Quintal extremo: Chicco Mattos, o brasileiro que vive em uma isolada ilha no Ártico

Por Redação

Chicco Mattos
Chico Matoos observa ursos-polares em Billefjorden

HÁ MAIS URSOS-POLARES do que pessoas vivendo em Spitsbergen, em Svalbard. A conta aproximada é a seguinte: 2.500 habitantes para 3.000 ursos. Todos dividem a mesma paisagem remota e deslumbrante dessa ilha no arquipélago de Svalbard, no extremo norte do Ártico, em território norueguês. Foi nesta paisagem que o filmaker e fotógrafo brasileiro Chicco Mattos, 40 anos, decidiu mudar de vida. Há cerca de dez anos, ele decidiu se estabelecer de vez nessa paisagem branca, gelada e cheia de neve.

Atualmente, Chicco Mattos mora em Lofoten, outro arquipélago na Noruega—, para onde se mudou no começo de 2020, embora sua trajetória tenha começado em Svalbard, território também norueguês, há cerca de 10 anos. Ele conheceu a atual esposa, a sueca Mia, mochilando na Austrália. Depois de uma temporada no Brasil, eles “raparam” o dinheiro guardado e mudaram para a Noruega.

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Das terras gaúchas de Passo Fundo (RS ), sua cidade natal, para o continente mais branco do planeta, Chicco Mattos tem vivido uma transformação profunda ao escolher viver fora da “bolha da civilização” e mais conectado com um ambiente verdadeiramente selvagem. Nos últimos anos, além de documentar a região, ele se especializou em explorá-la na base dos esportes ao ar ao livre, de modalidades de inverno como snowboard e kite snow a parapente e montanhismo.

Desde que conseguiu alinhar a paixão profissional com a rotina de vida, suas imagens têm dado visibilidade a um lugar único no planeta – bruto e frágil ao mesmo tempo. Seus registros rendem material para mídias de todo o mundo, incluindo um programa de TV próprio – Minha Vida no Ártico, do Canal Off, com nova temporada confirmada para 2018. Convicto de que o Ártico é mesmo sua casa e sem planos de abandonar as vivências e os fenômenos naturais de lá, Chicco Mattos divide a seguir algumas descobertas de um dia a dia levado (literalmente) ao extremo.

Mãe e filhote de urso dividem espaço da geleira Nordenskioldbreen

“O que mais gosto daqui é sair à procura de ursos-polares no alto mar. Coloco meu snowmobile [moto de neve] para rodar nos meses em que a água salgada congela e fico de olho nas pegadas. Se vejo algo, pego o binóculo e deixo a câmera preparada. Por segurança, nunca vou sozinho – às vezes alcançamos 250 km para dentro do gelo selvagem. Em uma filmagem recente, o gelo começou a abrir, e nossas motos, a afundar. Estava 20ºC negativos, não demorou até ficarmos encharcados, e logo nossas botas começaram a congelar por dentro. Por sorte, conseguimos tirar o equipamento d’água e nos safamos por pouco.”

“Procuro sempre me conectar olho no olho com os animais selvagens. Quando estou bem perto de um deles, sinto uma emoção gigante. É diferente de medo, algo mais perto de uma conexão. Desligo minha moto e caminho bem quieto. Mentalmente tento dizer a eles que está tudo em paz.”

Morsas em Sjuøyene, no norte de Svalbard

“Em meu tempo aqui, ficou claro para mim que o mundo real não é a bolha da cidade. O mundo real está lá fora. É selvagem, te deixa de olhos estalados. Dá-se pelo contato intenso com a natureza. Aquela sensação de não estar no controle. Perigo real? É uma avalanche cair na sua casa. Quando você coloca isso em perspectiva, percebe que os problemas do cotidiano na cidade são virtuais, apenas coisas que colocamos na cabeça.”

“Cheguei aqui por acaso. Há dez anos, trabalhei em um cruzeiro que partiu do Alasca e acabou na Austrália. Quando a viagem terminou, decidi fi car por lá, onde estudei multimídia e animação. Eu já era formado em relações públicas, mas decidi aprimorar essa minha paixão por fotos e fi lmagens. Na Austrália, conheci minha noiva, que é da Suécia, e foi uma amiga dela que me falou da existência de Svalbard.”

Chicco Mattos
Uma rena paisagem de Ny-Ålesund

“Quando soube que havia emprego no Ártico, aquilo me instigou. Visitei a área pela primeira vez há quase sete anos e consegui uma vaga de bartender. Comecei com o objetivo de juntar uma grana, explorar os arredores e depois ir embora. Mas fiquei até hoje.”

“Compartilhar tudo isso foi algo natural, na verdade. Eu nunca tinha pensado em transformar em negócio. Um dia saí de casa para filmar um time lapse de uma aurora boreal. Postei o vídeo e aquilo chamou a atenção. Com mais experiência, um pouco depois, registrei uma família de ursos polares. Uma empresa local adorou e comprou a foto, que ‘bombou’. De uma hora para a outra, mídias estrangeiras começaram a me procurar, e a coisa deslanchou.”

Chicco Mattos
Cabana em Spitsbergen

“Aqui é um lugar privilegiado, puro e ainda pouco explorado. Olho para o céu e vejo muitas auroras boreais, várias constelações – aprendo a me guiar pelas estrelas. Sem falar na simplicidade das pessoas. Não tem classe social. Nenhuma casa possui tranca, e os carros ficam com a chave na ignição. Ninguém liga para como os outros se vestem. Nesse ponto, aliás, só há uma regra: a da utilidade.”

“A paisagem do Ártico tem mudado muito rápido. Alguns fiordes, por exemplo, já não congelam mais. Assim como algumas geleiras perto da minha casa. Vejo mais ursos magros também. E olha que estamos falando de menos de uma década que estou aqui.”

“É a natureza que manda. Quando você entende isso de uma vez por todas, aumenta seu tempo de vida. O cérebro fica acordado. Você se sente pleno e conectado. Minha cabeça trabalha diariamente com novidades – e essa é uma ótima forma de ‘congelar’ o tempo. É uma maneira legítima de viver intensamente.”

Chicco Mattos
A beleza do gelo na praia de Tempelfjorden, em Svalbard

“As aventuras são parte da rotina por aqui. Um dia desses, decidi ir para um lugar onde quase ninguém acredita que seja possível chegar nos meses de inverno. É uma cabana do outro lado de uma geleira. Uma travessia bem arriscada na ilha onde moro. O caminho é uma vastidão de branco, com gelo rachado e oco em certos pontos. No meio do trajeto, coloquei meu drone para voar na tentativa de achar uma rota mais segura. Percebi que eu já estava na cilada. De um lado, um penhasco. Do outro, uma rachadura enorme. Eu estava em cima de um pedestal de gelo de uns 30 metros de altura. Analisei as possibilidades e segui em frente. Foram seis dias de viagem intensos – consegui chegar até a cabana, descansar e voltar. Uma decisão errada naquele dia, e eu não estaria mais aqui contando a história.”

“Para ser bem sincero, eu não achava que o isolamento iria me atrair. Mas deixei o vento me levar, sempre aberto a experiências novas. O resultado é que nunca estive tão em paz comigo mesmo. Levo isso agora como um propósito: transmitir essa mensagem para fazer com que mais pessoas se conectem a essa intensidade da vida.”

*Reportagem publicada na edição nº 148 da revista Go Outside, janeiro e fevereiro de 2018 e atualizada em dezembro de 2020