Febre do cume: por que tantas vidas perdidas?


DECISÃO CORAJOSA: " Desistência na primeira tentativa ao Cotopaxi, no Equador"

Por Paulo Roberto Parofes

Summit fever é uma expressão em inglês cuja tradução literal seria “febre do cume”. Mesmo sendo uma tradução literal, está bem próxima da realidade do que seria em português. Vamos falar um pouco sobre isto, exemplificar e chegar a conclusões.

Vou começar com alguns casos que podem ser classificados como summit fever fatalities (ou fatalidades causadas pela febre do cume):

1986: Em um dos piores acidentes de montanha norte-americanos, sete adolescentes e dois professores morreram congelados tentando descer no meio de uma tempestade durante a escalada do monte Hood, estrato-vulcão relativamente pequeno de 3.429 metros. Fazia, porém, bastante frio, com glaciares, gretas e tempo completamente imprevisível. Na ocasião havia previsão de tempestade, mas o grupo continuou assim mesmo, chegando ao final trágico. Aliás, o monte Hood tem um histórico de mortes horrendo: mais de 130 pessoas perderam a vida nessa montanha até hoje. Se a montanha só estava no início de sua era de popularidade absurda (que começou no final dos anos 70) e já acumulava dezenas de mortes registradas em 1986, o que dois professores e sete alunos faziam lá mesmo com previsão de tempo ruim? Hoje cerca de 10 mil pessoas tentam escalar o Hood todos os anos.

1995:
Famosa por suas escaladas ousadas em solitário, incluindo a face norte do Eiger quando estava grávida, a alpinista escocesa Alison Hardgreavers morreu com outras seis pessoas no K2, após fazer o cume. O filho de sir Edmund Hillary, Peter Hillary, que estava na montanha na ocasião, disse em entrevista exclusiva ao jornal The Independent dez dias após o acontecido: “Alison e seus companheiros ignoraram os sinais óbvios de tempestade que chegava, e mesmo assim continuaram cegos pelo cume”. Peter Hillary, que na época tinha 40 anos, retornou de sua tentativa ao cume por evidência de más condições climáticas.

Peter encontrou Alison a caminho do cume e disse que estava “desesperadamente frio lá em cima”. Desceu até o acampamento 4, descansou um pouco, se aqueceu e, depois de descansar, retomou o ataque ao cume. Notou o clima adverso se formando (duas tempestades se movendo rapidamente, uma pelo norte e uma pelo sul), resolveu abortar a escalada, descer, se aquecer e se proteger.

A última vez que ele viu Alison e os seus companheiros, membros de outras expedições com quem juntou forças estavam na sessão chamada “Bottle Neck”, literalmente se arrastando e lutando contra o vento descomunal e as nuvens que cessavam sua visão momentaneamente.

Se o tempo estava piorando tão rapidamente, por que continuaram?

1996: Ano famoso no alpinismo mundial, quando um grande acidente aconteceu no Everest. Diversas expedições continuaram rumo ao cume mesmo após o horário de retorno, alguns mesmo após o horário de retorno e ainda horas distante do cume. O resultado foi trágico: Rob Hall, Scott Fisher, que lideravam expedições particulares, e mais seis pessoas morreram. De fato, o ano de 1996 foi o mais fatal no Everest — no total 19 pessoas morreram. Se sabiam que havia passado do horário, sabiam que o tempo iria mudar, por que continuaram rumo ao cume?

1997: Alex Yaggi de 42 anos, fez cume no Cho Oyu, desceu até o acampamento, desequipou, deitou e dormiu. Nunca mais acordou. Seus companheiros de expedição o enterraram em uma grande greta. Será que ele já se sentia mal durante a subida? Em caso positivo, por que não desceu?

2002: Três pessoas morreram no monte Rainier, nos Estados Unidos, por causa de condições climáticas péssimas. Quando iniciaram a escalada em quatro, Keeta Owens e três amigos alemães, o tempo variava entre chuva, nevasca e já havia previsão de que o tempo se deterioraria rapidamente no decorrer de menos de 24 horas. Continuaram assim mesmo e foram até o cume. Como previsto, o tempo piorou rapidamente enquanto ainda estavam muito alto no vulcão. Foram cercados por um whiteout e se separaram uns dos outros. Um jovem alemão de 29 anos desceu em solitário fugindo da tormenta e os demais não conseguiram se salvar, congelando até a morte. O tempo já estava ruim quando se dirigiam ao cume.

2006: O famoso caso de David Sharp. Todos que já leram sobre o Everest ou que tentaram escalar essa montanha já ouviram falar do “Green Boots”. Green Boots é um alpinista morto chamado Tsewang Paljor, que perdeu a vida no trágico dia 10 de maio na face norte do Everest. Seu corpo está no que ganhou o nome de “Green Boots cave”. E o nome é óbvio: ele usava botas duplas da Koflash de cor verde florescente, e ficou caído em uma pequena caverna. Todos que passam por ali durante a escalada o vêem.

Acontece que, naquela temporada de 2006, relatos diversos esclarecem que dúzias de pessoas passaram por ele na corrida pelo cume. Ao passar viam uma segunda pessoa ao lado do Green Boots deitada aparentemente morta. Os primeiros achavam que era um corpo antigo, mas pessoas que passaram depois notaram que se tratava de David Sharp, britânico que estava com severa hipotermia e exaustão. Mesmo depois que notaram que ele estava vivo, seguiram com seu ataque ao cume. Todos. O caso ficou mundialmente famoso e muito se discutiu acerca da summit fever.

2009: Sem se importar com o péssimo tempo, 18 pessoas iniciaram separadamente a escalada da montanha chamada Tomuraushi, no Japão, de apenas 2.141 metros. Das 18, nada mais nada menos que 10 morreram por causa da tempestade. Tamanho não é documento, e montanha sempre será montanha. Que desperdício de vida…

2010: Dois amigos escalavam o monte Shasta, nos Estados Unidos. Não havia ainda previsão de tempo ruim e achavam que, por causa de sua velocidade, mesmo que uma tempestade atingisse a montanha, estariam já descendo. Chegaram ao cume e começaram a descer já no escuro. O tempo virou e mesmo ainda próximos ao cume decidiram cavar uma cova na neve para bivacar. Conversaram a noite toda dentro da cova buscando sinais de desorientação um no outro e não notaram sinais de hipotermia. Quando amanheceu recolheram suas coisas e, quando se preparavam para descer, um deles, Bennett, colocando os crampoons reclamou com o amigo que estava sem equilíbrio e com visão desfocada. Seu amigo Thomas iniciou um processo de perguntas e respostas e constatou que seu amigo tinha sinais óbvios de edema cerebral.

Tentaram descer no meio da tormenta que não passava, e logo perceberam que não daria certo. Bennett piorou muito e o vento estava muito forte. Então se encordaram e rastejaram tentando perder altitude.

Em questão de minutos ele conseguiu fazer uma ligação pedindo resgate. Seu amigo Bennett pioroumais ainda, e ele fez outra cova na neve, só que já era tarde. Thomas fez massagem cardíaca, mas não viu resultado. Deixou alguma comida com o amigo, marcou a cova com um marcador do lado de fora e desceu salvando a própria vida. O corpo de Bennett foi resgatado cinco dias depois.

Eles sabiam que o tempo poderia mudar e decidiram arriscar uma escalada rápida contando com a incógnita de descer antes de uma tempestade. Não deu certo…

2011: Dois amigos escalavam a face norte da Agulha de Midi, na França, quando chegaram ao “Frendo Spur”. Percebendo que não teriam capacidade técnica para prosseguir e tampouco descer, já que é uma via de alto comprometimento, impossibilitando rapelar, ligaram pedindo resgate. O tempo mudou e ficaram presos por duas noites ali mesmo no meio da tempestade, sem possibilidade de resgate. Na segunda manhã, o mais jovem, de apenas 19 anos, conseguiu ligar para emergência e avisar que seu amigo havia caído. No terceiro dia, o jovem foi resgatado relativamente bem, mas o corpo de seu amigo, que caiu cerca de 400 metros, foi encontrado no fundo da ravina. Seria um caso de negligência? Subestimar a montanha? Excesso de confiança?

Esses foram só alguns exemplos. Eu poderia fazer um texto de 50 páginas só sobre casos assim. Mas já deu para você ter uma ideia do que a febre do cume posse causar.


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Considerações

Afinal de contas, o que é summit fever? Creio que a definição mais aproximada seria algo como “um impulso incontrolável que acomete alpinistas cuja principal característica é a obsessão de chegar ao ponto mais alto de sua montanha objetivo, não importando para tanto nada mais além do fato de chegar ao topo. Não importando condições climáticas adversas, condições fisiológicas deploráveis, riscos de avalanche, capacitação técnica, possibilidade de resgate, ou até mesmo o preço mais alto, a própria vida”.

Pensemos um pouco mais: será que a febre do cume é uma condição patológica? Não! Pelo menos não há até hoje um estudo médico científico sobre isto, não que eu encontrasse em minhas pesquisas.

De minha objetiva, penso na febre do cume mais como um fator psicológico de realização pessoal que culmina (literalmente) na incrível decisão de olhar para a morte e ignorá-la, e isto pode ser encarado de formas diferentes:

A) Investimento financeiro: Expedições no Himalaia geram um desprendimento financeiro muito alto, há casos em que o alpinista vende tudo que tem, abandona emprego (sei bem o que é isso), e investe tudo que tem na expedição. Na maioria das vezes, sem pensar no futuro de curto prazo e na família. Sendo um investimento financeiro tão alto, é muito difícil desistir e voltar sem atingir o objetivo. Muitos não desistem e perdem a vida tentando, ou conseguindo e perdendo a vida na descida como em 80% dos acidentes de alta montanha;

B) Busca da glória: Todos sabemos que montanhismo/ himalaismo/ alpinismo/ escalada/ andinismo, seja lá como for chamado, é um esporte de ego. Antigamente importava o cume, hoje ainda importa, mas não tanto quanto como se chega lá. Abertura de rota, escalada alpina solitária, sem qualquer suporte.

Temos no caso da História diversos exemplos de busca de glória ao extremo, não sabe? Vou dar uma dica bem palpável: O guerreiro Aquiles. Aquiles não se importava em ter uma vida longa e feliz, com uma bela mulher e muitos filhos, uma fazenda e amigos. Tudo que importava era a glória, que seu nome ultrapassasse a barreira da morte sendo eternizado. Por isto morreu em batalha, mas com glória. Qualquer um conhece a História do guerreiro.

Penso que os alpinistas mais audaciosos de nosso tempo nada mais são do que um espelho de Aquiles. Não se importam com o risco extremo, só visualizam a glória absoluta viabilizada pela conquista de uma rota extrema inédita, um cume virgem, etc.

C) Oitomilismo: A incessante corrida contra o relógio para a meta limitada a apenas alguns exímios nomes que concluíram a caprichada lista de cumes de 8000m+. Por mais que o grau de dificuldade de uma ou duas montanhas de oito mil metros seja baixo, é uma escalada de alto risco principalmente pelo fator climático, e pelo fator zona da morte, região acima dos 7500 metros que torna a vida humana insustentável. A esta altitude, o ser humano não vive, o corpo humano começa a falhar rapidamente com uma degradação assustadora, visível.

D) Seven summits (sete cumes): Surgiu o conceito de seven summits para os sete cumes mais altos de cada continente. As montanhas envolvidas são a Pirâmide Carstenz na Oceania (4.884m), o Monte Vinson na Antártica (4.897m), o Monte Elbrus na Rússia (5.642m), o Monte Kilimanjaro na África (5.895m), o Monte Denali na América do Norte (6.194m), Cerro Aconcágua aqui na América do Sul (6.962m) e por fim o Monte Everest na Ásia (8.850m). Lista cobiçada não? Mais um fator importante.

E) Exclusividade: Ser o primeiro de seu país, o primeiro naquela montanha, naquela rota, em uma travessia extrema, nos pólos, tudo isto é extremamente sedutor…

F) Inexperiência: Não menos importante, a inexperiência é um grande fator assassino nas grandes montanhas pelo mundo. Diabos, o Everest mesmo é conhecido por não ter praticamente nenhuma dificuldade técnica. Lembro que o Máximo disse uma vez em conversa informal “Se você pagar eles praticamente te carregam até o cume”. Um número absurdo de pessoas que escalam o Everest e outras grandes sequer são alpinistas.

G) Avanço tecnológico – excesso de confiança: O GPS de mão foi realmente um avanço fantástico. O problema é que ele pode ser um fator de confiança extra que não salva a sua vida durante a escalada, pode te apontar o caminho, mas dependendo da situação em que você se encontra isto pode não valer de nada. Apesar do aumento absurdo de escaladas nas montanhas populares norte-americanas como o próprio Hood, Shasta, Rainier, Denali, dentre outros, o número de pedido de resgates não aumenta na mesma proporção, existe até um estudo estatístico sobre isto. Aliás, 73% dos que pedem resgate são esquiadores. Apenas 3,5% dos pedidos de resgate são de fato de alpinistas.

Aqui no Brasil temos, proporcionalmente, nossos próprios riscos. Dentro de toda esta reflexão ainda temos uma outra variável que é o resgate. Sabemos que quando vamos a uma montanha remota, ou difícil, seja ela no nosso país ou nos Andes, estamos por nossa conta. Pelo menos eu nunca contei com resgate pra me arriscar por aí. Comecei minha vida no andinismo utilizando guia, ganhei confiança, e hoje tenho mesmo com a limitação de não ter transporte particular, condições e confiança suficiente para encarar as grandes montanhas sulamericanas com planejamento próprio, georreferenciamento próprio, tracejar rotas, encontrar com precisão o cume correto, fazer cume e descer com segurança. Se precisar descer e abortar, eu aborto.

De meu ponto de vista isso não é se arriscar, é colocar em prática a experiência adquirida. Do ponto de vista alheio isto pode ser se arriscar, pode ser se arriscar muito, pode ser suicídio. Entendo porém não compreendo. Entendo que uma pessoa não tenha conhecimento suficiente para dizer que o que fazemos é suicídio, e entendo que esta pessoa possa classificar nossas atitudes como ignorância ou estupidez. Entretanto, a pessoa tem as mesmas possibilidades de aprender sobre as coisas que aprendemos, se informar e saber que no final das contas, sabemos o que fazemos.

Quem foi que disse que queremos resgate? Nunca pedimos isto. Aqui no Brasil sofremos com medidas proibitivas e fica até meio chato bater nesta mesma tecla, mas faz parte. A justificativa sempre é que “A montanha é proibida pois o caminho é ruim, complicado, e se você se perder nós teremos que nos arriscar tentando te salvar”. Oras, nunca pedimos por este resgate. Aliás, sou a favor de que exista algum tipo de termo de compromisso que os montanhistas brasileiros assinem se responsabilizando pelos próprios atos e sabendo que em caso de acidente, estará por sua própria conta e risco. Aposto que a grande maioria de nossos colegas adoraria se isto existisse.

É diferente, mas é a nossa realidade. Não temos a febre do cume aqui? Não sei, é provável que não. Não temos os fatores envolvidos nas grandes montanhas asiáticas como muito dinheiro envolvido, 14 cumes, 7 cumes pelo mundo, blá blá blá. Temos nossa lista de cumes bem humilde, mas de uma beleza que só nós sabemos valorizar. É nosso e ninguém tasca.

Nos Andes já passei, assim como alguns colegas colunistas do alta montanha, pela situação de ter que desistir de um cume por causa do fator climático. Da última vez eu estava realmente perto, cinqüenta metros verticais. Mesmo assim desisti buscando prudência. A montanha continuará lá nos próximos anos e eu posso sempre economizar e voltar a tentar até conseguir com segurança. No exato ponto em que desisti, nove dias depois, um outro não desistiu e perdeu a vida. Faz parte da vida na alta montanha e eu apostaria em dizer que ele sabia do risco de morrer de acordo com a decisão que tomou, e mesmo assim fez o que queria.}

No livro de Krakauer “Into Thin Air” ele comenta que no himalaia a febre de cume é tão evidente, tão palpável, que não importa a adversidade e a certeza de morte, muitas pessoas ficam cegas com a montanha. Usa um termo forte pra tanto: “intoxicadas pelo impulso de chegar ao cume”. E por isso, perdem completamente o senso comum de segurança, perigo, descartam a própria vida por minutos de fama.

Febre de montanha? Isto é estado de espírito, decisão de momento, subjetividade, opção, conduta própria ou coletiva, impulsividade, impaciência, querer sempre mais. Um conjunto de sentimentos que obviamente não se pega, mas certamente se observa.

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