Morte e progresso em Belo Monte

Liderada pelo ambientalista David de Rothschild, uma expedição britânica vai até o Pará para chamar a atenção do mundo a uma das questões mais delicadas envolvendo natureza e progresso no Brasil: a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Acompanhamos cada passo do ativista em meio a grupos indígenas e populações ribeirinhas que se espalham pelo pulsante trecho do rio Xingu que corre o risco de desaparecer do mapa

Por Felipe Milanez, do Pará
Fotos Matthew Grey


ENRAIAZADOS: Os britânicos David de Rostchild e Nick Taylor posam
com uma sumaúma

A ÁGUA DO RIO XINGU CORRE CONSTANTE. Estou em pé numa ilha de pedras, o sol a pino é quente. Em meio à vegetação exuberante, uma placa branca se destaca: estamos no local exato onde será construída a polêmica barragem da usina hidrelétrica de Belo Monte, no coração do Pará. Paro um pouco para respirar e admirar a paisagem, que em alguns anos não mais estará aqui. Mas não tenho muito tempo para descansar, pois preciso ajudar David a pregar as asas de um tucano gigante feito de papel e madeira. Atlético, com rosto de galã escondido embaixo da barba comprida, David, no caso, é o britânico David de Rothschild, 33 anos, aventureiro, ecologista, ativista ambientalista e herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo.

De uma família de banqueiros e empresários, David já foi campeão de hipismo, baladeiro da high society e namorador de celebridades como a atriz Cameron Diaz. Nos últimos anos, no entanto, ele vem ganhando projeção internacional por suas iniciativas em pró do meio ambiente. Na mais recente, organizada em 2010 com o nome de Plastiki, David navegou o oceano Pacífico a bordo de uma espécie de catamarã parcialmente feito com garrafas plásticas. Em seus projetos, o explorador geralmente une aventura, viagens e conscientização social sobre temas que vão do aquecimento global à preservação das águas. Agora, resolveu mostrar ao planeta um pedaço de Brasil que corre o risco de sumir do mapa: Belo Monte.

Batizada de ARTiculate, a expedição ao Pará tem um viés menos científico e, digamos, mais poético que as anteriores realizadas por David. Desta vez, ele resolveu usar a arte como meio de diálogo com as comunidades que vivem na região onde será construída a barragem. Juntos, “gringos” do projeto e crianças locais tiveram como missão dar voz à natureza por meio de atividades como a confecção de bonecos gigantes em forma de animais e mitos indígenas. Eu, como repórter da Go Outside, fui convidado a acompanhar o desenrolar dessa iniciativa. “É importante contar ao mundo o que está acontecendo aqui”, me diz David. “Belo Monte é uma amostra de como a humanidade vive hoje: não entendemos o meio ambiente e cada vez mais nos afastamos da natureza.”

PELAS MARGENS DO RIO XINGU sobem extremidades de terra, os únicos desníveis que vemos nas redondezas. Descer pelas águas do rio, a partir da cidade de Altamira, é uma viagem fantástica. Ilhas de pedra, praias, vegetação densa. Em diversos pontos, lembra o litoral norte do estado de São Paulo – a não ser pelos morros, bem mais baixos. E a vegetação, mais imponente que a Mata Atlântica. Para chegar até o ponto onde me encontro agora, na comunidade da Ilha da Fazenda, foi preciso pegar duas horas de barco a partir de Altamira.

Ao longo da semana, a equipe de estrangeiros e a molecada da região construíram animais como tucanos e onças. A visão que tenho, agora, é quase surreal: ao meu lado, uma onça de papel, madeira e tela, num formato que lembra uma vaca, está equilibrada em rochas sobre as águas. Do outro lado, o boneco do tucano, que acabamos de montar. “Vamos levantar o rabo para parecer que ele está voando”, sugere David. Observo a ilha, o rio. Nesse momento, David explica o que o trouxe ao rio Xingu, onde será construída a terceira maior barragem do mundo. “Eu não sou político, muito menos engenheiro para ficar falando de avaliações técnicas”, ele diz. “Mas podemos fazer um pouco, só um pouco, ao menos, para chamar a atenção do que vai acontecer aqui.”






EXPEDIÇÃO ANIMAL: Cenas de ação que ARTicule fez no Xingu com
crianças locais, que ajudaram a desenha e a construir bonecos em forma de
animais que habitam as florestas brasileiras.

Próximo daqui, fica a Ilha de Pimental, palco da barragem. Uma escultura gigante, que representa Senã’ã, o deus mítico dos índios juruna, ainda está pendurada por cabos de aço, pronta para o principal desafio desta viagem: encaixá-la entre as pedras. Senã’ã é o xamã que criou a humanidade e o mundo, segundo a mitologia indígena. “Só ele, com os braços abertos para cima, poderá impedir a construção da barragem”, filosofa o britânico Matthew Grey, diretor e “faz-tudo” da expedição. “Claro, é apenas algo simbólico, mas de extrema importância.”

Um dos principais objetivos da expedição, organizada pela Myoo, uma agência de mídia ambiental criada por David, é expor o caso de Belo Monte como um problema não apenas ambiental, mas também social. Myoo é um termo inventado pelo bilionário a partir da pronúncia da palavra “comunidade” (community) em inglês – que seria “kuh-myoo-ni-tee”. “O centro da comunidade, essa foi minha ideia”, explica David.

Na equipe também veio Nick Taylor, um jovem talento do wakeskate, um esporte muito parecido com o wakeboard, mas no qual os pés do atleta não estão presos à prancha por botas, mas sim soltos, como em um skate. A esperança de Nick era, ao final da viagem, conseguir ser puxado de lancha em wakeskate pelo Xingu, precisamente no lugar onde vão construir a barragem, em Pimental. Se a barragem for construída, de Altamira até ali o Xingu vai ser um lago. Deste local em diante, o rio será um fio d’água, com 20% de sua capacidade. As cheias que sempre ocorreram por aqui, escondendo as pedras e invadindo as matas, não vão mais acontecer após a construção da usina.

“VEJA ESSA SUMAÚMA”, aponta para uma árvore gigante o simpático pescador Pedro Soares de Aragão, de 62 anos, que se tornou companhia constante durante toda a jornada. Cearense que adotou o Pará como lar há quase 50 anos, ele contrapunha diferentes percepções e reflexões nas conversas com a equipe, ajudando a “gringaiada” a entender melhor o impacto que a barragem terá na vida dos habitantes da região. Uma das árvores mais imponentes da Amazônia, a sumaúma tem a base ampla, formada por ramificações chamadas sapopemas. Está próxima ao rio, e o caminho até ela é feito por um chão de folhas ao redor de um lago seco. “Na cheia, aqui entra água, fica lotado de peixe”, conta Pedro. Em momentos alegres, ele mostra aos estrangeiros a natureza que lhe enche de orgulho. A sumaúma, o igarapé do seu Manoel (onde ele pescou certa vez cinco tucunarés em 30 minutos), as praias de areia branca e águas mais claras. Em horas tristes, reflete sobre as mudanças bruscas que o progresso impõe ao seu destino. “E a minha vida? O que vai ser da minha vida com essa barragem?”.

Os dias de David de Rothschild no Pará também foram de contraste. Em parte do tempo, admirava a beleza natural, especialmente fantástica nesse trecho da Amazônia. Já em momentos mais introspectivos, analisa o que ele diz ser um distanciamento entre o homem e a natureza na cultura ocidental, um caminho errado – e talvez sem volta – que a humanidade está tomando. “Belo Monte é uma fonte de inspiração para discussões existenciais. É uma grande crise da humanidade diante de nossos olhos.”

O projeto de exploração de energia de Belo Monte prevê, em resumo, o barramento do rio Xingu em dois pontos: em Pimental, onde estivemos, e Belo Monte. Entre eles, ocorrerá o desvio de cerca de 80% da água do rio para um canal a ser construído, o que irá os mais de 100 quilômetros de extensão conhecidos como Volta Grande do Xingu. Esse trecho tem a forma aproximada da letra “U”, em cujas hastes se localizam os dois pontos de barramento do rio. A dinâmica do projeto implica na diminuição do fluxo de água pela base do “U”, onde estão localizadas as terras indígenas de Paquiçamba e de Arara da Volta Grande, dos povos arara e juruna. Como bem sintetizou o pescador Pedro, “vai secar tudo aqui”.




ECOATIVISTAS: Acima crianças pintam bonecos em forma de animais da região;
O britânico David de Rothschild fotografado ao lado de uma árvore sumaúma

BELO MONTE É UM PROJETO ANTIGO, pensado ainda durante a ditadura militar. Antes se chamava Kararao, um nome que faz referência a um grupo indígena da região. Eram previstas seis usinas ao longo do rio, de forma a controlar o volume de água. Seriam alagados quase 20 mil quilômetros quadrados, atingindo 12 reservas, como a dos índios kayapó. Com a sociedade brasileira mobilizada em torno de temas sociais que culminaram na Constituição de 1988, o projeto sofreu uma oposição sólida e articulada. Índios se juntaram aos ribeirinhos e colonos, organizando uma poderosa força local. No plano internacional, o cantor britânico Sting rodou o mundo ao lado do cacique Raoni. Outros caciques então com grande capacidade de articulação eram Payakã e Kube-í. Com a força da cultura guerreira dos kayapó, Belo Monte ficou no papel.

Logo que os estudos foram concluídos, em 1989, a implantação do projeto foi suspensa por causa das discussões socioambientais. Em 2002, fizeram-se estudos preliminares e, em 2005, a Eletrobrás foi autorizada a desenvolver novas avaliações, como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e levantamentos de natureza antropológica. A partir daí, foram dadas sucessivas licenças pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama. Até que em abril de 2010 acabou sendo realizado, sob protestos de entidades ambientalistas, o leilão da usina, arrematado pelo consórcio Norte Energia, formado por empresas estatais e privadas do setor elétrico, empreiteiras, fundos de pensão e de investimento. Juntos, eles irão construir e operar a usina de Belo Monte, que terá capacidade instalada de 11.233,1 megawatts de energia elétrica e que será utilizado apenas na cheia. Na média anual, serão 5.571 megawatts/mês. Só para comparar, a usina de Itaipu tem capacidade de geração de 14 mil megawatts.

Diferentemente dos anos de 1980, nos últimos tempos não houve grande mobilização social em torno do projeto. Pelo menos não com a mesma capacidade de organização conjunta, como se viu duas décadas atrás. Há atualmente diversos movimentos sociais em Altamira, mas nem sempre articulados. Tradicionais opositores como os sindicatos de trabalhadores rurais, os ribeirinhos e até os índios hoje estão divididos, assim como a população urbana que sonha em ver a vida melhorar com a promessa de empregos e recursos.

Em Altamira é possível perceber como as transformações estão ocorrendo de forma impressionantemente rápida. Uma noite em um hotel, que no início do ano custava R$ 60, agora não sai por menos de R$ 100. A nova padaria, recém-aberta, tem rede de internet sem fio. Os barqueiros que fazem transporte de voadeira (uma embarcação de metal com motor de popa) podem cobrar preços antigos, em torno de R$ 200, ou próximo a R$ 1 mil. É um agito que contrasta com o ambiente bucólico das ilhas do Xingu.

Em meio a essa efervescência, as comunidades locais transitam entre a surpresa, o medo e a ansiedade. “Eu vivo da pesca. Tucunaré, pacu, curimatã, surubim”, diz Pedro. São peixes grandes, suculentos. Mas há também outros pescadores, como Davi da Silva, de 33 anos, que integra a Associação dos Criadores e Exportadores de Peixes Ornamentais de Altamira. No caso de Davi, a pesca é de peixes pequenos, porém coloridos, exóticos e de alto valor no mercado internacional. O mais cobiçado é o acari zebra – em extinção, o Ibama proibiu sua coleta. Uma decisão dúbia, pois a existência do peixe, endêmico da Volta Grande, está em risco justamente pela construção da barragem, que foi autorizada pelo instituto.


SIMBÓLICA: A escultura que representa Senãã e, acima a onça pintada

EM FRENTE À COMUNIDADE DA ILHA DA FAZENDA, há um rochedo que protege uma praia de areais brancas, formando um porto de águas cristalinas e calmas. Nas pedras, é fácil observar os pequenos zebrinhas na água. Próximo a essa piscina natural se localiza a escola Maria do Carmo Farias, onde a equipe de David ficou instalada. Para a realização dos bonecos da expedição, montaram-se ateliês no local, o que criou uma atmosfera peculiar. De um lado, um grupo de gringos loirões, de fisionomias e trejeitos distantes do universo paraense. De outro, crianças curiosas e animadas com a ideia de criar bonecos de bichos tão presentes em suas rotinas. “Foi muito bom para a meninada. Elas não sabem muito sobre as barragens, e uma atividade como essa ajuda elas a entender o que está acontecendo”, comenta a diretora da escola, Deibe Greciane da Silva Pinto. Além de gostar das novidades, os estudantes se sentiram valorizados.

“Quem vem aqui só quer comprar as pessoas da comunidade. Vem o consórcio que está construindo a barragem e pergunta: quer dinheiro ou casa?”, diz Deibe. O trabalho envolvendo arte por meio da construção das esculturas em formato de animais ao menos surpreendeu de forma positiva a população da ilha.

Ana, de 7 anos, está ajudando David e Matt a pintar uma onça. Seus cabelos estão sujos de tinta amarela, que também se espalha na roupa e nas mãos, mas a garota se mantém concentrada no que faz. Não tem medo?, pergunto. “Dessa onça aqui, não. Das de verdade, eu tenho, sim.” Há uma população estimada em pelo menos cinco onças na ilha, que teriam sido vistas pelos moradores, conta o pescador Pedro. Então faz sentido o medo de Ana. “Mas todas vão morrer. Aqui vai morrer todo mundo. Eu vou para Altamira”, diz a menina, que não percebe a força de suas palavras. Em seguida, fala que quer me mostrar uma música: “Onça pintada, quem é que te pintou? Foi a velha rabugenta que por aqui passou. No tempo de areia, fazia, poeira, puxa essa onça por esta orelha…”. O sentimento de dúvida que toma conta do espírito dos adultos parece também atingir as crianças. Um lugar que costumava mudar lentamente agora anda em velocidade acelerada.

O PADEIRO JOÃO LISBOA SOBRINHO, de 80 anos, está desde a década de 1940 nessa região do Xingu. Nasceu perto do rio Iriri, um afluente do Xingu, e ainda jovem foi trazido por seu pai, seringueiro, para essa parte, considerada mais segura por sofrer menos ataques de índios. João passou por garimpos e voltou depois para se estabelecer na Volta Grande. A construção da barragem e a velhice – duas aproximações com o fim absoluto – provocam nele um sentimento confuso sobre a existência. “Para mim, até que a barragem não vai ofender muito, porque eu já tô no finalzinho.” E para quem vai ficar? “Os peixes vão sumir, né? Mas para muitos até que é bom. Dizem que o pessoal que está em cima no rio já recebeu até dinheiro, e alguns compraram terra num lugar melhor. Mas têm os outros que anda não receberam nada.”

Além da população ribeirinha, os povos indígenas são outros personagens pegos de frente por toda essa polêmica. Nessa parte do Brasil, eles podem ser encontrados facilmente. Mesmo a Ilha da Fazenda, que não é uma terra indígena, tem população de índios estimada em 40% das cerca de 100 famílias. A terra indígena Arara da Volta Grande foi apenas recentemente demarcada pela Funai, em um processo conflituoso em que se expulsaram os invasores colonos. Próximo à área urbana de Altamira, há uma pequena terra arara, na altura do quilômetro 17 da Transamazônica. Ali, mesmo sem ser na beira do Xingu, os impactos estão sendo sentidos. Com o aumento da população na cidade por causa da futura construção da usina, a prefeitura de Altamira fez planos para instalar um lixão ao lado da aldeia. Mas esse é apenas um dos lados negativos que Belo Monte representa. Confusa, a aldeia não sabe como agir politicamente.

Está dividida. No dia seguinte em que chegamos do Xingu, uma discussão entre duas lideranças, Sheila e Fernando, terminou com a moça empurrada violentamente no chão. O motivo da briga era o uso do recurso do consórcio. Sheila defende que a comunidade deve se manter contrária ao empreendimento e dizer não ao dinheiro da Norte Energia. Fernando acredita que a comunidade precisa desses recursos, e que isso não significa concordar com a usina. “Eu sou contra Belo Monte”, disse ele quando fui visitá-los na aldeia. Sheila acusa Fernando de usar o dinheiro em benefício próprio.

Sheila encontrou a equipe de David, porém não quis acompanhar a expedição pelo Xingu. Como é uma liderança de seu povo, ela acredita que a iniciativa estrangeira deveria ter sido discutida internamente, como são resolvidas todas as questões que envolvem o mundo externo dos jurunas. “Eles pesquisaram na internet quem era o Senã’ã. Mas eu queria saber se eles consultaram o povo para saber se poderiam usar nosso mito. Essas crenças indígenas não podem ser divulgadas assim. É uma questão religiosa”, criticou Sheila. Mas a visibilidade não pode vir a ajudar a luta de sua aldeia? “Eles querem contribuir com a nossa causa, mas têm que ver como.”

O que é Senã’ã? Trata-se de um espírito grandioso, o criador. Para esses índios, os humanos são os povos do rio e da floresta, enquanto os espíritos mortos são povoam os grandes rochedos da beira do Xingu. Eduardo Galvão, um dos maiores antropólogos brasileiros, escreveu sobre os jurunas em seu último livro publicado em vida: “Certos locais, especialmente as rochas, são considerados a moradia dos espíritos mortos”. É compreensível que, para os jurunas, a destruição de parte dos rochedos para a construção da barragem vai mexer com o lado espiritual, essência importantíssima de sua cultura.

A escultura de Senã’ã imaginada por Matthew Grey seria feita a partir de um tronco de uma árvore de cerca de 3 metros, com longos braços encaixados na parte superior. Para adornar os dois membros, diversas pessoas da comunidade tiveram suas mãos pintadas de vermelho, que depois ficaram marcadas nos braços da entidade como impressões digitais. Foi preciso transportar a escultura até as pedras. Mas aí residiu a grande dificuldade da expedição. A tora, pesada, teve de ser carregada até o topo dos rochedos. Cabos grossos, inclusive de aço, deram sustentação e segurança para que o boneco não rolasse sobre o pequeno grupo que fazia força. Matthew tentou construir uma alavanca hidráulica. O objetivo era posicionar a escultura de frente para a ilha de Pimental, como se Senã’ã enfrentasse a construção da barragem.

Para isso foram necessários dois dias ininterruptos de esforço, equilíbrio e engenharia até encaixar o boneco entre as pedras. Ao final, deu tudo certo. Seus braços, porém, foram partidos pela metade, e equilibrados ao lado da escultura com braços menores. Na leitura de David, uma simbologia: dois números 11. Isso um dia depois do mítico 11 de novembro de 2011 (11/11/11). “Onze é um número forte. Coisas especiais acontecem nessas datas. Essa viagem é muito especial”, contou ele, em pé na ilhota, admirando as esculturas sobre as águas.


E AÍ, CARA PÁLIDA?: Índios da etnia xikrin protestam em Altamria contra a
construção da barragem

SEGUNDO O PARECER TÉCNICO DA FUNAI, que avaliou os impactos da obra sobre os povos indígenas do Xingu, serão dez as terras afetadas: Paquiçamba, Arara da Volta Grande, Juruna do km 17, Trincheira Bacajá, Kararaô, Araweté do Igarapé Ipixuna, Koatinemo, Cachoeira Seca, Arara e Apiterew. Em algumas áreas os impactos foram classificados como “indiretos”; em outros, “diretos”. Mesmo que algumas terras não sejam alagadas, terão diminuída a quantidade de água que corre pelo rio.

Em razão desse impacto, o Ministério Público federal solicitou o cancelamento das licenças por parte do Ibama. Como aproveita a vazão natural de um rio que serve diretamente a pelo menos duas terras indígenas, Belo Monte é considerada um aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas. Em razão disso, as populações afetadas deveriam ter sido consultadas – algo que elas afirmam que não foram. A Eletronorte defende a tese de que o empreendimento não se localiza em terras indígenas.

Para compensar os impactos, a Norte Energia afirma que vai investir R$ 3,7 bilhões em ações socioambientais. “Como Belo Monte foi planejada com operação em regime de fio d’água, significando uma redução expressiva no tamanho do seu reservatório, a área a ser inundada é de apenas 503 quilômetros quadrados, dos quais 228 quilômetros quadrados são o leito original do rio”, informa a empresa. Isso equivale a inundar, no total, uma área um pouco maior que a cidade de Montreal ou um terço do tamanho da cidade de São Paulo.

Toda essa questão é ligada ao modelo econômico que o país está escolhendo. Os grandes beneficiários da usina estão no Pará, chegando ou já estabelecidos: as grandes mineradoras, como a Vale, a Alcoa e a Rio Tinto. O consórcio defende a hidroeletricidade como “mais favorável para fazer frente ao crescimento socioeconômico previsto para os próximos anos, em termos de custo, viabilidade ambiental, índice de emissões de gases do efeito estufa e confiabilidade no suprimento”. Ainda segundo a empresa, a construção da usina “se insere na necessidade de aproveitar o valioso potencial hidroelétrico oferecido pelo Xingu, permitindo converter essa riqueza natural em instrumento para o desenvolvimento da região e do país como um todo”.
A empresa também defende que trará benefícios financeiros para a região. A compensação para as cidades atingidas será de cerca de R$ 200 milhões por ano.

Do outro lado do Xingu, em frente a Altamira, ficam as cidades de Senador José Porfírio e Anapu – local onde foi assassinada, em 2005, a missionária norte-americana Dorothy Stang. Tanto nas margens do Xingu e do seu principal afluente, o Iriri, quanto nas margens da rodovia Transamazônica, o que se tem é um barril de pólvora de conflito fundiário e madeireiro. Existem dezenas de pessoas ameaçadas de morte na região, não há títulos de terra definitivo e a tendência é que a pressão populacional acirre os confrontos já existentes. Faltam leitos nos hospitais, vagas nas escolas e policiais.

OS DIAS DE LONGOS BANHOS DE RIO, brincadeiras com a criança e, à noite, serenatas de insetos da mata em volta da luz dos geradores eram particularmente proveitosos para reflexões sobre o caminho que anda a humanidade. “Somos uma espécie cuja capacidade de aprimorar a tecnologia ultrapassou nossos próprios instintos. Nós criamos um mundo no qual não estamos mais preparados para sobreviver”, reflete David antes de deixar o Brasil.

O ambientalista refere-se com frequência a Djigme Padma Aungchen, um líder budista que vive na Índia. No antebraço, David tem uma tatuagem cujos traços foram elaborados por Djigme. Certa vez, o britânico pediu a ele para desenhar o que seria a natureza na sua visão. Em um traço contínuo, que lembra um eletrocardiograma, fez uma série de montanhas. Ao virar de lado, a imagem lembra um rosto humano. David acredita na tecnologia para melhorar a vida humana – “até mesmo o plástico pode ser um material maravilhoso se soubermos como usá-lo de forma não abusiva”, diz. Ele crê também que a humanidade pode repensar o rumo que está seguindo.

A tarde cai, e as nuvens tomam conta do céu do Xingu, indicando que se aproxima o período das chuvas. Tons de rosa, azul e laranja enfeitam o horizonte. Não há vento algum. O wakesurfista Nick Taylor pega sua prancha: “Chegou a hora”. Por cerca de 30 minutos, ele roda de wakeskate toda a área, puxado pela voadeira do pescador Davi. Tomou cuidado com pedras no caminho e curtiu muito a experiência. “Isso aqui é lindo, especial. Sem dúvida, é um dos lugares mais bonitos onde já fiz meu esporte. Inesquecível”. Ele olha para a grande ilha de Pimental, depois para a onça e o tucano de papel que parecem tomar conta da natureza a nossa volta. A escultura de Senã’ã também está ali, abençoando tudo e todos. “É inacreditável que tudo isso vai desaparecer. É muito triste.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2011)