários para essa modalidade de escalada praticada há um século e que explodiu em popularidade nos últimos 20 anos graças, em parte, ao desenvolvimento de colchonetes de segurança para evitar machucados em casos de queda. Os escaladores de ponta trabalham uma via de boulder – o chamado “problema” – durante dias, semanas e até meses, caindo repetidas vezes sobre os colchonetes até aprenderem as nuances de cada agarra da pedra, ensaiando posições e colocando tudo em uma sequência pensada para depois “mandar” o boulder, ou seja, chegar ao cume da rocha.

Em 2010, nos EUA, dois novos problemas de boulder receberam a mais alta graduação de dificuldade possível: v16. Esses foram os primeiros problemas dessa categoria naquele país, enquanto em outros lugares do mundo poucos desafios desse nível de dificuldade foram propostos e desvendados com sucesso. O primeiro problema norte-americano, batizado de Game – uma linha (trajeto) de oito movimentos localizada no Colorado, especificamente na parte negativa de um bloco de pedra proeminente em Boulder Canyon –, foi completada por Daniel Woods em 10 de fevereiro de 2010. Desde então, foi realizada por outros escaladores e acabou tendo seu grau de dificuldade diminuído para v15.

A outra v16 dos EUA foi batizada de Lucid Dreaming e fica no bloco Grandpa Peabody, na Califórnia. Ela foi conquistada por Paul Robinson em 30 de março de 2010. Até agora, ele foi o único que conseguiu escalar a via e afirma que foi a escalada mais dura que já fez. Paul, 24 anos, treinou na pedra durante três anos, caindo centenas de vezes. Muitas pessoas estavam presentes quando Paul treinava na via, mas não houve testemunhas nem câmeras no dia em que ele conseguiu chegar ao cume do boulder. Existe alguma chance de que ele esteja mentindo? Não. Graças ao currículo de Paul e seu trabalho duro na Lucid Dreaming, as únicas dúvidas publicamente expressadas apareceram em uns poucos comentários sarcásticos na blogosfera. Eis aqui, passo a passo, como ele conseguiu realizar a façanha.

OS NÚMEROS
Os escaladores de boulder usam um sistema de graduação diferente do conhecido Sistema Decimal de Yosemite, escala ascendente que vai de 5.0 a 5.15b e gradua as dificuldades das escaladas em rocha com uso de cordas. A escala “v”, codificada por John “Verm” Sherman por volta de 1991 é, de certa maneira, mais fluida – ela gradua movimentos ou sequências individuais de forma mais subjetiva. E com a repetição de ascensões, a graduação de um problema pode mudar até que se crie um consenso (o primeiro escalador e os seguintes chegam à graduação baseados em comparações com escaladas de dificuldade semelhante). A primeira proposta de Paul Robinson para graduar a via Lucid Dreaming como uma v16 se deu porque, nas palavras do escalador, ela exigiu “de longe os dois movimentos mais difíceis que eu já completei na vida” – dois movimentos graduados em v12 e v13 e conectados um ao outro. Até agora, a Lucid Dreaming repeliu outros escaladores de ponta, inclusive Chris Sharma e Daniel Woods.

A ROCHA
A Lucid Dreaming realiza um traçado ao longo do lado esquerdo da face sul do bloco Grandpa Peabody, de 18 metros, o maior de todos entre dezenas de rochas ovaladas espalhadas ao longo de uma estradinha de terra perto de Bishop, na Califórnia. A rocha é de quartzo monazítico, uma pedra agressiva com cristais afiados. A escalada começa em uma face negativa de 45 graus, daí desvia para a esquerda até um abaulado grande (graduado em 5.12) e uma rampa mais deitada (5.9) até o topo, a 16,5 metros do chão. Os movimentos mais duros são logo no começo, na barriga negativa. Aqui, Paul Robinson começou sentado na terra e agarrou um bico invertido com a mão direita. Do bico, esticou para a esquerda, para beliscar uma agarra microscópica, a partir da qual fez um movimento dinâmico até uma aresta em pinça, com os pés voando feito super-homem, para fora do negativo. Paul escolheu essa via porque ela já havia sido escalada com um começo mais alto, com o escalador em pé, mas nunca havia sido feita a partir de uma posição sentada – portal para movimentos mais duros. As agarras pequenas e afiadas também favoreceram o estilo de Paul, que os escaladores chamam de “escalada de dedo” ou “técnica”.

1. O TREINAMENTO
Um problema dessa dificuldade requer força sobre-humana de contato (isto é, “dedo-com-rocha”), flexibilidade extrema, tempo de movimento perfeito e muito foco. Paul Robinson, com seus 1,78 metro de altura e tendões feitos de aço, é conhecido pela força de seus dedos (próxima de uma aberração), sua razão peso-potência (ele pesa apenas 59 quilos, mas consegue carregar muito peso com cada braço) e sua serenidade. “Eu tive que ultrapassar qualquer nível de concentração e dedicação a que já havia chegado para conseguir tornar essa escalada uma realidade”, diz. Nos meses que antecederam o feito, Paul trabalhou pontos-chave, como resistência e movimentos dinâmicos, em uma academia de escalada. Ele aprimorou seus músculos do core – abdominais, oblíquos, ilíacos e psoas – no negativo de 55 graus do Colorado Athletic Training School, em Boulder. Ele também fazia cem abdominais e 50 flexões depois de cada sessão na academia.

2. O ENSAIO
“As agarras da Lucid Dreaming são tão minúsculas que jamais as esquecerei”, diz Paul, referindo-se à pinça e à beliscada do crux (o movimento mais difícil de uma via) logo no começo da escalada. Para sua comodidade, ele empilhou três crash pads (colchonetes de boulder) para alcançar pontos altos e difíceis da rocha. Por não poder arriscar uma queda na travessia de 5.12, treinou o movimento cinco vezes com corda. Em sua ascensão bem-sucedida, ele colocou meia dúzia de crash pads sob o boulder. Apesar de o protegerem no trecho mais difícil da escalada, na parte de baixo, serviram de muito pouca ajuda à medida que ele subia a rocha.

3. A PELE
No boulder, a aderência da pele à rocha é tudo, então há que se preservar as camadas da epiderme. Paul não deixava as mãos se molharem nos dias de escalada, sabendo que a pele absorve a umidade e tende a rasgar. Para prevenir o ressecamento, ele usa um creme bactericida, mas não hidratante. Outro fator importante: condições atmosféricas. Muita umidade e calor excessivo fazem com que a pele forme uma camada de suor; muito seco ou frio e a pele fica escorregadia. Quando Paul mandou a Lucid Dreaming, fazia 4ºC, com uma leve umidade gerada por uma tempestade que se aproximava. Ele diz que a aderência à rocha o ajudou na hora da pinça.

4. O SONHO
Antes do amanhecer, em 30 de março, Paul dormia em seu hotel e, por duas vezes, teve o mesmo sonho: ele estava em sua cidade natal, Moorestown, em Nova Jersey, e seu pai, que morreu em 2009, o observava em seus treinos no muro de escalada da garagem de casa. Mas agora a parede tinha apenas agarras horríveis, de pinça. Paul acordou sobressaltado, olhou a previsão do tempo, ligou para os amigos irem escalar com ele – porém todos estavam dormindo. Então dirigiu sozinho para o Grandpa Peabody.

5. HORA DO JOGO
Paul estacionou o carro, caminhou morro acima com seus crash pads, fez um aquecimento em agarras próximas dali e tentou o Lucid Dreaming sozinho, sem os usuais observadores. Na primeira vez, ele agarrou mal uma micro-agarra, caindo automaticamente, como havia feito tantas vezes para preservar sua preciosa pele. No esforço seguinte, segurou a agarra com um beliscão, mas pegou a pinça pela metade, pendulando e caindo.

6. A EXECUÇÃO
O escalador descansou um pouco, mergulhou as mãos no saco gigante de magnésio e tentou subir pela terceira vez, escalando suavemente e beliscando perfeitamente cada agarrinha. Sua mente, diz, “apagou por um tempo”, e a memória muscular assumiu o comando, enquanto ele preparava o movimento dinâmico, ou “bote”, até a pinça. Por tentativa e erro, ele aprendera que se não pulasse o suficiente os dedos não chegariam ao lugar certo da agarra; porém se saltasse muito forte ele pendularia e ralaria os dedos. Desta vez, Paul pulou na medida exata, flexionando levemente o braço direito, quando agarrou a pinça e usou seus músculos centrais para segurar o pêndulo na posição correta, durante meio segundo mais. Ele pendulou de volta, posicionou os pés e continuou via acima.

7. A VITÓRIA
Agora, Paul havia escalado a pior parte até chegar a uma área de descanso antes da travessia de 5.12. Por estar tão frio, suas mãos nem sequer suavam. “Aproveitei para me recompor. Aí olhei o que tinha que fazer e mandei ver”, diz. “Não havia mais volta: eu tinha que chegar ao topo. Era só nisso que eu pensava.” Caía uma garoa fina na parte final da rampa. Sozinho no alto da pedra, o escalador deu seu grito de vitória, olhou ao redor e rapelou de volta ao chão com uma corda que havia fixado ali anteriormente. Já em terra, ligou para os amigos, que agora estavam acordados. Todos foram até lá para cumprimentá-lo.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2012)