Corajosos, destemidos, inquietos. Na água, no mar ou no gelo, eles nunca se cansam de suas jornadas desafiadoras. Para esses seis expedicionários, não basta apenas viver – é preciso desbravar
Por Maria Clara Vergueiro, Nick Davidson, Will Grant
MARK KALCH, sempre em frente
O AUSTRALIANO MARK KALCH nem lembra direito qual foi sua primeira expedição. E não é por falta de memória, mas por excesso de experiência. Pode ter sido um trekking em algum parque nacional de seu país natal ou talvez um grande rolê de remo pela costa de Namíbia e África do Sul. Ou foi uma escalada pelo sudeste asiático? Tudo depende de como se define uma expedição. “A primeira vez que me dei conta de que estava fazendo algo realmente difícil e incrível foi quando explorei a região sul da Etiópia”, conta Mark, 34 anos, recordando os momentos de trechos intransponíveis de florestas e dos ruídos de hienas rondando sua barraca à noite. O perigo é, na opinião deste aventureiro, um elemento tão importante quanto, por exemplo, a exuberância das paisagens, por despertar um forte sentimento de se estar vivo.
“Penso nas pessoas quentes e seguras nas suas vidas normais e me lembro de duas frases que li anos atrás e que definem bem o que sinto: por que pisar a vida na ponta dos pés? Para se chegar com segurança à porta da morte?”, diz Mark, que enfrentou vários perigos nas expedições que realizou.
Nenhuma, entretanto, foi tão cheia de sustos quanto a expedição de sete meses e 7.000 quilômetros, percorridos em trekking e remo, pelo rio Amazonas, desde os Andes peruanos até o Brasil. A equipe de três pessoas logo virou uma dupla quando um dos membros contraiu uma doença misteriosa. Ao longo do percurso, Mark e seu amigo Nathe levaram tiros de narcotraficantes e militares, sofreram com os males da altitude e encararam um mês de batalhas duríssimas para administrar corredeiras em trechos onde o rio ganhava 30 metros de largura.
“Durante um mês, acordávamos nos perguntando se seria aquele o dia em que morreríamos ou teríamos algum acidente sério. E não havia outro modo de descer o rio senão continuar”, conta ele, admirador de Richard Francis Burton, explorador inglês que passou pela África e pelo Brasil em plena era vitoriana. “Eu admiro a determinação dele e o desejo extremo de entender o mundo em que vivia.” Nesse ponto, Mark e sir Richard têm muito em comum. ED STAFFORD, caçador de perrengue DURANTE 860 DIAS – o equivalente a dois anos, quatro meses e uma semana – o ex-capitão do exército britânico Ed Stafford, 35 anos, abriu, na marra, trilhas na selva sul-americana para se tornar a primeira pessoa a percorrer a extensão do rio Amazonas a pé. Começando por um riozinho nos Andes peruanos, Ed caminhou por mais de 6.400 quilômetros até a o delta do rio, no oceano Atlântico, terminando a jornada em 2010.
O que tornou a expedição dificílima, da fonte do rio ao mar, não foi espremer os bernes da própria cabeça, digerir jaguatirica frita ou tentar se salvar dos incontáveis parasitas procurando um hospedeiro. Para Ed, o martírio maior era ter que botar sua pesada mochila nos ombros – incluindo um bote para atravessar o rio – todas as manhãs e chafurdar pela selva lamacenta durante quase dois anos e meio. “Não é fácil passar dois dias na selva. Um pouco mais penoso é ficar por lá uma semana. Mas dois anos na selva é insuportável.”
Ed, que recebeu treinamento militar nas florestas do Oriente Médio e da América Central, viu as atrocidades do desmatamento em primeira mão – a derrubada ilegal de árvores antiquíssimas, a devastação e queimada de quilômetros e mais quilômetros quadrados de floresta, a expansão descontrolada da agricultura e da pecuária. Depois de se aposentar do exército em 2002 e trabalhar alguns anos como guia de expedições, ele decidiu tomar uma atitude – e se lançar na sua própria aventura pessoal. Botou um laptop na mala, começou um blog para que as escolas acompanhassem seus percursos e partiu para a Amazônia.
Mas por “percurso” não se deve entender algo simples como dar um passo após o outro. Nativos da agressiva tribo ashéninka, perto de Atalaya, no Peru, barraram a passagem de Ed durante três dias. Um corte no seu braço supurou e recusou-se a cicatrizar. Ele se perdeu. Ficou desnutrido e colecionou bolhas nos pés. Caiu na beira da estrada um dia antes de chegar ao Atlântico. No fim, estourar uma garrafa de champanhe na praia gerou felicidade suficiente para que ele já começasse a planejar uma segunda expedição, que promete para setembro deste ano. O projeto, ele não divulga – apenas garantiu que “será difícil para caramba”. “É LEGAL SENTIR FRIO”, diz Eric Larsen. O explorador norte-americano de 39 anos de Grand Marais, no Minnesota, há muito tempo nutre um caso de amor com os locais mais gelados do planeta. Infelizmente, em 15 anos de corridas a pé e de trenó explorando os polos da Terra, ele testemunhou com os próprios olhos o rápido derretimento das calotas de gelo. É por isso que dedicou 365 dias, de novembro de 2009 a outubro de 2010, ao projeto Save the Poles, uma expedição inédita de um ano aos três polos da Terra – o Norte, o Sul e o Everest.
Eric chegou ao Polo Sul para coletar dados científicos, filmar um documentário e tuitar sua empreitada. De lá, voltou-se ao norte para esquiar, andar com raquetes de neve e nadar nas águas do Ártico sob temperaturas de 45 graus negativos. Seu mantra – “começar com um passo” – o impulsionou pelo gelo do Ártico que, em estado de derretimento, cedia sob seus esquis e se partia sob seu acampamento, abrindo fendas de água gelada próximas de onde dormia. De nevascas na Antártica a avalanches no Everest, Eric e sua equipe compartilharam momentos de inimagináveis perrengues.
“Uma grande parte da experiência surge do fato de que esses locais locais nos deixam embasbacados”, diz. “Mas há o contraponto da realidade, porque vimos que as características do gelo mudaram dramaticamente. É um turbilhão de emoções.” Ao testemunhar em primeira mão o retrocesso das geleiras do Himalaia, que suprem mais da metade da água potável para 40% da população mundial, Eric foi lembrado de que, apesar de o gelo do planeta estar perdendo sua integridade, não podemos perder a nossa. “Temos que dar o primeiro passo para resolver os problemas ambientais”, diz. “Estagnação não é uma opção.” PEDRO OLIVA, CHRIS KORBULIC E BEN STOOKESBERRY, rio abaixo
“LOUCO DO CAIAQUE” é o apelido do campeão mundial de caiaque extremo Pedro Oliva que, em 2009, desceu uma cachoeira de 39 metros em Salto Belo, Mato Grosso. Há quatro anos ele se juntou a outros dois “loucos” e formou um time que já desbravou cada pedaço do território brasileiro com algum volume de água. Além de Pedro, xx anos, o trio em questão é composto pelos norte-americanos Chris Korbulic, xx, e Ben Stookesberry, xx, dois canoístas com uma bagagem cheia de viagens e momentos extremos – como o que matou o amigo sul-africano Hendrik Coetzee, devorado por um crocodilo enquanto o grupo descia o rio Lukuga, no Congo, em dezembro de 2010.
Ben e Pedro descobriram o interesse em comum em explorar o Brasil de caiaque durante um mundial no Canadá, há mais de 4 anos. Depois disso, Ben veio visitá-lo por aqui com Chris, que além de saber tudo de corredeiras ainda é fotógrafo dos bons. O resultado desse encontro foi uma sequência de expedições de não menos que 40 dias, uma vez por ano. Com essa frequência, conseguiram, nas palavras de Pedro, “passar um pente fino” nas águas brasileiras, além de dropar duas das maiores cachoeiras do mundo, a Angel Falls, na Venezuela, e a Kaieteur, nas Guianas. Fazendo as contas, o trio já percorreu 60 mil quilômetros, inaugurou 50 descidas por três países, conquistou um recorde mundial (o drop em Salto Belo) e passou 140 dias em expedições. “Na Venezuela, estivemos em áreas absurdamente inóspitas. Até o Ben, o mais experiente do grupo, jamais tinha navegado por regiões tão virgens, com tanta quantidade de água e corredeiras intermináveis”, conta Pedro, que considera Ben o líder do grupo (não apenas por ele contabilizar mais de 100 primeiras descidas ao redor do mundo, mas também por ser o mais hábil na elaboração das expedições).
A afinidade entre os três é tamanha que as histórias vividas por eles em solo brasileiro foram registradas e renderam uma série para um canal brasileiro de TV paga, o Multishow. O grupo já prepara as malas para descer corredeiras no México ainda este ano e começa a conceber uma megaexpedição à China em 2012. “Quando vamos parar? Temos a intenção de chegar aos 80 anos com a mesma vontade de viajar de hoje! Jamais nos faltarão curiosidade e vontade de compartilhar o novo.” RAY ZAHAB, com asas nos pés
RAY ZAHAB NÃO NASCEU sabendo que queria correr. Na verdade, foi apenas aos 34 anos que ele resolveu trocar os 20 cigarros diários e a vida sedentária pelas utramaratonas, com um empurrãzinho do irmão mais novo, que era dado a algumas atividades outdoor. Do tipo intenso, mudou da água para o vinho e, em 2004, apenas um ano depois de começar a correr, participou da primeira competição de longa distância da vida dele. E venceu. “Eu nem conseguia acreditar. Daquele dia em diante, me tornei um corredor”, relembra o canadense de 42 anos, que fez sua estréia na canadense Yukon Arctic Ultra, de 160 quilômetros.
Foi aí que ele começou a traçar novos desafios e descobrir os próprios limites. Terminou em terceiro a prova seguinte, a Trans 333 de Níger, e aí planejou, com outros dois amigos, sua primeira expedição, de 111 dias, para atravessar correndo os 7.500 quilômetros do Saara. Queria aprender mais sobre si mesmo e descobriu que a superação poderia vir acompanhada de outro ingrediente poderoso: a inspiração. “Foi nessa viagem que percebi que queria compartilhar minhas experiências com outras pessoas.” Fundou a Impossible2Possible (“Do impossível ao possível”, em uma tradução literal), uma organização dedicada a conectar estudantes do mundo todo a partir da aventura, com “embaixadores” de 17 a 21 anos que relatam suas impressões e aprendizados em expedições realizadas no Amazonas, Ártico, África e Bolívia – sempre ao lado do experientíssimo Ray (CHECAR), que já correu solo durante 33 dias no Pólo Norte, 13 dias no inverno da Sibéria e 1.200 quilômetros no deserto do Atacama. Seja em suas expedições solo ou na companhia dos jovens, o essencial, para ele, é que suas jornadas sejam duras, belas e com potencial para inspirar os outros e ajudar a transformar o mundo.
O próximo projeto será de oito dias e 290 quilômetros pela Índia, com os jovens do I2P. A ideia é que eles avaliem e questionem a realidade de um país em desenvolvimento, com problemas como o difícil acesso à água potável, a falta de leitos em hospitais e a propagação de doenças infecciosas. Tudo isso correndo em cenários contraditoriamente belos. Depois disso, ele parte sozinho para os 300 quilômetros do Vale da Morte, nos EUA, em agosto, e segue para outros 2 mil quilômetros atravessando a Arábia Saudita, em janeiro. Haja pernas – e, claro, fôlego. DAVID DE ROTHSCHILD, sonhando grande
PARA DAVID DE ROTHSCHILD, aventura e expedição se diferenciam e se complementam como dimensões opostas da vida. “Enquanto a aventura pode estar em cada esquina no dia-a-dia de qualquer pessoa, a expedição representa a longa jornada que é estar vivo. Como se a aventura fosse um projeto de curto prazo e satisfação pessoal, e a expedição refletisse um desejo mais profundo, um sonho mais distante”, explica. Entre 2004 e 2008, o britânico de sangue azul, filho mais novo de uma aristocrática família de banqueiros, caiu no mundo para realizar viagens como as que o levaram ao Polo Norte e ao Amazonas. Depois passou três anos se preparando para atravessar o Pacífico a bordo de um barco 100% sustentável, feito de garrafas de plástico, para promover educação ambiental e alertar o mundo sobre os riscos reais da poluição dos oceanos.
O sucesso da expedição, segundo David, não foi chegar são e salvo a Sydney, na Austrália, com outros cinco tripulantes, partindo de São Francisco, nos EUA. “A maioria das pessoas tem a percepção de que uma expedição dá certo se sair de um ponto A e chegar a um ponto B. Para mim, o Plastiki (como foram batizados o barco e o projeto) começou muito antes de zarpar do porto e ainda não acabou”, diz ele, se referindo à continuidade dos projetos educacionais que nasceram com a proposta da viagem. Reunir pessoas em torno de um grande objetivo resume o que ele considera a alma do negócio, ao lado de outro componente que considera viciante. “Os expedicionários e aventureiros precisam estar conectados com o desconhecido”, acredita David, que não esconde o gosto de imaginar seu nome escrito na história ao lado de exploradores consagrados que o inspiraram “pela ousadia de terem realizado grandes missões com bem menos recursos que nós hoje”.
Avesso às salas de aula, David era um apaixonado por cavalos na época em que vivia na fazenda do tio, no interior da Inglaterra, e tirava suas próprias lições dos livros que lia e de tudo o que vivia ao ar livre. Quando, aos 18 anos, precisou se especializar, resolveu estudar medicina natural e questões relacionadas ao meio ambiente. Conciliando os dois temas, o moço de 32 anos pretende ir longe com projetos que não se encerrem em uma simples viagem, mas repercutam em inúmeros outros feitos. “Se hoje tantas pessoas podem sonhar com uma medalha olímpica, é porque um dia alguém sonhou com as Olimpíadas.” (Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2011)
NA RAÇA: Pedro Oliva carrega seu caiaque durante expedição pelo Brasil
RODADO: O experiente Mark Kaclh percorreu milhares de quilômetros por rios, desertos e montanhas
De onde vem: Austrália
Pode ser encontrado: Etiópia, Irã, Amazonas, Peru
Por quê: “Acredito que conhecendo pessoas e culturas diferentes podemos promover alguma compreensão entre todos nós”
ÁGUA NO JOELHO: Ed Stafford caminha com vigor
pelas águas do rio Amazonas
De onde vem: Reino Unido
Pode ser encontrado: Amazonas, Afeganistão e destinos secretos
Por quê: Para enfrentar perigos e alertar o maior número possível de pessoas sobre o desmatamento das selvas.
ERIC LARSEN, com bastante gelo
FRIACA MASTER: Eric Larsen ama uma expedição polar
De onde vem: Estados Unidos
Pode ser encontrado: Polo Norte, Polo Sul e Everest
Por que: “Uma grande parte da experiência surge do fato de que esses locais nos deixam embasbacados”
FRIO NA BARRIGA: Chris Korbulic na Bahia
De onde vêm: Brasil e Estados Unidos
Podem ser encontrados: Congo, Califórnia, Venezuela, Guianas, Brasil
Por quê: “Para sentir a velocidade do rio e nele ler linhas e desfrutar de grandes tobogãs naturais, correr junto com a água por passagens e caminhos onde, às vezes submersos, deparamos com a incrível sensação da queda livre”, diz Pedro Oliva
FORÇA DE VONTADE: Ray Zahab em expedição solo pela Sibéria
De onde vem: Canadá
Pode ser encontrado: Saara, Atacama, Amazonas, Polo Norte, Sibéria, Arábia Saudita
Por quê: “Sozinho ou acompanhado, o que eu quero em cada expedição é lembrar que todos somos capazes de coisas extraordinárias nesta vida”
CAUSA NOBRE: O britância David de Rothschild
De onde vem: Inglaterra
Pode ser encontrado: Antártica, Groenlândia, Canadá, ilhas do Pacífico, Equador, Amazonas, Polo Norte
Por quê: “Expedições são como a vida real, cheia de altos e baixos. A diferença é que na vida os estímulos externos nos distraem o tempo todo e em uma expedição você está completamente conectado com o momento”