Chaminé capixaba

Muitos tentaram, sem êxito. Até que a dupla de escaladores Gustavo Silvano e Claudia Faria enfim conseguiu abrir uma nova via no duríssimo paredão da Agulha de Pancas, um bloco de granito de 600 metros localizado no Espírito Santo

Por Mario Mele


DUPLA DINÂMICA: Claudia e Gustavo, em
retrato feito na Casa de Pedra, em São Paulo

(Foto: Márcio Bruno)

COM UMA CORDA AMARRADA no ombro e falando ao microfone, o escalador carioca Gustavo Silvano, de 33 anos, dá detalhes sobre sua mais nova conquista: uma via inédita em um paredão de 600 metros aberta por ele e pela paulista Claudia Faria, 26, na cidade de Pancas, no Espírito Santo. A dupla está num famoso ginásio de escalada de São Paulo, contando a 30 pessoas – que pararam por 1 hora seu treino naquele dia só para ouvi-los – sobre o quanto foi desgastante e desafiador escalar o imponente monólito de granito conhecido como Agulha.

“Muitas tentativas foram feitas nessa pedra, mas poucas tiveram êxito”, conta Gustavo, com propriedade. Na última década, com seu parceiro Leonardo Alvarez, ele já havia conquistado os dois blocos vizinhos: a Pedra da Gaveta, em 2000, e a Pedra do Camelo, em 2010. “Mas a escalada na Agulha impõe mais respeito, principalmente pelas chaminés, que exigem muita técnica.” (Chaminé é uma fenda entre duas paredes rochosas com largura suficiente para o escalador ficar dentro e subir apoiando-se nas laterais, como se estivesse subindo a chaminé de uma casa)

Em julho deste ano, Gustavo e Claudia carregaram cerca de 100 quilos de equipamentos na caçamba de uma Toyota Hilux e encararam os 700 quilômetros que dividem o Rio de Janeiro do Cinturão dos Pontões Capixaba, no extremo oeste do Espírito Santo, onde fica Pancas. Este foi só o primeiro momento da dura semana de trabalho que teriam pela frente. Nos próximos seis dias, eles dividiriam todo o peso nas costas para colocar em prática o real objetivo da viagem: conquistar a face norte e virgem da Agulha.

Ao mesmo tempo em que narra o dia-a-dia da expedição, ilustrando suas palavras com fotos da aventura projetadas em slide, Gustavo deixa claro seu estilo de escalador “largado”. Não pelo jeito de se vestir, mas por mostrar certa preguiça em acompanhar a evolução tecnológica do esporte que pratica. “Sou um montanhista à moda antiga”, assume, antes de finalmente explicar por que mantém uma corda de escalada pendurada no ombro durante toda a palestra. “Esta é minha ‘geringonça’, um rack de equipamentos que eu mesmo criei e que também serve de estribo em escaladas artificiais. Na verdade, eu só não uso a geringonça para passear com meu cachorro.” Em seguida, Gustavo saca da mochila um grampo de escalada que jurou ser de 1912.

Segundo ele, a peça de ferro se soltou do Dedo de Deus, o icônico pico localizado no estado do Rio, e ele apenas a transportou ao seu “museu” particular. Depois apresentou à platéia uma barra de ferro, dessas usadas em construção, de uns 30 centímetros e dobrada em 90º na metade. “Este é o grampo ‘pé de galinha’”, recomeçou. “Antigamente, os escaladores o entalavam numa fenda na rocha e colocavam um tronco de madeira em cima para ganhar altura. Não precisei usá-lo na Agulha.”
A essa hora, até experientes escaladores de big wall ali presentes já o chamavam de Professor Pardal, o famoso inventor dos quadrinhos da Disney. Gustavo encarou tudo com bom humor. “Já quebrei dedo, perna e tenho 18 pinos no braço, mas nenhum dos acidentes foi por negligência de equipamento.” A seu lado, a parceira Claudia ria da situação, consciente de que o amigo inventor preza acima de tudo a segurança.

Eles se conheceram em maio passado, durante um jantar entre amigos escaladores. Na ocasião, Claudia contou que há dez anos se dedica à escalada esportiva e ao boulder, modalidades que focam mais a dificuldade técnica que a altura a ser conquistada. Ela inclusive chegou a morar uns meses na Espanha e na França, onde teve a oportunidade de escalar picos famosos dessas modalidades, como o Cuenca e o Fontainebleau. Mas confessou que tudo o que sabia sobre a utilização de equipamentos móveis, como nuts e camalots – imprescindíveis em escaladas em big wall como a da Agulha –, ela tinha aprendido apenas na teoria, durante a época em que foi vendedora de uma loja de artigos de montanha.

Quando Gustavo soube que, por causa de compromissos profissionais, o parceiro Leonardo Alvarez não poderia se juntar a ele para o último episódio da trilogia capixaba – a conquista da Agulha –, imediatamente se lembrou de Claudia. A escaladora topou de primeira o convite. Mal sabia ela em que aventura estava se metendo. “Descobrir como os equipamentos funcionam na prática foi de menos”, diz Claudia. “O mais cansativo foi mesmo me acostumar a subir longas distâncias usando corda e jumar.”
Se toda grande expedição é marcada pela imprevisibilidade, na conquista de um big wall isso não é diferente. A dupla só não contava com tantas surpresas que a Agulha os reservara. Quando estavam havia quatro dias na parede, tendo completado um terço da via, se deram conta de que tinham disponíveis apenas oito chapeletas (um tipo de ancoragem que é fixada à rocha) e dez grampos em forma de “P” (que é preso em fendas). Aquele tinha sido um dia bom, que rendeu 120 metros de conquista. O problema é que ainda estavam a 400 metros do topo. Dezoito proteções seriam poucas até o cume.


MORRO ACIMA: Claudia durante a subida da Agulha de Pancas
(Foto: Divulgação)

A AGULHA DE PANCAS é reconhecida como a maior pedra em formato pontiagudo do Brasil. Foi escalada pela primeira vez em 1959. Pela face sul, Giuseppe Pellegrini, um escalador italiano radicado no Brasil, liderou a expedição pioneira. Uma nova tentativa aconteceria somente dez anos depois. Hoje, aos 71 anos e aposentado do esporte, Giuseppe é diretor técnico do Bondinho do Pão de Açúcar. Certa vez, quando Gustavo voltava de uma escalada no morro da Urca, encontrou-o no teleférico e imediatamente lhe disse sobre a intenção de escalar a Agulha – só que, dessa vez, pelo lado norte. “Será uma das escaladas mais lindas do Brasil”, garantiu o italiano de sotaque carioca, lembrando da sensação que viveu há mais meio século. “Desde o êxito de Giuseppe, choveram tentativas de escalar a Agulha”, garante Gustavo. “Mas poucas tiveram êxito.” Uma das razões são as complexas chaminés que dominam as últimas sessões pouco antes do cume.

No momento em que se viram derrotados por não terem chapeletas e grampos suficientes para conquistar a via até o cume, Claudia e Gustavo tinham acabado de avistar as tais chaminés. “Parecia que a escalada terminaria ali, pelo menos por enquanto”, recorda Claudia. “Mesmo indo embora naquele momento, a experiência já tinha valido a pena de tão sensacional”, completa Gustavo.

A dupla voltou ao solo e Gustavo telefonou ao amigo Oswaldo Baldin – um escalador do Espírito Santo que naquele momento estava em Vitória, a mais de 150 quilômetros de Pancas – e perguntou se ele poderia presenteá-los com algumas chapeletas. Na mesma noite, Gustavo e Claudia receberam a visita do secretário de turismo da cidade, que bateu à porta da pousada onde estavam com um embrulho em mãos. Dentro da caixa, havia 24 dessas proteções, cedidas por Oswaldo e trazidas por um motorista da prefeitura que, por mero acaso, estava indo de Vitória a Pancas no mesmo dia em que a ligação foi feita. “No fim das contas, perdemos apenas 24 horas de escalada, que foram fundamentais para descansarmos”, diz Gustavo.

A ESPERANÇA CONTINUAVA VIVA. A dupla gastou metade de um dia só para chegar ao ponto onde tinha abandonado a escalada. Na palestra que deu sobre a via, em São Paulo, ele ainda reforçou seu lado “largadão à moda antiga” ao assumir que tinha sido na Agulha a primeira vez que utilizou uma furadeira à bateria, comum na escalada e usada para agilizar a fixação dos equipamentos de segurança na pedra. “Tenho problemas no braço e na coluna que me impedem de passar muito tempo numa parede”, completou. Já era noite quando conseguiu transpor lances bem expostos, fixando proteções nas fissuras da rocha para finalmente vencer a chaminé. Às 21h, com o sonho do cume prestes a virar realidade, eles aliviaram o peso deixando alguns equipamentos pela parede. “Recuperamos durante a descida”, diz Claudia.

O ritmo de subida era forte, e Gustavo chegou a uma importante conclusão sobre aquele momento: “Abrir uma via de escalada à noite é a coisa mais louca que existe”. Quando partiram para o que chamaram de “a cordada mais importante da vida”, a lua cheia fez o favor de iluminar as últimas agarras até o cume, onde chegaram pouco antes da meia-noite do dia 18 julho. Até a data tinha sua importância. Também foi no dia 17 de julho, há 52 anos, que Giuseppe e sua gangue pisaram naquele mesmo topo pela face oposta.

Antes de esticarem as pernas em um platô secundário onde passariam a noite espremidos, Claudia e Gustavo compartilharam um jantar com o que restou: uma lata de sardinha e um pote de azeitonas, brindados com o último litro de água. Nem pensaram nas 6 horas de rapel que os esperavam no dia seguinte até o chão.

Dentro do ginásio de escalada, Gustavo agora explica a decisão da dupla de batizar a via de Bernardo Collares, nome do escalador brasileiro morto no começo deste ano ao tentar escalar o Fitz Roy, na Argentina. “Apesar de eu nunca ter dividido uma corda com o Bernardo, ele foi um cara que abriu portas para o montanhismo. Ele ajudou a construir a boa imagem dos escaladores junto aos órgãos que administram os parques nacionais brasileiros. Se hoje somos tratados com respeito, devemos muito ao Berna.” A segunda opção de nome era “Linha Mágica”. É que deu tudo tão certo que, às vezes, nem Gustavo acredita que chegou ao topo da Agulha.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2011)







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