Tribo renovada: skatistas levam o esporte para aldeias no Norte do Brasil

Por Bruno Romano, com fotos de Heverton Ribeiro*

skate
O skatista Otaviano Neto se diverte com os curumins da tribo tukuya, pelas margens do rio Negro

O CURUMIM NÃO TIRA os olhos do skate. Até que decide tocá-lo. Sente a madeira com a sola dos pés, se impressiona com a aspereza da lixa. Com a ponta dos dedos, gira as rodinhas e observa atento o movimento. Não deu outra: o“carrinho” logo começa a rodar pelo chão de terra batida. Mais gente se anima. Enquanto alguns começam sentados, outros já se arriscam de pé. Em pouco tempo, todo mundo se diverte com a nova brincadeira, mostrando que equilíbrio e coragem há de sobra por ali. A cena é vivida com emoção por um grupo de skatistas profissionais que visitou a tribo tukuya, em Manaus, nos arredores do rio Negro, no fim de 2017. A interação inédita e tocante marcou os primeiros passos de um projeto responsável por transformar de vez a história do skate no norte do Brasil.

Assim que o barco dos visitantes aporta nas margens da área da tribo, uma comitiva de boas-vindas recebe de braços abertos a trupe de skatistas – Otavio Neto, Paulinho Barata, Henrique Imperiano, Emmanuel Rezende e Thomaz Dog, junto do local Maikon Quaresma, dos cinegrafistas Wesley Silva e Zezé Luz e do fotógrafo Heverton Ribeiro. Basta deixar para trás o leito do rio para imergir na cultura local. Pinturas de rostos e corpos, danças, cantos, histórias e outros rituais típicos tomam conta da improvável integração. E como a ideia era também trocar experiências, assim que absorvem um pouco dos costumes, os “forasteiros” começam a explicar por que estão ali.

“Falamos para eles que os skatistas são como uma grande tribo; nós nos comunicamos por meio do skate, usando uma mesma linguagem que se espalha pelo mundo”, conta Otavio Neto, 38, paulista com 18 anos de skate profissional na bagagem que se emocionou ao reencontrar raízes indígenas de gerações passadas. Ele também notou a habilidade geral em cima dos shapes em um momento de aprendizado solto, respeitoso e cheio de diversão. Ao se despedir, Otavio e os companheiros se sentiam energizados para encarar o grande motivo de estarem por aquelas bandas: retornar à capital para construir um novo skatepark na região. O grupo parecia mesmo pronto. Mas ninguém ainda tinha noção exata da enorme transformação que iria viver.

Toda energia e disposição seriam necessárias. Debaixo de lonas improvisadas para amenizar o calor sufocante de Manaus, o coletivo arregaça as mangas, aciona as ferramentas e começa a tirar do papel os primeiros obstáculos. O objetivo é dar vida a uma quadra poliesportiva no Passeio do Mindu, ponto de lazer que andava meio abandonado na região centro-sul da cidade, tornando-o uma nova referência na prática de skate, algo extremamente carente no pedaço. “Com essa ideia em mente, fomos colocando tudo em prática de forma bem lúdica; foi uma criação criativa, parecida com o próprio andar de skate”, relata Otavio.

A pista foi feita no esquema DIY, da sigla em inglês Do It Yourself (ou “faça você mesmo”), uma prática comum na “tribo” do skate mundial. A diferença dessa vez é que o projeto teve patrocínio da Levi’s Skateboarding, marca que impulsionou nos últimos anos a criação de skateparks nesses mesmos moldes em países como Colômbia, Equador, Estados Unidos e Índia. A iniciativa não demorou a ganhar apoio essencial da comunidade do skate local, como conta Maikon Quaresma, 27, skatista amador manauara: “Foi tudo muito intenso, acabamos conhecendo melhor cada um que se jogou nesse projeto e a nós mesmos e nos transformamos em uma verdadeira família”. Durante 35 dias, os skatistas compartilharam uma mesma casa e uma rotina que mesclava muito trabalho duro no Mindu com saídas para produção de conteúdo pela cidade. Entre rolês de skate em pontos turísticos clássicos ou inusitados (como navios abandonados nos arredores da capital), tudo era motivo para experimentar novidades, interagir e evoluir. Afinal, como lembra Maikon, que hoje se dedica totalmente à modalidade na busca de um caminho pioneiro de se tornar profissional, não é todo dia que um grupo de “prós” invade Manaus.

De volta ao batente no Mindu, Paulinho Barata reúne skatistas manauaras para ir atrás de entulhos. Em plena floresta amazônica, próximo a áreas mais urbanas, a aglomeração de lixo é uma triste realidade. Logo, reaproveitar dejetos como matéria-prima para a pista veio a calhar. A prefeitura também entrou na onda e forneceu materiais descartados e auxílio com transporte. Aos poucos, a obra heroica de tirar um skatepark do chão ia entrando em sintonia. Quem passava pelo Mindu mostrava curiosidade e, mesmo sem entender nada sobre skate, reconhecia o esforço. Não era raro ver moradores chegando com água, salgados e açaí para oferecer aos skatistas. O empenho varou madrugadas. E nada parecia abalar o sonho que, a cada dia, se aproximava da realidade.

“Tinha certeza de que seria um desafio enorme, mas também sabia que estava prestes a viver uma das experiências mais incríveis na minha vida por meio do skate”, diz Emmanuel Rezende, o Manu, skatista e um dos idealizadores do projeto. Além de meter a mão na massa, ele também dirigiu o documentário Amazon Project, registrando a vivência. “A disposição dos skatistas locais nos deixou impressionados e foi um fator crucial para a execução da pista”, conta Manu, que celebra também as novas amizades que, segundo ele, serão para toda a vida.

O projeto também resgata uma prática antiga e essencial da modalidade. Na contramão de parte das gerações mais novas – que já encontra pistas prontas, fruto da popularização do skate ou lamenta a falta delas –, o processo relembra a todos que também é possível conquistar espaço de outra maneira. Com esse plano fixado na mente e com o embalo de mais de um mês de trabalho árduo e coletivo, o Mindu finalmente ganhou seu novo skatepark. O lançamento oficial, no fim de 2017, marcou para sempre um lugar (e uma história) que a galera local nunca vai esquecer.

“Bora pro Mindu!” – o convite agora é comum na capital. “O carinho de todos que vieram de fora para construir e ensinar foi gigante”, observa Maikon. “E o lance de abrir espaço para os locais deixou como legado um sentimento muito forte e fez todo mundo ter mais amor pelo lugar.” Nos últimos meses, a tribo de skatistas manauaras tem crescido, com muitos novatos aparecendo, enquanto o esporte se integra de vez na comunidade – até campeonatos já foram disputados na nova pista. Se o desafio era achar bons lugares para praticar enquanto se dribla o inimigo número 1, o calor, ao menos uma barreira já foi quebrada.

“A pista também inspirou as pessoas a não ficarem paradas na vida, buscando um algo a mais”, diz Maikon. “Ela trouxe à tona a coragem e esse ímpeto de fazer acontecer, sempre mantendo a alegria e a positividade”, completa o skatista, descrevendo a finalização do projeto como algo mágico. A sensação também bateu forte em quem não mora ali, depois de tanto tempo dedicado ao skatepark. No relato de Henrique Imperiano, a energia colocada na construção da pista volta na hora de andar de skate. Depoimentos como esse se espalham pelas redondezas do Mindu, junto de histórias de que o skate tem mudado vidas.

“Toda a iniciativa, da visita à tribo até a entrega da pista, foi uma verdadeira comunhão e uma prova definitiva de que o skate tem mesmo esse poder de quebrar barreiras”, conclui Otavio Neto. Ele é um dos que se divertem nas novas rampas e bordas do Mindu. Com o passar dos dias, os obstáculos desenhados vão abrindo passagem para o caminho da evolução. Nessa via de mão dupla, ainda em construção, locais como Maikon pegam o embalo e miram longe. Em uma noite clássica de skate, agora típica em Manaus, você pode vê-lo fazendo o que mais gosta: voar para fora da rampa, bater os pés na grade e voltar de pé na base, deslizando solto pela pista. Os locais vibram com a manobra e batem seus skates no chão. Eles estão em casa.

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*Reportagem publicada na edição nº 150 da revista Go Outside, abril de 2018.







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