Sal com cinema

Equipe de filmagem decide refazer a antiga Rota do Sal, de Goiás ao Pará, para contar em um documentário as aventuras vividas pelos quilombolas kalunga séculos atrás


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Por Mariana Mesquita

A PARTIR DOS ANOS DE 1700, um trajeto de 5 mil quilômetros pelo então isoladíssimo interior do Brasil começou a ganhar fama entre os habitantes do sertão goiano. Negros quilombolas percorriam, em embarcações a remo, o rio Tocantins e seus afluentes em uma jornada de cerca de um ano, da Chapada dos Veadeiros (GO) até Belém do Pará. Enfrentavam perigos e doenças devastadoras em busca de um artigo essencial naquela época: o sal. Item raríssimo por aquelas bandas, o sal ajudava a conservar os alimentos e, por isso, valia todo e qualquer sacrifício.

Parte das histórias envolvendo a chamada Rota do Sal ficou guardada com os descendentes do povo kalunga, o maior remanescente quilombola do Brasil, que hoje habita a região norte de Goiás. Fascinado pela saga desses primeiros aventureiros brasileiros, um grupo de produtores de cinema e vídeo decidiram refazer parte da rota para realizar o documentário A Rota do Sal Kalunga. O filme mostrará os melhores momentos de uma expedição que está percorrendo cerca de 2.400 quilômetros do histórico caminho, atravessando quatro estados brasileiros (Goiás, Tocantins, Maranhão e Pará). As filmagens começaram em 16 de maio e têm previsão de terminar em 17 de setembro. O projeto revelou-se uma verdadeira odisseia pelos rincões do país, em que 11 pessoas, entre diretores, fotógrafos, assistentes e pessoal de segurança e apoio desdobraram-se para remar, filmar e entrevistar personagens marcantes ao longo do trajeto.

Após concluído, o que deve acontecer em janeiro de 2012, o documentário participará de festivais de cinema pelo Brasil e será exibido em escolas de povoados ribeirinhos do rio Tocantins. Batemos um papo com André Portugal Braga e Cardes Amâncio, diretores da produtora mineira Avesso Filmes e coordenadores da expedição, para saber mais sobre as filmagens.

GO OUTSIDE: Como surgiu a ideia da Rota do Sal Kalunga?
ANDRÉ PORTUGAL:
Foi há seis anos, quando estávamos pesquisando algumas histórias sobre rios e raízes brasileiras. Já tínhamos vontade de fazer um “river movie” quando ouvimos falar pela primeira vez dos antigos moradores da comunidade kalunga, o maior remanescente de quilombo do Brasil. Eles contaram que seus avôs navegavam até Belém do Pará em uma viagem que durava um ano descendo e subindo o Tocantins e percorrendo quase 5 mil quilômetros do território a remo. A viagem era feita nas cheias do rio, aproveitando as melhores condições de navegabilidade, pois o rio possuía perigosas corredeiras e cachoeiras. Na volta, para vencer a correnteza, utilizavam ganchos e forquilhas laçados nas árvores das margens. Toda a viagem era realizada com o objetivo de se conseguir o sal, item importantíssimo para a alimentação do povo e para a criação de animais.


BRASILZÃO: Fotos feitas pela equipe, barquinho em Aguiarnópolis

Como foi a preparação para a viagem? Tiveram de treinar muito remo antes de partir?
CARDES AMÂNCIO:
Todos os envolvidos na remada sempre tiveram uma ligação com esportes de aventura, principalmente escalada. Por isso não houve nenhum tipo de treinamento especial, a não ser seguir com nossa rotina de esportes. Para concretizar uma aventura do porte da Rota do Sal, no entanto, a maior preparação precisa ser mental. Sabíamos que o rio seria nosso “personal trainer” e a determinação, nosso guia. Quanto às técnicas de caiaque, passamos seis anos esperando nossa iniciação básica, que se deu no rio Paranã a poucos dias do início da expedição [o Paranã nasce no Planalto Central e, mais tarde, ajuda a formar o rio Tocantis].

Quais foram os momentos mais marcantes da viagem?
Um dos momentos mais emocionantes foi quando dona Procópia, uma das lideranças dos kalungas, pediu ao final da entrevista que gravássemos uma reza sua e lhe mandássemos a fita depois para que, no futuro, seus filhos e netos pudessem vê-la. Ter conhecido seu Epifânio, também kalunga, foi revelador, pois ele trazia na memória o que lhe relatou seu bisavô sobre a formação do quilombo. O rio até hoje liga as pessoas. Ao ouvirmos suas estórias, também começamos a fazer parte dela.

E a parte técnica de se filmar em um rio? Muito complicada?
Optamos por levar conosco duas câmeras Canon 5D, versáteis pelo tamanho e com impressionante qualidade de gravação, comparável à beleza das câmeras cinematográficas de 35 milímetros. Tripés, monopés, microfones, rebatedores, gravadores de som… Todo o set é transportado em um barco a motor, protegido por sacos estanques à prova d’água. Temos também uma GoPro [câmera à prova d’água que pode ser acoplada à cabeça ou a outros suportes], que geralmente vai com alguém nos caiaques e garante as imagens subjetivas da aventura. O conjunto dos equipamentos é coerente com nosso estilo de filmagem, mais livre, de muita câmera na mão. Numa expedição desse tipo, “menos é mais”, e quebramos a cabeça para equacionar a qualidade de gravação com o espaço para o transporte dos equipamentos.

Teve algum trecho mais difícil de ser transposto?
Um ponto complicado do trajeto foi a cachoeira do Funil, no município de Lajeado, em Tocantins. É das poucas cachoeiras que não foram submersas por barragens. Ela é famosa pela dificuldade de ser atravessada por embarcações e pelos acidentes (muitos deles fatais) sofridos por aqueles que antigamente eram obrigados a navegar por ali. Essa era praticamente a única forma de locomoção na região até a construção da rodovia Belém-Brasília. Vários moradores nos aconselharam a evitar o local, pois ainda hoje ocorrem mortes e naufrágios. Resolvemos fazer uma visita por terra para avaliar os riscos. Foi um dos dias mais tensos da expedição, mas deu tudo certo e fizemos boas fotos e imagens.

Além do rio, quais outras dificuldades foram enfrentadas pela equipe até agora?
A longa duração da expedição e a permanência da equipe em campo começam a se revelar uma de nossas maiores dificuldades. Aliado a isso, estão todos os obstáculos de se produzir um filme no Brasil, entre eles o clássico orçamento reduzido. As dimensões de nossa Rota do Sal são continentais, por si só a aventura já demandaria um bom esforço. Quando chegamos das remadas, ainda temos de produzir o filme, agendar entrevistas, checar locações e resolver onde iremos dormir, comer e nos locomover nas cidades.

Quais as expectativas de vocês em relação ao documentário?
Queremos fazer disso tudo um filme capaz de unir aventura contemporânea à identidade e cultura brasileiras. Depois vamos levar esse trabalho para as escolas públicas como material didático, contando a ocupação do centro e norte do país a partir da memória de seus povos originários. Desejamos passar para o espectador a sensação do que é estar em movimento em um “river movie”.

Com é possível saber mais sobre a expedição de vocês?
O projeto possui um site oficial (rotadosal.com.br) com vídeos e algumas das mais de 3 mil fotos tiradas por Gustavo Baxter. Nele, é possível também acompanhar, na seção “mapa da expedição”, a localização da equipe e os diários de bordo dos integrantes.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2011)







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