Para ver a aurora boreal e conhecer de perto uma das civilizações mais isoladas da Terra, o escritor e fotógrafo Andrei Polessi parte para a gélida ilha – sozinho, a bordo de uma van e cheio de coragem que só os novatos em nevascas possuem para encarar o país em pleno inverno.
Texto e Fotos por Andre Polessi
Era meu último dia por aquelas terras, e a temperatura não parada de cair.
Toda vez que eu descia da van para tirar uma foto, sentia o frio cortante no rosto. Em questão de minutos, o ambiente gélido tomava conta também das pernas e, depois, de todo o corpo. Envolto por um tempo fechado, avistei no horizonte o que parecia ser uma garoa fina se aproximando. “Com essa temperatura, não pode ser chuva”, pensei. A conclusão óbvia: era uma nevasca chegando.
No painel do veículo, uma luz piscava, já avisando: “Icy conditions”. Era o alerta para um possível congelamento da estrada. Dias assim exigem cuidado, atenção e experiência (no meu caso, inexistente).
Eu ainda dispunha de três horas de viagem pela frente até alcançar a capital, Reykjavík, e, de lá, a peregrinação de 40 horas em vários voos de volta para o Brasil. Apesar de ter combustível e comida suficientes para alguns dias, a última coisa que eu queria era ficar preso ali no meio daquele mau tempo. E nada mais comum no inverno da Islândia do que estradas fechadas por gelo e neve. Pisei no acelerador. Em 20 minutos, os primeiros flocos começaram a acumular no meu para-brisa, um branco que foi aos poucos tomando conta da paisagem ao meu redor, depois da estrada, depois de tudo.
Quando dei por mim, tinha sido engolido pela tempestade. Eu estava oficialmente em um famoso whiteout islandês (o termo descreve a situação em que, em uma nevasca, tudo à nossa volta se torna branco, com a visibilidade quase zero). Os ventos balançavam a van com uma força assustadora. Arremessavam com fúria sobre o veículo toda a neve que caía.
As estradas na Islândia, por si só, já são um risco: não têm acostamento na grande maioria dos trechos e são de mão dupla, com apenas uma faixa em cada sentido. No meio daquele branco todo, só o que me guiava eram pequenas estacas laterais que demarcavam o traçado da rodovia. Estacionar, nesses casos, é mais arriscado do que seguir. Então continuei em frente. Naquela hora, pensei que, em vez daquele lugar, eu poderia estar em uma praia ensolarada. Mas daí eu não teria enchido os olhos com tantas paisagens e experiências que vivenciei naquela última semana. Teria perdido cenas de tirar o fôlego, com cachoeiras, glaciares, gêiseres, cavernas de gelo e auroras boreais. Lembrei que alguns destinos só se revelam para pessoas teimosas. Lugares que você tem que querer muito conhecer para conseguir chegar. Cantos em que o caminho nos desafia e nos testa a todo instante. Veio à mente aquele ditado que diz: “Para ver o arco-íris, é preciso encarar a chuva”. “Ou uma nevasca”, acrescentei. Sorri, liguei o rádio e segui apreciando aquela imensidão branca e linda, que eu acabava de ganhar de presente de despedida.
A ISL NDIA É UM LUGAR único em todos os aspectos. Com pouco mais de 350 mil habitantes, esse país de língua difícil se estende por uma ilha vulcânica de aproximadamente 102.000 km2 (o tamanho de Pernambuco). Situa-se no meio do Atlântico Norte, entre o Reino Unido e a Groenlândia. Localizada em uma alta latitude, a ilha beira o Círculo Polar Ártico a 66o Norte, perto do Mar da Noruega (a ilha islandesa de Grímsey, 40 km da costa, já fica dentro da faixa do Ártico).
Isso faz com que a Islândia fique exposta a condições climáticas extremas por todos os lados. A corrente marítima do golfo, que sobe da América Central em direção à Europa, faz com que todo o sul da ilha seja mais quente, com um inverno menos rigoroso. O norte é congelante, com clima subártico. Durante a estação fria, permanece com acesso limitado em decorrência das nevascas que invariavelmente fecham as estradas.
O clima, aliás, é uma das especialidades dos islandeses. Algo que eles tiveram que aprender a entender para viver em meio a tanta imprevisibilidade. Os locais costumam dizer: “Se você não gosta do clima na Islândia, espere 15 minutos”. E isso é verdade. Nesse curto espaço de tempo, tudo pode acontecer. Pode chover, abrir o tempo e sair o sol – para, logo em seguida, cair uma nevasca. Tudo em questão de horas.
O Escritório Meteorológico Islandês mantém um site e disponibiliza um aplicativo, o Vedur (vedur.is). Seu uso é quase obrigatório para quem quer transitar pelas estradas do país e não ser pego de surpresa. Todo mundo o utiliza por lá. O serviço gratuito oferece previsão do tempo e alertas de tempestades, nevascas e ventos (tão fortes que podem ser extremamente perigosos). Traz ainda informações sobre o nível das águas, possibilidades de deslizamentos, avalanches e atividades sísmicas. Enfim, coisas corriqueiras por aquelas bandas. Como todo serviço de previsão do tempo, a tecnologia nem sempre acerta. Entretanto, na maioria das vezes, as informações são bem confiáveis. Outro importante serviço oferecido pelo site é a previsão das auroras boreais.
Para quem curte a vida outdoor, a Islândia é um destino que merece várias visitas. Como eu só contava com uma semana livre, optei por restringir o foco da minha viagem para alguns poucos lugares.
Diferentemente do que grande parte das pessoas faz, eu não tinha a mínima pretensão de conhecer todo o país. Muita gente segue um tradicional roteiro conhecido como Ring Road, em que se completa a volta na ilha passando pelos principais pontos de visitação. Nada contra quem escolha essa opção. Porém eu buscava outra coisa.
Minha viagem ia muito além do objetivo de conseguir boas imagens. Queria calma e tranquilidade para poder conhecer – sem nenhuma pressa – cada um dos lugares que visitava. Não queria somente parar, tirar uma foto e seguir. Minha vontade era estacionar a van e passar a noite ouvindo o barulho daquelas cachoeiras. Tomar café da manhã assistindo ao movimento lento dos icebergs em um lago de gelo. Escolher com tranquilidade a melhor luz do dia para fazer uma foto. Conhecer pessoas e entender um pouco mais sobre essa cultura tão singular e forte, que vive geograficamente isolada do resto do mundo. Eu buscava tempo para reflexão e conexão com o lugar.
Além da vontade de conhecer as icônicas cachoeiras e praias do país, coloquei na minha lista duas prioridades: a aurora boreal e as cavernas de gelo – duas atrações que só podem ser vivenciadas no inverno. Optei por um roteiro pelo sul da ilha – evitando, assim, o frio rigoroso e as estradas fechadas no norte. Como já era quase fim do inverno, a neve começava a derreter, revelando o musgo verde que contrasta com o solo vulcânico tão característico em suas paisagens.
Minha rota saindo da capital seguiu rumo ao leste, parando e dormindo em alguns pontos: a impressionante queda de Seljalandsfoss (é possível seguir um caminho pela lateral que leva até a parte de trás da cachoeira), a península de Dyrhólaey, a famosa praia negra de Reynisfjara (Black Beach) e a cidade de Vik.
No Parque Nacional de Vatnajökull, a pedida era a cachoeira Svartifoss e o glaciar Skaftafellsjökull. Seguindo mais a leste, há o lago Jökulsárlón (Glacier Lagoon), formado nos pés do glaciar Breiðamerkurjökull.
É possível curtir um trekking de um dia pelo glaciar para conhecer as famosas cavernas de gelo da Islândia. O derretimento faz com que uma rede de rios subterrâneos se forme sob a crosta do glaciar. Aos poucos essa água vai esculpindo inúmeras cavernas por todos os cantos. Algumas com passagens estreitas, outras com salões tão grandes quanto um teatro. O mais interessante é que essas formações são efêmeras e únicas; elas derretem no verão, para depois darem lugar a novas cavernas no ano seguinte.
Em frente ao Glacier Lagoon, fica também a famosa Diamond Beach. O lugar recebe esse nome porque grande parte dos icebergs e pedaços de gelo que se desprendem do glaciar e vão para o lago acabam no mar e nas areias dessa praia – como esculturas naturais transparentes que lembram diamantes.
Estiquei até Hoffell para um banho de hot pot. A atividade vulcânica intensa da ilha gera uma infinidade de lençóis de águas termais. Tanto que se banhar nessas piscinas quentes naturais ao ar livre é algo que faz parte da cultura do país. E foi lá que tive que sair correndo de sunga, todo molhado, para fotografar a maior aurora boreal que já vi e que me pegou de surpresa quando eu relaxava na piscina!
No caminho para Reykjavík, fiz um desvio para a majestosa Gulfoss: uma sequência linda de quedas d’água no rio Hvítá.
Viajando sozinho, a camper van me deu, além de mobilidade, economia: a Islândia é o país mais caro em que já estive! Poder fazer uma compra no supermercado e preparar suas próprias refeições reduz drasticamente os custos da viagem. Isso sem falar na despesa com hospedagem.
“VOCÊ É MEIO LOUCO! Mas eu gosto do seu estilo!” A frase do motorista de táxi não era muito encorajadora. Minha ideia inicial de ficar uma semana caçando auroras boreais e cavernas de gelo no inverno da Islândia, sozinho numa camper van 4 x 4, com cozinha e cama adaptadas na parte de trás, de fato não arrebatava fãs por onde eu passava.
“Mas você deve ter tudo bem planejado, né?! É porque estamos no inverno e você sabe…”, insistiu o motorista. “Às vezes não ter um plano é o melhor plano”, respondi com um sorriso quase confiante, disfarçando o nervosismo.
O taxista me olhou pelo espelho retrovisor com um ar de pai irritado. E logo disparou: “Você tem o aplicativo da central de emergências aí com você? Se não tem, instala no seu celular! Se estiver em apuros, use o aplicativo ou ligue para 112!”. Depois sussurrou alguma coisa em islandês que devia significar algo como: “Meu Deus! Por que esses turistas gostam de vir aqui para morrer?!”.
Mas eu tinha tudo planejado. Ou quase… Eu sabia alguns dos lugares que queria ir. Havia estudado os mapas. Consegui antes o contato de um guia que prometera me levar através de um glaciar a algumas cavernas de gelo. Estava com um celular funcionando e, sim, eu baixara o aplicativo da central 112. A-há!
Fora isso, eu trazia duas bolsas lotadas com tralhas de material fotográfico e o espírito de aventura no peito. O que poderia dar errado?
Como diz meu guru Amyr Klink: “Muitas vezes, o maior perigo é não partir”. Quantas vezes não desistimos dos sonhos pelo simples medo de algo dar errado? Prefiro me preparar do que me preocupar. Prefiro antecipar soluções do que preocupações. Às vezes é se perdendo – ou quase congelando – que a gente se encontra.
Vá lá! O pessoal da Fora de Foco Expedições é especialista em Islândia e aurora boreal. Realizam, em média, seis expedições fotográficas por ano, para quem prefere conforto e não quer se preocupar com a logística.