Fronteiras da alma

Pedalando, remando de caiaque e escalando, o montanhista norte-americano John Harlin III dá a volta completa na fronteira suíça, em uma jornada cheia de desafios e descobertas

Por Suzana Bizerril Camargo


HORA DA MERENDA: John faz uma pausa
merecida em sua expedição

O AVENTUREIRO JOHN HARLIN III tem uma longa e forte ligação com as montanhas suíças. Foram nelas, mais especificamente na desafiadora face norte do Eiger, que este norte-americano de 55 anos perdeu o pai. Durante uma escalada em 1966, o renomado montanhista John Harlin II caiu de uma altura de mil metros quando a corda que o prendia se rompeu. Seu filho, Harlin III, tinha apenas 9 anos, mas já compreendia uma verdade absoluta: apesar dos perigos, jamais se afastaria das montanhas. Anos mais tarde, a rota fatídica foi rebatizada de Harlin III. E seria ali, naquele mesmo país, que o filho viveria algumas das maiores emoções de sua vida: uma jornada de bike, caiaque e a pé pela fronteira completa da Suíça.

Quarenta anos após a morte do pai, em 2006, Harlin subiu o Eiger pela face norte. A aventura dessa escalada nos Alpes se transformou em um dos mais famosos filmes IMAX de todos os tempos, o The Alps. No ano seguinte, o montanhista lançaria o livro The Eiger Obsession: Facing the Mountain that Killed My Father (inédito no Brasil). Além disso, Harlin se tornou editor da bem conceituada publicação American Alpine Journal, referência nesse esporte, e colaborador da revista Backpacker, outra bíblia do gênero.

No ano passado, ele voltou à Suíça em uma nova jornada cujo objetivo era conhecer mais a fundo o país onde morou na infância – mas obviamente que uma simples viagem de férias não seria suficiente para esse aventureiro. Teve, então, a ideia de dar a volta completa pela fronteira da Suíça de uma vez só. O montanhista começou a aventura em junho de 2010, mas apenas três dias depois quebrou os dois pés ao pisar em uma rocha solta no topo da montanha Aiguilles Rouges du Dolent, na região do Valais. Com isso, seus planos tiveram de aguardar mais alguns meses.

Em outubro daquele mesmo ano, durante o outono europeu, Harlin atravessou de caiaque o norte do país, na fronteira com a Alemanha, e a região do lago de Genebra. Depois pedalou toda a parte oeste que separa a Suíça da França. O rigoroso inverno fez com que ele adiasse a conclusão de sua empreitada para 2011.

Finalmente no verão europeu deste ano, Harlin retornou à Suíça e completou o desafio, ao escalar toda a região dos Alpes que divide o país da Áustria e da Itália. Ao todo, o expedicionário subiu e desceu cerca de 220 mil metros, o equivalente a escalar o monte Everest cerca de doze vezes.

A viagem por paisagens deslumbrantes e o encontro com pessoas inesquecíveis foram registrados em um diário repleto de fotos, que deve ser transformado em um novo livro em breve. A seguir, ele conta um pouco mais sobre sua jornada de desafios e autoconhecimento.

GO OUTSIDE Quais foram os momentos mais difíceis pela fronteira suíça?
JOHN HARLIN Depende muito da sua definição de difícil. Um dos mais difíceis para mim, por exemplo, foi o primeiro dia do verão passado, quando durante 16 horas eu subi 4 mil metros e desci quase 2 mil metros de uma só tacada. Foi um dia muito cansativo, mas não houve dificuldade técnica. Em termos de perigo, o momento mais tenso foi no topo da montanha Piz Tambo, quando o céu estava completamente nublado e eu não conseguia ver nada lá de cima. Acabei descobrindo que estava sozinho escalando grandes blocos de rochas soltas. Encontrava-me em um ponto muito íngreme e escorregadio e não conseguia manter o equilíbrio descendo a montanha com tanto equipamento nas costas. Não havia nenhuma dificuldade técnica, mas o tempo estava horrível.


UMA VOLTA E TANTO: Em sentido horário, John subindo o Col de I’ Evêque;
remando no Lago Genebra; dando um tapa nas ataduras dos joelhos doídos
de tanto andar; a 3.200 metros no glaciar Gorner, no monte Rosa

Como você se sentiu ao quebrar os dois pés logo no começo da viagem?
Na verdade, eu fiquei tão aliviado por estar vivo que não me senti frustrado, porque sabia que podia voltar e completar o trajeto. Eu só precisava ir para casa por um tempo até me recuperar. Em vez de ter sido uma grande e longa jornada, tornaram-se três viagens mais curtas.

Houve momentos especiais com os moradores locais?
Muitos. Um deles, por exemplo, aconteceu em um pequeno vilarejo italiano nos Alpes chamado Chiareggio. Um grupo de montanhistas fez um jantar para mim, e lá fui apresentado a um senhor de 92 anos chamado Linneo Corti. Ele escala desde que era criança. Adorei tê-lo conhecido. Momentos assim tornaram minha viagem muito especial.

Qual é a sensação de estar no cume de uma montanha entre países tão diferentes como Suíça, Itália, França e Áustria?
É lindo estar lá em cima, e o engraçado é que você não consegue ver as diferenças culturais quando está no topo. Você enxerga a natureza, as montanhas, o belo cume. É curioso quando a gente atravessa as fronteiras, porque você não consegue entender por que essa rocha pertence a um país e a outra, não. Somente quando você desce até um vale é que percebe a cultura específica de cada lugar.

É difícil realizar uma aventura dessas quando se tem 55 anos?
Eu tive que deixar meu corpo em forma. Precisei de alguns exercícios especiais para os joelhos. Não senti muito minha idade. Acredito que quando você caminha pode continuar se exercitando para sempre. O mais curioso é que meus joelhos só me incomodaram depois que a expedição acabou, quando fui para a Áustria fazer uma pequena escalada com um amigo. Eu tinha feito uma pausa de alguns dias e só aí senti meus joelhos doloridos.


NA BEIRADA: Quase no cume do Piz Bernina
(4.049 metros), nos Alpes Suiços

Sua longa experiência como montanhista o tornou mais sábio?

Eu espero que sim (risos). Acho que na teoria, sim, mas isso não me livra de apuros, como no dia em que estava no meio da névoa no alto de uma montanha e me senti realmente estúpido por estar lá. Eu deveria ter escolhido uma rota mais segura. Nesse caso, minha sabedoria e experiência deveriam ter me ajudado. Muitas vezes você acaba deixando sua ambição falar mais alto para conseguir chegar ao topo.

Você teve a chance de escalar montanhas ao lado do seu pai, quando ainda era criança?
Sim, muitas vezes. Eu fiz minha primeira escalada com corda quando tinha 6 anos, no sul da França. Aos 7 anos subi os Alpes, em Chamonix. Naquele mesmo ano de 1963, mudamos da Alemanha para a Suíça, e continuamos escalando juntos. Gostávamos muito de esquiar também.

Você acredita que a morte de seu pai na montanha teve um impacto em sua trajetória como montanhista?
Acho que sim. Meu pai era muito famoso e, quando eu comecei a escalar a sério, aos 20 anos, todo mundo me perguntava se eu tinha algum parentesco com ele, já que carregamos o mesmo nome. Obviamente que isso abriu portas para mim e me fez entrar mais rapidamente no mundo da escalada. Meu pai tinha vários amigos nesse meio. Só que ao mesmo tempo isso também fez com que as pessoas colocassem expectativa demais em mim. Senti-me pressionado a ser um bom montanhista porque tinha uma reputação a ser mantida.


PAI HERÓI: John Harlin II, que morreu durante uma escalada no Eiger

O que significou para você escalar a face norte do Eiger, o mesmo lugar onde morreu seu pai?
Foi uma enorme alegria e alívio. Eu tinha essa conexão com o Eiger, um certo medo da montanha. Era uma conexão especial, eu sentia que era a única montanha no mundo que eu tinha que escalar. Não é uma coisa racional, não faz o menor sentido, mas o nome do meu pai era sempre associado àquela montanha, então eu tinha esse desejo como montanhista de escalá-la. Entretanto eu tinha medo por causa da nossa história familiar e da péssima reputação do Eiger. Quando finalmente consegui vencer a montanha, foi um imenso alívio, pois essa escalada agora faz parte do meu passado, e eu não preciso mais ter medo dela.

Sentir-se seguro demais se torna um risco quando se é um montanhista?
Confiança demais é definitivamente um risco. Mas você precisa dela para realizar escaladas, porque se tiver medo provavelmente não as fará. Foi o que aconteceu no dia do meu acidente, quando quebrei os pés. Eu tinha tido uma manhã escalando rochas muito ruins e estava sendo realmente cuidadoso. Aí de repente em um trecho tudo ficou melhor, e deixei de tomar tanto cuidado. Comecei a ir mais rápido, não usei a proteção certa e acabei não percebendo a rocha solta.

Depois da expedição, você vê a Suíça de uma maneira diferente?
Vejo agora o quanto ainda há para ser explorando lá. Esse foi o lugar onde se começou o esporte do montanhismo no início do século 19 e parece que todo mundo já escalou tudo o que havia lá, mas ainda há muito espaço para aventuras. Também consigo entender a diversidade cultural de uma maneira mais clara. É impressionante como um país tão pequeno pode ter tantas culturas e línguas e uma paisagem tão diversa.

Há planos para uma nova aventura?
Eu penso em, talvez daqui a uns dois anos, fazer uma longa caminhada pela Grande Muralha da China. Acho que pode ser uma jornada fascinante pela história, pela natureza e pelas pessoas tão diferentes de mim.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2011)