Por Bruno Romano
Fotos de Diego Cagnato
ANDRE NUNES DA SILVEIRA SÓ QUERIA um novo desafio. Enquanto a cabeça pensava, decidiu botar sua bike para rodar – e acabou fazendo uma escolha ousada. Quebrar o Recorde da Hora, aos 80 anos de idade. Essa cobiçada marca do mundo do ciclismo premia o atleta que gira por mais quilômetros no período de 60 minutos. Uma pedalada exigente, técnica e imprevisível. “Não dava para fazer no ‘oba-oba’”, resume o curitibano, competidor de ciclismo de estrada no Brasil nas décadas de 1950 e 1960. Ele completou o desafio no último mês de dezembro, no velódromo de Maringá (PR), cravando 31,7 km. Tornou-se, assim, a pessoa entre 80 e 84 anos a completar mais rápido o recorde.
Foram nove meses de preparação e expectativa. O objetivo era bem claro: superar a marca anterior de 28,388 km para sua faixa etária, intervalo estabelecido pela União Ciclística Internacional (UCI). A questão era como fazer isso. “A grande preocupação foi aplicar corretamente um treino intenso para uma pessoa de 80 anos”, explica Iverson Ladewig, sobrinho de Andre, parceiro de devoção ao ciclismo e seu treinador. Ele foi o primeiro a saber do plano arrojado do tio.
Aos 76 anos, Andre andava se dedicando a distâncias de 200 milhas (cerca de 320 quilômetros). “Desde aquela época, eu coloquei na cabeça que iria tentar o Recorde da Hora aos 80”, lembra. “Mas não avisei ninguém, só no último ano”, confessa. Conhecendo bem o tio, Iverson não achou a proposta estranha – e logo os dois colocaram a mão na massa. “Como a experiência dele em cima da bike já conta muito, planejei cerca de três meses de base, mais dois a três meses de trabalho intenso, na estrada ou no rolo, e um período especifico, com menos distância, alguns treinos de velódromo e ainda mais intensidade”, explica Iverson, árbitro da UCI e coordenador de arbitragem da Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC), dois órgãos que aferiram o recorde de Andre em dezembro de 2015.
A equipe por trás da empreitada também contou com o educador físico Otávio Tavares e os especialistas em ciclismo Adir Romeo e Hernandes Quadri Junior. Como primeiro teste, Andre passou por uma avaliação física geral. Uma verdadeira bateria de exames que comprovaram sua boa saúde. “Durante os treinos, sempre nos comunicávamos para ver como ele estava se sentindo. Essa informação é muito valiosa, pois não adianta simplesmente seguir a planilha à risca”, conta o treinador, que estipulou um limite de 150 batimentos por minuto durante os pedais mais fortes.
Viver intensamente o ciclismo é comum na família de Andre. Ao lado de Iverson, ele já viajou para os Estados Unidos só para acompanhar um mundial de ciclismo de estrada. A dupla também completou em conjunto o caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, em 2007 – em cima de bicicletas, claro. O treinamento para a marca no velódromo foi mais um episódio dessa paixão compartilhada em casa pelo esporte. O dia do recorde, na verdade, foi a consequência de toda essa história (e de uma vida em duas rodas).
A BORDO DE UMA BIKE de pista da marca Look, Andre botou para rodar uma transmissão 49 x 15 e pedalou sem relógio, atento apenas a sua frequência cardíaca. A intenção era manter os batimentos estipulados e o ritmo de 30 km/h, suficientes para a quebra da marca. A equipe de apoio passava informações relevantes sempre que preciso, nas trocas de volta. Tudo foi saindo como planejado, mas também era preciso se adaptar. “Depois de um tempo pedalando na pista, você naturalmente sente um desconforto no selim”, lembra Andre. “Comecei a pedalar de pé e peguei embalo, indo até mais rápido, aí me pediram calma, porém no fim deu tudo certo”, conta.
“Ele terminou inteiro”, conta Iverson. “Preferimos jogar com mais segurança, mas ele ainda tinha ‘lenha para queimar’.” O recorde foi confirmado no ato pela CBC. Mesmo que a UCI não tenha parâmetros exatos para velódromos abertos, como é o caso de Maringá, as condições gerais estavam dentro do exigido pela entidade máxima do esporte para Recordes da Hora. Os feitos geralmente são quebrados em pistas fechadas, sem interferência do vento. A marca anterior nos 80-84 anos, por exemplo, foi estabelecida em 2014 pelo britânico Sidney Schuman, então com 84 anos, dentro do velódromo coberto (e de altíssimo nível) dos Jogos Olímpicos de Londres 2012.
A categoria logo abaixo (75-79 anos) tem recorde cravado em 2012, com 35,728 km completados pelo italiano Giuseppe Marinoni, também em pista fechada. Acima dos 84 anos, apenas o francês Robert Marchand se arriscou. Aos 100 anos, Robert cravou 24,251 km no velódromo de Aigle, na Suíça. Ele mesmo quebrou seu próprio recorde, aos 102 anos, em 2014: 26,925 km. A atual marca mais veloz, aliás, é do britânico Bradley Wiggins. Em junho de 2015, o ciclista superstar conseguiu incríveis 54,526 km durante uma hora pedalada no velódromo olímpico da capital inglesa.
Em perspectiva, o tempo de Andre não é apenas uma boa marca pessoal. É também um feito esportivo difícil de bater. “Fiquei extremamente feliz e emocionado quando ele terminou. Estávamos tensos e ansiosos, pois sabíamos o quanto meu tio tinha se preparado para aquilo”, diz Iverson. “Foi um grande alívio ver tudo dar certo, mas, com certeza, já vivi provas muito mais difíceis”, completa o novo recordista.
Andre começou a competir em 1951 e participou de importantes provas nacionais até 1961. Com 18 anos, em 1953, ele deslizava sua bike Peugeot em competições de etapas entre cidades do sul do país. Defendeu o Clube Atlético Paranaense, o Coritiba e o Café Alvorada. Entretanto, para se dedicar somente ao trabalho como distribuidor de bebidas – onde passava de 12 a 14 horas diárias –, deixou a bike de lado nos 14 anos seguintes. “Sou hipertenso e a minha pressão começou a aumentar. Foi aí que me recomendaram voltar ao esporte. Retomei com 42 anos e não parei mais”, conta.
Somadas as duas fases da carreira (dos 42 em diante, competiu solo em provas máster), Andre se orgulha de seus 50 anos dedicados ao ciclismo. A rotina atual conta com cinco pedaladas por semana, acumulando entre 200 e 250 km. É metade do que ele fazia há poucos anos quando chegava a 500 km semanais nos treinos para as 200 milhas. “Queria que os ciclistas mais jovens tivessem a vontade dele para treinar. Muita gente quer resultado, mas não está disposta a trabalhar para isso”, diz Iverson. Para o outro preparador físico no Recorde da Hora, Otávio Tavares, a disposição de Andre pode ser resumida em duas palavras: “Admiração e orgulho. Chegar com essa forma aos 80 anos é meu plano de vida”, postou ele em uma mídia social logo após o desafio.
Andre já pensa em outros planos. Como a marca foi quebrada em pista aberta, ele não vê a hora de se testar em um novo palco. “Quando liberarem o uso do velódromo olímpico do Rio de Janeiro, eu aposto que melhoro meu tempo”, diz. Não para por aí. A nova ideia que tem rondado seus pensamentos é quebrar a maior marca dos 100 km na sua faixa etária. “Já tenho o trajeto traçado”, diz, mantendo os detalhes em segredo.
Enquanto isso, Andre curte simplesmente pedalar suas bikes (na estrada, na montanha ou na pista), assistir às grandes provas do esporte e admirar a evolução dos atletas e das máquinas atuais. Uma verdadeira revolução, comparado ao tempo em que começou a pedalar – ainda que algumas coisas sejam mais difíceis de evoluir. “Mesmo naquela época já havia gente de fora oferecendo substâncias para os ciclistas”, recorda, sobre o uso de doping. “Mas nunca precisei disso. O bom de competir é saber o sabor da vitória e da derrota”, ensina. No caso de Andre, da vitória e da longevidade.
> Estrelas da hora
Recentes recordes esquentam as disputas contra o relógio nos velódromos
Criado no fim do século 19, adorado pelos astros no ciclismo no meio do século 20 e “esquecido” nas últimas décadas, o Recorde da Hora voltou a instigar recentemente grandes nomes do esporte. Confira os últimos feitos:
> MASCULINO
1. Bradley Wiggins (GBR), 54,526 km / Londres, junho de 2015
2. Alex Dowsett (GBR), 52,937 km / Manchester, maio de 2015
3. Rohan Dennis (AUS), 52,491 km / Suíça, fevereiro de 2015
> FEMININO
1. Evelyn Stevens (EUA), 47.980 km / Estados Unidos, fevereiro de 2016
2. Bridie O’Donnel (AUS), 46.882 km / Austrália, janeiro de 2016
3. Molly van Houwelling (EUA), 46.273 km / México, setembro de 2015
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* Matéria publicada originalmente na Go Outside 128, de abril de 2016