NO EXTREMO NORTE da Terra, um emaranhado de ilhotas, estreitos e gelo compõe um dos ambientes mais inóspitos – e potencialmente ricos em petróleo – do mundo. Localizada acima do Círculo Polar Ártico, a Passagem do Noroeste só foi desbravada pela primeira vez pelo homem em 1906, em uma jornada de impressionantes três anos comandada pelo mítico explorador norueguês Roald Amundsen. A tal “passagem”, que estrategicamente liga os oceanos Atlântico e Pacífico, recebe agora mais uma expedição, dessa vez de um homem só, que percorrerá de 1.000 a 1.500 km da região com um par de esquis e dois trenós – com paradas para mergulhos em águas gélidas e dias com temperaturas que podem despencar a 40oC negativos.
O francês Alban Michon partiu em março, em uma empreitada batizada de Arktic 2018 com previsão de durar dois meses. Carregará, com a força de suas pernas e a ajuda do vento, uma carga total de 180 kg, incluindo um kite para deslizar quando o clima permitir. Em expedientes extenuantes, que consumirão do seu corpo cerca de 6.000 calorias por dia, o aventureiro terá de mostrar de novo por que é considerado um grande especialista em mergulho no gelo. E vai aproveitar seus talentos em lugares desafiadores para coletar dados para pesquisas científicas. “Por conta do aquecimento global, a Passagem do Noroeste corre o risco de desaparecer em pouco tempo”, diz ele, que seguirá uma rota através do trecho do arquipélago ártico canadense. Ao longo dos 60 dias por lá, ele recolherá material como plânctons e fará medições no solo e na atmosfera – e assim levará para cientistas amostras de como esse ecossistema está reagindo a temperaturas cada vez mais altas e verões a cada ano mais longos.
O consenso entre os estudiosos é que, se nada for feito para impedir isso, por volta de 2050 a região estará praticamente livre de gelo – em 2014, por exemplo, pela primeira vez na história um navio de carga atravessou a Passagem sem uma escolta de embarcações quebradoras de gelo para abrir caminho. O tema é polêmico e extrapola os círculos de discussões sobre meio ambiente. Antes totalmente bloqueada por gelo, a Passagem se abriu pela primeira vez em 2007. Sua abertura significa milhares de quilômetros encurtados para embarcações que querem ir do Oriente ao Ocidente e vice-versa – ou seja, bilhões de dólares economizados. A região, chamada por cientistas de “o ar-condicionado do planeta”, também é considerada riquíssima em petróleo e gás natural, o que aumenta os olhares de cobiça das nações vizinhas.
Ciente disso, Alban decidiu unir um de seus maiores prazeres – a exploração e o mergulho em águas geladas – ao trabalho de defesa desse ambiente por meio da ajuda da ciência. Em 2010, o francês cruzou o Polo Norte e mergulhou sob o gelo em uma expedição de 45 dias. Cinco anos depois, viu em um programa de televisão um navio de propulsão nuclear levar mil chineses ao Polo Norte. “Eles desceram em uma bancada de gelo, fizeram um churrasco gigante e colocaram música de fundo. Eu tive um choque! O mundo polar está mudando rapidamente. Passamos da era das expedições para a das viagens longínquas para pessoas ricas”, afirma o francês. Após conversar com cientistas, Alban identificou que algumas áreas do planeta são tão difíceis de acessar que, ainda hoje, apenas verdadeiros exploradores podem trazer informações. Assim nasceu a ideia da sua nova expedição para testemunhar mudanças climáticas e, de alguma forma, contribuir com a preservação polar.
ALBAN DESCOBRIU o mergulho aos 11 anos. Estreou no gelo aos 17 e logo se apaixonou pelos desafi os e pela beleza que esse ambiente proporciona. Encantou-se com as luzes, o som do gelo, o relevo, as cores. “O gelo nunca é o mesmo em todos os lugares. É muito sólido, mas tão frágil. E afeta todo o clima do planeta”, explica. E se algum dia os lugares selvagens que ele visita e busca preservar também se tornarem destinos comerciais para turistas? O francês prefere pensar nos exemplos de parques nacionais onde não é proibida a entrada de turistas, porém a visitação se dá com regras de preservação. “Quando vamos para a Antártida, vemos que lá é tudo muito regulamentado, com leis claras para proteger as áreas selvagens. Hoje, na Passagem do Noroeste, não dá mais para impedir barcos ou turistas. Já é tarde demais… Devemos pensar em soluções daqui para frente”, diz. Alban acredita que ainda podemos prestar atenção, ensinar as pessoas e criar normas de segurança para embarcações que transportam mercadorias perigosas, por exemplo. Para esse explorador polar contemporâneo movido a aventuras – um tipo também em vias de extinção –, o mundo está mudando e devemos antecipar nossas ações. Ainda dá tempo.
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*Reportagem publicada na edição nº 150 da revista Go Outside, abril de 2018.