Hollywood abaixo de zero

Com produções como o épico de snowboard The Art of Flight, uma produtora norte-americana eleva os filmes de esportes radicais a um patamar inédito na história do cinema de aventura

Por Josh Dean


LUZ, NEVE, AÇÃO: Travis Race (de vermelho) e a equipe da produtora Brain Farm

No ano passado, um trailer de três minutos de um filme chamado The Art of Flight (A Arte do Voo) foi postado na Internet. Gravado pela produtora Brain Farm, sediada em Jackson, no estado norte-americano de Wyoming, e estrelado por Travis Rice, considerado o melhor snowboarder do mundo, o trailer virou hit instantâneo – em parte, claro, por causa dos formidáveis tentáculos marketeiros da Red Bull, principal financiadora do filme. Em uma semana, o vídeo atraiu 1,5 milhão de visitas, aproximadamente 1,3 milhão a mais do que o trailer de qualquer outro filme de snowboard já feito. “Justin Timberlake me mandou uma mensagem falando do clipe”, diz o diretor Curt Morgan, de 29 anos. “Até o rapper 50 Cent postou o filme num site.” Pense bem no que isso quer dizer: o astro 50 Cent simplesmente postou um link para um trailer de filme de snowboard.

The Art of Flight, que estreou no dia 7 de setembro em Nova York, conseguiu não apenas atingir uma plateia muito maior do que qualquer outro filme do gênero, mas também teve o dom de impressionar várias estrelas dos esportes radicais – e de muitas de outras áreas nada a ver com o mundo outdoor. “Um vídeo de arrepiar”, elogiou Annie Fast, editora-chefe da revista norte-americana Transworld Snowboarding, dedicada à modalidade. “Insano, lindo e bem-feito”, afirmou Brian Wimmer, diretor e fundador do X-Dance Action Sports Film Festival.

Ainda que as peripécias dos atletas sejam incríveis, é a produção do filme que realmente chama a atenção. Graças a um abastado investidor, a Red Bull, que está assumindo a totalidade da secreta (mas certamente multimilionária) conta, o diretor Curt Morgan conseguiu trazer para suas mãos uma parafernália tecnológica até então utilizada apenas por equipes de famosos documentários como o Planet Earth e o Life. Entre os equipamentos usados por Curt, estão itens preciosos como uma Cineflex, uma câmera de controle remoto com estabilizador giroscópico que utiliza um software desenvolvido para os militares.

Uma das várias lindas cenas do filme mostra o snowboarder profissional Mark Landvik num salto imenso em que ele gira agarrado à ponta de um pinheiro que parece ter a altura de um pequeno edifício. Se a sequência tivesse sido filmada como qualquer outro filme de esporte de ação – isto é, por uma única câmera de altíssima definição, talvez duas ou até com um helicóptero –, teria sido muito legal. Mas Curt foi muito além do “legal”: conseguiu montar uma grua de 3,6 metros para fixar uma super câmera-lenta Phantom HD Gold, que consegue transformar 1 segundo em 60.

Claro que no filme não aparece toda a trabalheira necessária para se captar sequências desse tipo. Para fazer a cena, gravada nas Snake River Mountains, localizadas nos arredores de Jackson, foram necessários seis caras em trenós, durante três dias, para abrir caminho para a equipe de filmagem. Daí mais um dia inteiro para carregar pelo caminho cerca de 400 quilos de equipamentos, incluindo 100 quilos de contrapeso para a grua da Phantom. Quando enfim arranjaram tudo, uma equipe de doze caras – incluindo Travis Rice, Mark Landvik e Scotty Lago, bronze olímpico norte-americano em snowboard halfpipe – passou mais quatro dias movendo 80 toneladas de neve para construir uma rampa de seis metros, de onde Mark e companhia decolariam.

“No mundo dos comerciais, só essa rampa poderia custar meio milhão de dólares”, revela Curt, alguns dias depois de eu assistir sua equipe construir metodicamente a rampa de neve. Nos últimos dois anos, quando não estavam dirigindo comerciais para grandes clientes, como a Visa, ou gravando cenas para filmes de Hollywood, entre eles Jackass 3D, Curt e sua equipe seguiam Travis e um irrequieto grupo de snowboarders mundo afora para realizar The Art of Flight. Por causa do filme, eles ficaram um mês e meio no Chile e um mês nas Tordrillo Mountains, no Alasca, além de breves paradas no Canadá e em Jackson. Ao longo da viagem, destruíram alguns snowmobiles (motos de neve), alugaram 15 helicópteros top de linha AStar B3 e usaram fogos de artifício e armas de fogo (Curt frequentemente carrega consigo nas locações uma pistola de calibre .50).

Você e outros milhares de espectadores poderão ver em breve o resultado disso tudo, ainda que não necessariamente no cinema. Uma das condições que a Red Bull impôs para colocar grana no projeto foi que a produtora Brain Farm realizasse um programa de TV dividido em oito episódios mostrando o making of das filmagens – ainda estão rolando negociações com redes de televisão, mas a expectativa é de que a série seja exibida no começo de 2012. Tudo indica que The Art of Flight será o maior filme de esportes de ação de todos os tempos, ultrapassando o antecessor That’s It, That’s All, lançado em 2008 e que estabeleceu a Brain Farm como uma das melhores produtoras do ramo.


BEM NA FITA: Travis é filmado pela Phantom HD; abaixo, a equipe de
filmagens ao lado de Clark Fyan (de verde),Travis Rice, Mark Landvik e Chad Jackson

VALE DIZER QUE SUBIR o padrão do gênero de esportes de ação não foi muito difícil. Filmes de esqui tendem a ser muito parecidos entre si, em grande parte porque não existe muito dinheiro a se ganhar com eles. Os produtores desse tipo de filme normalmente lutam para conseguir alguma ajuda, pressionando eventuais patrocinadores sempre sem dinheiro e negociando tarifas reduzidas com estações de esqui, operadoras de heli-ski ou snowmobile em troca de merchandising. Quase todos seguiam o modelo de negócios estabelecido pelo snowboarder e pioneiro diretor norte-americano Warren Miller, de que a grana para o próximo filme vem necessariamente das vendas e lucros da produção anterior. “A maioria dos produtores de filmes de esqui são geniais exatamente porque conseguem produzir com pouquíssimo orçamento”, diz Jack Shaw, jornalista e guia de esqui que já escreveu sobre a história do gênero.

Orçamentos relativamente pequenos, que em geral não passam dos seis dígitos (em dólares) para documentários de longa-metragem realizados por empresas como a Teton Gravity Research e a Mack Dawg Productions, quase sempre limitam os resultados da produção. Já houve tentativas de se romper esse modelo, como o filme First Descent, de 2005, pago pela Mountain Dew, e Steep, de 2007, um documentário de esqui extremo que passou em grandes cinemas dos EUA. Os dois fracassaram. O primeiro era entediante e repetitivo, e foi criticado pelos expectadores; o último era bom, mas não o suficiente para cativar o público não especializado.

Mas The Art of Flight é totalmente diferente. Desde o começo da Brain Farm em 2008, a empresa faz suas próprias regras. Travis Rice e Curt Morgan são amigos desde os 17 anos, quando competiam pela marca Rossignol. Enquanto a estrela de Travis no esporte ascendeu, Curt abandonou a carreira depois de quebrar a coluna três vezes em um só ano. Ele sempre amou fotografia e filmagem. E, depois de assistir a alguns workshops no Maine Media College, começou a filmar para os irmãos Matt e Danny Kass, uma dupla de “bad boys” do snowboard de New Jersey que fundou a marca Grenade Gloves. Alguns anos fazendo filmes de baixo orçamento cansaram Curt. Até que em 2002 ele voltou a sua cidade natal, Albany, em Nova York, onde passou um ano descarregando caminhões e tocando numa banda de metal. Foi aí que seu velho amigo Travis – naquele momento ganhando uma boa grana com patrocínio, principalmente da Red Bull e da Quicksilver – apareceu para mudar seu destino.


NA TERRA E NO AR: O veículo câmera da Brain Farm e, à dir., a Cineflex é testada em um teleférico de Jackson Hole

“Travis me ligou e disse: ‘Precisamos começar a produzir filmes. Agora eu consigo te pagar. Eu tenho dinheiro’”, relembra Curt. Ele mudou-se para a casa de Travis em Jackson, e os dois começaram a trabalhar no seu primeiro filme, o The Community Project, de 2006. No ano seguinte, Curt e Travis viajavam pela Nova Zelândia quando conheceram uma equipe de filmagem que estava gravando de helicópteros e usando um revolucionário sistema de estabilização de câmera. Eles piraram com as imagens. Alguns meses depois, os dois voltaram à Nova Zelândia, alugaram o equipamento daquela equipe e começaram a filmar That’s It, That’s All.

O visual incrível do That’s It, That’s All, especialmente os zoom-outs de quilômetros que a maior parte do mundo só viu pela primeira vez em Planet Earth, começou a atrair a atenção de clientes de fora dos esportes de ação. Mas foi a apresentação a Joe Sorge, um rico empreendedor de biotecnologia de Jackson, que permitiu a Curt construir a Brain Farm na casa estilo Willy Wonka em que fica atualmente. Em 2009, durante um jantar em Los Angeles, Curt contou a Joe Sorge sua fantasia de comprar um arsenal de equipamentos de produção de última geração – inclusive a Phantom, a Cineflex e uma lista de outras câmeras HD e 35 mm – em troca de uma parte da produtora. “Temos hoje um bom dinheiro em hardware”, conta Curt. Quanto? “Não sei se quero colocar em números.” Ele pensa por um minuto: “Poderia falar em milhões de dólares”.


CAMERAMAN: Gabe Langlois em ação

A Brain Farm tem agora oito funcionários em período integral e um belo quartel general num edifício tipo loft nos arredores de Jackson. Nos últimos 18 meses, além dos projetos com a Visa e o filme Jackass 3D, a produtora trabalhou num episódio de Expedition Wild, uma série do National Geographic Channel. Filmou também comerciais para a Subaru, a NBC/Universal e a Quiksilver. E, mais recentemente, fez um curta 3-D para a Red Bull com o piloto surdo de motocross Ashley Fiolek, que passou nos cinemas antes de blockbusters como Thor e Piratas do Caribe.

UMA NOITE QUANDO EU estava em Jackson, Curt sugeriu que fossemos dar uma volta no que ele chama de “cine-caminhonete”, uma Ford F-250 modificada para servir de plataforma móvel para a Cineflex. A geringonça é meio ameaçadora à primeira vista: preta de cima abaixo e adornada no teto com o que mais parece um grande equipamento de espionagem. De certa forma, a Cineflex é isso mesmo – um sistema de câmera de cinco eixos, alta definição e longuíssima distância, desenvolvido para espionagem pela indústria de defesa norte-americana.

Enquanto Chad Jackson, produtor da Brain Farm, entra com a caminhonete na estrada, a tela da câmera aparece em alta definição no meio do painel. Curt mexe num botão do controle remoto e a câmera gira para focalizar um veículo atrás de nós. Ele dá zoom até eu quase conseguir ver os pelinhos do nariz da mulher que está dirigindo. Girando a câmera uns 180 graus, ele a aponta para uma mancha a centenas de metros à frente, que na verdade é um arbusto com um cervo atrás, nítido como se estivesse em pé no capô do carro. É inacreditável.

Curt estima usar a Cineflex em aproximadamente 60% das cenas da Brain Farm. Apesar de ter sido inicialmente construída para ser fixada em helicópteros, a câmera pode ser acoplada em snowmobiles, snowcats e, mais recentemente, em cadeirinhas de estações de esqui – graças a suportes especiais criados por Curt. O plano era eu acompanhar o processo de trabalho enquanto a Brain Farm experimentava o novo suporte para cadeirinha de esqui, gravando cenas de Travis e Mark na estação de Jackson Hole. Só que não havia neve nova o suficiente. Em vez disso, Curt e sua turma optaram por se enfiar numa de suas locações favoritas: as Snake River Mountains.

Para a principal cena do dia, o grupo escolheu um espaço entre umas árvores no topo de um pequeno cânion. Curt postou-se sozinho, com a Phantom, em um dos lados. O primeiro a ir foi Mark, que voou de dentro da floresta por cima da borda. Ele tocou numa árvore no ar, aterrissou e desceu para se encontrar com o resto da equipe, que incluía um cara filmando com uma câmera tradicional 35 mm e outro usando uma VariCam para gerar imagens para o programa de TV. “Foi irado”, diz Curt pelo rádio quando Mark para logo abaixo de nós. “Será que você consegue bater duas vezes na árvore na próxima tomada?” O snowboarder riu. “Ele viaja muito”, balbucia Mark, com a fala confusa por causa do lábio inchado com 13 pontos, adquirido numa queda recente.
Uma crítica que às vezes se escuta sobre Curt – que quer que cada quadro seja épico – é que ele pressiona demais os esquiadores, levando-os a realizar manobras que não tentariam em outra situação. Isto se tornou um problema para Scotty Lago. Seu salto foi absolutamente imenso, e ele também tocou numa árvore – só que não havia sido sua intenção fazer isso. A batida o tirou do eixo, e ele se viu caindo de dez metros de costas, agitando os braços violentamente numa vã tentativa de manter-se ereto. Ele caiu num pufe imenso e branco. Quando chegou ao fundo, havia neve incrustada em cada reentrância de seu capacete. “Vai ser inesquecível ver isso com a Phantom”, diz Mark. “Os braços dele vão girar umas 50 vezes.”



TRIO AVENTURA: De cima para baixo, Scotty Lago, Travis Raci e o diretor
Curt Morgan com sua Red One HD

EU NÃO COMPARECI À FILMAGEM DO DIA SEGUINTE, mas naquela noite visitei Curt na ilha de edição da Brain Farm. “Foi sinistro lá hoje”, disse ele, enquanto voltava uma cena na qual trabalhava. Curt já havia colocado uma trilha sonora de efeito para acompanhar as imagens – ele também está ajudando a produzir a trilha sonora de The Art of Flight e passou uma semana em colaboração com o músico francês Anthony Gonzalez, que grava sob o codinome de M83. Lentamente, muito, muito lentamente, a imagem de Scotty aparece no quadro, e ele executa uma manobra impressionante que eu não reconheci num primeiro momento.

“Estes são alguns dos maiores voos dele”, conta Curt, explicando que o que Scotty havia feito se chamava switch double rodeo 1080. Mas essa não era a parte mais irada. Com o impacto, o snowboarder havia dado uma joelhada no próprio queixo – bem forte. “Scotty quebrou a mandíbula, que agora foi cirurgicamente reconstruída. Passamos quase a noite inteira no hospital. E, obviamente, filmamos tudo.”

Ainda que Curt não tivesse gostado da história do programa de TV inicialmente, acabou curtindo-a depois. Produzir filmes ambiciosos é incrivelmente complicado e estressante, mas ele acredita que gravar para televisão quase não requer cérebro. Tudo que é ruim para a telona – lesões, brigas, confusões logísticas – é excelente para a telinha.

“Agora eu quase que gosto mais de TV do que de cinema”, diz. “Em cinema pode-se levar uma semana para conseguir uma cena.” Após a estréia mundial de The Art of Flight, o filme está passando por várias cidades e estações de esqui dos EUA antes de ir para o Canadá, Europa, Austrália e Nova Zelândia.

Para explorar toda e qualquer possível fonte de renda, a Brain Farm irá disponibilizar o filme simultaneamente para a iTunes Store, em DVD e Blu-ray. Também irá lançar um pequeno livro chamado The Art of Light, com imagens dos vários fotógrafos que passaram pelo set. Curt e Anthony Gonzalez – sob o nome de Three Corners of the Earth – criaram uma lista de músicas no iTunes tiradas de suas sessões de gravação, incluindo a que foi usada no trailer.

Curt está menos preocupado com as bilheterias do que com a recepção do filme pela crítica. Ainda que tenha se negado a discutir comigo as finanças da Brain Farm, tive a clara impressão de que seu trabalho comercial e hollywoodiano compõe a maior parte da sua receita, e que Curt vê o That’s It, That’s All e The Art of Flight como cartões de visita gigantes que está usando para levar sua empresa à celebridade. Se há uma crítica principal a That’s It, That’s All é que, apesar do visual deslumbrante, ainda é só um filme clássico de esporte de ação. Não tem muita história. “Uma das coisas mais difíceis é agradar aos aficionados – os que vivem e respiram isso – e, ao mesmo tempo, fazer algo que os leigos curtam”, diz Travis.

Quando falei com Curt ao telefone algumas semanas depois, ele ainda estava lidando com quanto de “componente de personagem”, em suas palavras, haveria na versão final de The Art of Flight. Ele sabe que cada tomada grande-angular de saltos épicos irá fazer pirar os ratos da neve, enquanto cada minuto a mais de personagens e história tornarão o filme mais interessante para o público comum.

Enquanto isso, Wyoming havia sido soterrado em neve. Era tanta neve que a Brain Farm acabou atrasando sua saída para Revelstoke, no Canadá, para finalizar o capítulo do filme sobre Jackson. Eles riscaram a Romênia, a Grécia e a Áustria dos planos, assim como a Groenlândia. Curt me contou que ele provavelmente montaria o filme se tivesse que fazer isso agora, porém ainda não tinha certeza de sua duração. Quando eu o visitei em Jackson, o diretor estava tendendo para um longa-metragem, mas agora já não tinha certeza.

Não que qualquer um desses assuntos lhe estivesse tirando o sono. E olha que ele é um cara ocupado. Curt tinha acabado de gravar um comercial 3-D da Red Bull e uma série de propagandas para os Marines do Exército norte-americano. Mesmo com a agenda cheia, ele já começou a pensar em seus próximos grandes projetos – incluindo, talvez, um filme de surf, um de snowboard “rodado ao redor da Antártica” e outro inteiramente gravado em 3-D. O bom é que a Brain Farm atualmente tem sucesso suficiente para que Curt não precise fazer tudo sozinho. “Antes eu costumava ter 40 trabalhos ao mesmo tempo”, diz. Agora ele consegue orquestrar uma gravação sem realmente estar presente no set de filmagens. “Pode acontecer de estar nevando torrencialmente, fazendo um frio congelante e eu me encontrar numa deli, comendo um sanduíche na lanchonete.” Sua produtora enfim chegou lá.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2012)







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