Cerrado transparente: canoagem pelo rio Buriti guiada por índios

Por Verônica Mambrini *
Fotos de Adriano Gambarini

NAS PRIMEIRAS HORAS da manhã, os caiaquistas Rodrigo Mindé e Hilton Figueiredo se preparavam para entrar no rio Buriti e explorar o trecho que nunca tinha sido navegado antes, no interior do Mato Grosso. Estavam acompanhados do cacique terena Geraldo da Silva. Sem saber muito bem o que esperar desse pedaço desconhecido de rio que desceriam, Mindé pediu ao cacique licença para entrar na água. “Seu Geraldo pegou meu remo e disse que, desde que acordamos, ele já estava pedindo proteção para nós”, conta Rodrigo.

Enquanto isso, outro grupo da mesma expedição também se preparava para entrar na água. Dois botes de rafting desceriam um trecho de cerca de 20 km, até chegar onde o Buriti se encontra com o rio Papagaio. A confluência dos dois é chamada de Suvaco da Cobra – na verdade, não se trata de uma tradução de nenhum nome indígena. Por causa do formato de losango das águas, o apelido não-índio acabou pegando. Nos botes, desceriam indígenas das etnias paresi e nambikwara, jornalistas e guias de rafting com experiência nas caudalosas águas mato-grossenses.

Eram muitos os objetivos da Expedição Buriti: em dois dias na água, iríamos explorar um trecho virgem do rio; atender à demanda índigena de conhecer melhor o turismo e o rafting; e ter uma primeira experiência do que pode vir a ser, futuramente, um projeto de eco e etnoturismo capaz de preservar a cultura dos que habitam o Território Indígena Tirecatinga, a cerca de 600 km de Cuiabá.

Trecho tranquilo do rio Buriti

Demarcada em 1983, a terra indígena de Tirecatinga é uma ilha verde entre os rios Buriti e Papagaio, cercada por fazendas de soja, algodão, milho e pastagens. É vizinha de outras terras indígenas, como as de Paresi e Utiariti. São aldeias das etnias nambikwara wakalitesu e halutesu, manoki, paresi e terena – há também vestígios de outros três povos isolados. À beira do rio Buriti, fica clara a importância de manter o cerrado em pé: toda a biodiversidade da região se constrói ao redor da água cristalina. A mata ciliar funciona como um filtro, e é possível ver o fundo do rio a mais de dez metros de profundidade, com pacus, traíras e matrinxãs. É um cerrado com um verde vivo, de transição; seguindo para o norte já começa a região amazônica.

As interações dos índigenas da região com grupos como garimpeiros no século 19 e com seringueiros durante as duas Guerras Mundiais são antigas, com mais de 110 anos. Em uma das pontas do território, a aldeia Guarantã está a 5 minutos da estrada e a cerca de 50 km de Sapezal, cidade que é o coração do agronegócio na região. Apesar de tão perto dos vizinhos urbanos, o modo de vida tradicional persiste, resiste e interage com a cultura não-índigena. Um bom exemplo é a pesca: os índios desenvolveram máscaras de mergulho a partir de câmaras de caminhão costuradas com um visor de vidro, lanças de pesca de arpão feitas de vergalhão de construção e uma invejável agilidade debaixo d’água. “Já tentamos usar as máscaras de mergulho dessas compradas, mas não nos adaptamos”, conta Tarcísio, cacique da aldeia nambikwara 3 Jacus.

Essa intimidade com a água é um dos atrativos que os indígenas acreditam que possam interessar ao turismo. “Temos cachoeiras lindas aqui. A água é sagrada, fundamental para todo nosso povo”, conta Tarcísio. O nambikwara Nelson completa: “Nosso sonho é trabalhar com turismo. Nossa terra tem potencial para caiaque, rapel na cachoeira, ciclismo, motocross.”

Utiariti é um salto de 90 metros no rio Papagaio, talvez a cachoeira mais bonita do Mato Grosso, cujo acesso se dá pela aldeia Utiariti, no território de mesmo nome. O salto está a 96 km da cidade e recebe turistas frequentemente. É difícil não perder a noção da hora na jacuzzi natural formada por um poção antes da queda.

Um dos desafios era reunir a equipe certa de remo para explorar o trecho e levar em segurança indígenas que nunca tinha feito rafting (mas nadam bem em rio), além de outras pessoas com menos intimidade com águas brancas. O coordenador da expedição, Átila Rego-Monteiro, possui décadas de experiências em rios. Instrutor da NOLS, uma das principais escolas de liderança em atividades ao ar livre do mundo, já se viu cercado de flechas em rios amazônicos, em meio a exércitos de formigas saúvas e outras situações no mínimo desesperadoras.

A tarefa de explorar o rio de caiaque antes da descida com os índios no trecho virgem e bravo foi designada para Rodrigo e Hilton. Rodrigo Mindé é de São Luís do Paraitinga (SP). Quando a cidade foi submersa por uma enchente no fim de 2009, ele se mostrou um dos mais ativos resgatistas a remo, passando dias recolhendo pessoas que ficaram ilhadas no teto de casas. Os anos de experiência trabalhando como guia de rafting em Brotas (SP) e explorando por conta própria rios no tempo livre foram o passe técnico para a expedição. Mas certamente o senso de humor e jogo de cintura também. O matogrossense Hilton Figueiredo está em casa: seu quintal é no rio Jaciara, cheio de corredeiras classe 5 – a classificação vai até 6. Professor nato – qualquer pergunta ganha uma resposta minuciosa e clara sobre técnicas, como funciona a corrente ou os equipamentos -, ele se divide entre aulas de remo e de inglês.

A dupla mapeou de caiaque o trecho mais técnico, sem descer a última corredeira. A meta era avaliar o percurso e ver se seria possível levar um grupo maior no dia seguinte. “Nessas horas, é melhor estar com um irmão do que com cinco amigos”, diz Rodrigo.

No fim da tarde, os índios saíram para caçar. Se na descida por bote só pescaram  dois pacus, voltaram da mata com um caititu (porco-do-mato de cerca de 5 kg) e um jacu. Ao lado do acampamento no Suvaco da Cobra, prepararam o porco e beberam para comemorar – a festa foi compartilhada com todos os membros da expedição. “Logo depois da caça, você monta um jirau com galhos e deixa na brasa bem baixa. As partes como o fígado vamos comer lá pelas três da manhã. Sempre fica um cuidando do fogo para não morrer”, explica Nelson, que separou uma costela do porco para o pessoal da expedição lançar na churrasqueira do nosso acampamento.

No segundo dia de água, um dos botes levava um grupo de indígenas e outro integrantes da expedição, como os indigenistas e ativistas da Rede Juruena Vivo, que reúne iniciativas da sociedade civil buscando alternativas para o desenvolvimento da bacia do Juruena. O curso do rio era, no geral, tranquilo, com três pontos que pediam mais atenção, com corredeiras de classe 4 e 5. Em um deles, um dos botes surfou na queda d’água e, um a um, os remadores foram catapultados para o refluxo – era nesse que eu estava. O refluxo era fechado, o que nos deixou alguns segundos presos na água. Não foram nem três minutos entre o bote começar a surfar, derrubar os remadores e saírem todos nadando no remanso, mas a sensação é de eternidade.

O outro ponto era a Faringe de Pandora. “Quando você entra no rio, está abrindo uma caixa de Pandora”, brinca Hilton, que deu o apelido ao trecho em que os botes tinham que passar com precisão entre pedras e fazer uma curva fechada para não serem lançados em um paredão de um dos lados do rio. Nessa descida, apenas os guias fizeram por água, depois de estudar o trecho por mais de meia hora. Os outros atravessaram por terra mesmo e esperaram depois do remanso. Aliás, espera sofrida. “Aqui, o mato fura, corta ou coça”, brinca Rodrigo. Muitas picadas dos infinitos insetos e mosquitos do cerrado depois, o grupo se juntou para completar a descida. Missão cumprida: Buriti desbravado, e a movimentação na direção ao eco e etnoturismo local, iniciada. “Eu nunca vi um bote remar com tanta precisão quanto o dos índios”, conta Igor Sperancini, um dos guias de rafting da expedição. Pelo visto, eles levam muito jeito para a coisa – que venha o turismo para ajudá-los.

*Reportagem publicada na edição nº 145 da Revista Go Outside, outubro de 2017