Por Bruno Romano*
UMA FOTO RECENTE chamou a atenção na rotina de nossa Go Outside. Fitas de highline foram esticadas entre prédios abandonados em São Bernardo do Campo (SP). Esforço de uma galera local bastante ativa, que tem se apropriado de espaços em suas cidades, as novas travessias urbanas viraram ponto de encontro e descobertas. A iniciativa gerou frutos: o berço fértil de uma geração que hoje quebra recordes, promove eventos e fomenta o esporte por onde passa.
Dar novo sentido a estruturas das cidades, muitas delas abandonadas, costuma começar com imaginação, passa por um período de provação e, se bem-feita, pode virar até um marco para o esporte outdoor. “É uma celebração e um protesto ao mesmo tempo”, defende o britânico Bradley Garrett, autor de Explore Everything (sem edição em português), um livrotratado sobre a exploração urbana. “É uma fusão do indivíduo e da cidade, do que é permitido e do que é possível, da relação do espaço com a memória”, conta Bradley.
Na Alemanha, essa cultura do chamado “reúso adaptável” tem ganhado força. Construções esquecidas se transformam em jardins urbanos, ateliês de arte, baladas e até paredes de escalada. Com a comunidade do esporte envolvida, muitos picos se tornaram vias concorridas, tanto para iniciantes como para avançados. A inovação, aproveitando a arquitetura antiga, tem criado uma atmosfera mais vibrante no ambiente. Em outras palavras, deu-se vida àquela sensação comum em quem curte escalar, do tipo “acho que dá para subir naquilo”. E dá mesmo, como mostram os relatos a seguir.
Der Kegel, Berlim
Na parte interna, uma academia de escalada “comum”, montada dentro de um bunker, espécie de abrigo antiataques usado na Segunda Guerra Mundial. No lado externo, o cone (tradução de kegel em alemão) virou palco de vias que alcançam até 20 metros de altura. O bunker, de fato, está localizado dentro de uma fábrica de reparos de trens abandonada. Grande parte das estruturas, portanto, foi aproveitada para o esporte.
A principal é uma parede de concreto ultragrossa. Nela, agarras artificiais se misturam com falhas próprias do concreto. Também há um atrativo extra: nos meses de inverno, a equipe da academia lança água na parte externa, formando cascatas de gelo escaláveis. Além disso, a área é usada artisticamente em encontros, festas e produções do coletivo local RAW-Gelande. Tudo isso no meio de Berlim.
Der Bunker, Berlim
Em 1940, Hitler ordenou a construção de seis torres com fins antiaéreos, as chamadas flakturm. Uma delas é usada hoje como muro de escalada em plena capital. O concreto não apenas resistiu a ataques pesados como ficou marcado pela munição. O resultado é uma série de buracos atraentes para a escalada. Atualmente há mais de 70 vias, a maioria de graduação média a difícil.
O local já havia chamado a atenção de montanhistas nas décadas de 1960 e 1970. Mas o movimento ganhou corpo mesmo com a chegada do clube alpinista alemão, o Deutsche Alpenviren, ou DAV, que hoje é responsável pela manutenção e pela segurança da parede. O espaço fica em uma colina no parque Humboldthain e é bastante receptivo. Não é todo dia que você coloca sua sapatilha em um buraco de bala russa.
SELVA DE PEDRA
Mais quatro destinos alemães revitalizados pela escalada
Wunderland, Kalkar
Um parque de diversões no norte alemão (próximo a Dusseldorf) construído nas dependências de uma usina nuclear desativada, que tem como grande “brinquedo” uma enorme parede de escalada, no mesmo local onde funcionava uma torre d’água para resfriar reatores; wunderlandkalkar.eu.
Kletterturm, Leipzig
Feita na base de tijolos, em 1907, uma torre de água para abastecer parte da cidade de Leipzig foi deixada de lado no fim da década de 1970. Um belo dia, o montanhista local Olaf Rieck imaginou ali um bom treino para escalada no Everest – não demorou para acontecer a primeira ascensão com crampons e piquetas. Recentemente, a estrutura foi convertida em três andares – boulders, paredes artificiais e um restaurante –, com um espaço externo especializado em cerveja artesanal; kletterturm.info.
Landschaftspark, Duisburg
Essa antiga zona de produção de carvão e aço foi abandonada de vez em 1985. No seu entorno, foi projetado um parque, que hoje abriga cerca de 400 vias de escalada (entre elas uma via ferrata e outra em estilo dry tooling), sob gerenciamento do Clube Alpino Alemão (DAV ) – a estimativa de visitas é de 7.000 escaladores por ano; landschaftspark.de.
Kilimanschanzo, Hamburgo
Mistura de Kilimanjaro (montanha mais alta da África) com Schanzenviertel (um bairro de Hamburgo), eis um legítimo trabalho da vizinhança em prol da qualidade de vida. Com a ideia de revitalizar a zona, o esporte entrou no holofote. Hoje o lugar possui cerca de 50 vias, com aulas grátis todos os domingos, cursos e reuniões frequentes, com as ações e decisões tomadas em conversas abertas com a comunidade; kilimanschanzo.de.
*Reportagem publicada na edição nº 148 da revista Go Outside, janeiro e fevereiro de 2018.