Mulheres na pista

Com atletas de ponta, sites especializados e grupos de apoio espalhados pelo mundo, o skate feminino mostra que está mais forte e popular que nunca

Por Mario Mele


PAPA- LADEIRA: A carioca Christie Aleixo, uma das percursoras do skate
downhill slide no Brasil

EM SUA PRIMEIRA COMPETIÇÃO como skatista profissional na categoria downhill slide, em 2011, a carioca Christie Aleixo terminou em sétimo lugar. Colocação pouco satisfatória? Não se levarmos em conta que a moça de 34 anos era a única mulher a competir entre 19 homens – alguns dos melhores do Brasil, como Sergio Yuppie, Juliano Cassemiro e Ricardo Mikima. Christie é apenas um ótimo exemplo de uma significativa transformação pela qual vem passando o universo do skate nos últimos anos: poucas vezes se viu, em escala nacional e mundial, tantas garotas e mulheres enfrentando halfpipes, ladeiras e outros desafios em competições da modalidade, ou mesmo apenas se divertindo por aí em cima de suas inseparáveis pranchas com rodinhas.

Há cerca de 15 anos na modalidade “descer ladeiras”, Christie manda slides (derrapadas e giros de 180 e 360 graus) totalmente controlados, com mais técnica e ousadia do que a maioria dos marmanjos. E encara a “invasão feminina” nesse meio com alegria, mas certo cuidado. Porque, para ela, a maior preocupação está mesmo no incentivo ao skate em geral, não apenas às mulheres. “Se tiver categoria feminina, beleza, mas se não tiver, beleza também. O que vale é praticar”, diz.

A força feminina, no caso de Christie, vai muito além das pistas. Em 2005, ela se uniu a Juliano Cassemiro e Douglas Dalua, dois expoentes do skate downhill, para desenvolver um projeto especial em parceria com a Confederação Brasileira de Skate (CBSk). O objetivo era incluir o skate como um dos esportes não-olímpicos a receber apoio do Ministério do Esporte através do programa Bolsa-Atleta.

Graças a essa iniciativa, desde 2008 skatistas de alto rendimento de qualquer modalidade têm tido a chance de contar com o auxílio, entre eles Christie. “Recebo um benefício de R$ 1.500, que é o valor estipulado para atletas de esportes internacionais que não fazem parte das olimpíadas”, diz. Em 2011, competindo contra mulheres na categoria speed (velocidade), Christie foi vice-campeã de duas etapas do circuito sul-americano – uma na Argentina e outra no Peru – e campeã no Chile. Com esses resultados ela tem grandes chances de manter a bolsa em 2012. Nome feminino que mais se destaca na modalidade downhill e uma das grandes representantes do skate no país, Christie tem moral para falar: “O skate feminino no Brasil está num nível que já deixou de ser curiosidade”.

Outra atleta brasileira de grande representatividade no skate é a paulistana Letícia Bufoni, que também recebe o apoio do Bolsa-Atleta, apesar de morar em Los Angeles e ser patrocinada por marcas internacionais como a Osiris e a Foundation. Com apenas 18 anos, Letícia é o maior nome do skate feminino brasileiro da atualidade – é bicampeã mundial de street (modalidade em que as manobras são feitas sobre corrimões, escadas e caixotes). Suas primeiras aparições aconteceram em 2007, aos 14 anos, quando foi convidada a participar dos X-Games, a maior vitrine de esportes de ação para o grande público.

Letícia ficou em sétimo lugar e, desde então, virou freqüentadora assídua do evento. No ano seguinte, ela participou do Bust or Bail, uma disputa promovida pela tradicional revista Thrasher para avaliar uma única manobra – nessa edição, o desafio era varar uma escadaria de 17 degraus. Entre os adversários de Letícia, só havia moleques, entre eles Ryan Sheckler e Andrew Reynolds, dois dos mais atirados skatistas de street do mundo. Letícia não parou mais: em 2010, foi vice-campeã dos X-Games, sua melhor colocação nessa competição, e ainda ganhou o concorrido Maloof Money Cup, pondo a mão em US$ 25 mil.

No ano passado, a brasileira foi medalha de bronze nos X-Games e, mesmo descendo um degrau no pódio, só ganhou elogios. Em novembro do ano passado, o norte-americano Chris Palmer, colaborador do site da ESPN, escreveu uma coluna inteiramente dedicada a ela. Além de analisar a qualidade de suas manobras, Chris a apontou como uma atleta de “atitude e estilo, capaz de levar o skate feminino ao mainstream”. Nem a norte-americana Elissa Steamer, veterana da modalidade e tetracampeã dos X-Games, economizou honrarias à jovem brasileira. “Ela tem o talento necessário para ser uma grande força do nosso esporte”, comentou Elissa, que é um dos ídolos de Letícia.


SHOW DE EQUILÍBRIO: A paulistana Letícia Bufoni, bicampeã mundial de street

DA MESMA MANEIRA QUE O SKATE se desvinculou da imagem “marginal” que tinha na década de 1980, com o aumento do número de praticantes e o surgimento de novas marcas e campeonatos, hoje também está provado que não se trata mais de um universo estritamente masculino. A última pesquisa feita pelo Datafolha, em 2009, abordou o esporte de maneira ampla e constatou que as mulheres já são 10% do total de skatistas do Brasil. Entre as prós, além de Christie Aleixo e Letícia Bufoni, estão as paulistas Jéssica Florêncio, de 20 anos, e Eliana Sosco, de 24, que estrearam nos X-Games em 2011. “Quero ajudar a quebrar a barreira de que skate é coisa só para meninos, e quem sabe um dia ser lembrada como parte da história desse esporte no Brasil”, diz Jéssica, que deu um jogo de computador ao primo em troca de seu primeiro skate.

A santista Karen Jones já é parte importante nessa trajetória. Em 2006, apenas três anos após o skate feminino ser incluído como evento oficial nos X-Games, ela foi medalha de bronze. Em 2008, se tornaria bicampeã mundial, além de sair do halfpipe dos X-Games com o ouro. “O skate me deu a oportunidade de conhecer o mundo, de me superar e ir bem em campeonatos”, diz a atleta de 27 anos. “Mas o skate também me proporciona prazeres simples, como chegar em casa exausta e dormir sem tomar banho, ou então dar boas risadas andando com os amigos.”

Ultimamente, porém, Karen não tem tido muitos motivos para achar graça quando o assunto é o rumo do skate vertical feminino. Em 2011, sua modalidade foi cancelada dos X-Games, depois de ter integrado oito edições do evento que colaborou com a profissionalização de várias meninas. A organização justificou a decisão pelo fato de a modalidade não ser amplamente acessível às garotas e não ter crescimento significativo em número de praticantes. A lenda viva Tony Hawk, no entanto, definiu a decisão como “vergonhosa, ainda mais sabendo das novas e talentosas skatistas reveladas recentemente”, escreveu em seu Twitter.

Karen, que até hoje é a principal “verticaleira” do país, confessa ter ficado desesperada ao receber a notícia sobre o não-acontecimento do campeonato que, durante anos, foi sua principal fonte de renda. “Depois percebi que, na verdade, eu estava precisando ‘desbitolar’ um pouco de competições e andar mais pela pura diversão.” Para ela, a modalidade vertical não está em crise, e seria até “ridículo” dizer isso. “Agora as meninas devem jogar com as peças que têm em mãos. Acho que voltaremos a competir nos X-Games em breve, na forma de Super Park”, diz ela, referindo-se à grande pista composta por rampas e obstáculos que exigem conhecimento em diversos estilos.


MAESTRIA: A santista Karen Jones voando de um bowl

MULHERES SÃO RECONHECIDAMENTE COMPETENTES em encontrar boas soluções e alternativas, e isso também tem se aplicado ao skate. Em 1990, a fotógrafa e skatista norte-americana Patty Segovia deu um passo rumo à popularização das meninas nesse esporte quando criou o All Girl Skate Jam. O evento, que existe até hoje, passou a reunir garotas para competições pelos Estados Unidos e pela Europa, e contribuiu para que pais e mães começassem a apoiar a vontade das filhas de aprender a andar de skate, em vez de tentar convencê-las a entrar no balé.

De lá para cá, outros movimentos e grupos semelhantes espalharam-se pelo globo – e, com o recente advento das redes sociais, cruzaram ainda mais fronteiras. Um exemplo disso é o coletivo Longboard Girls Crew, que divulga diariamente notícias sobre mulheres e skates, e tem 75 mil fãs em sua página do Facebook. Um dos objetivos do grupo, que é bem forte na Espanha e conta com ramificações em diversos países, é popularizar o longboard entre as moças. No Brasil, os sites Skate para Meninas (skateparameninas.com.br) e Divas Skateras (divaskateras.com/) tornaram-se boa fonte de informação para aquelas que curtem surfar no asfalto.

Pelo visto, elas não apenas invadiram o halfpipe como conseguiram abocanhar um belo espaço do universo do skate para si – e para sempre.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2012)