O último iceberg

A nova-iorquina Camille Seaman registra com suas lentes – e sem retoques de Photoshop – a beleza dramática dos imensos blocos de gelo que flutuam pelos oceanos polares

Por Ana Maria Peres

“Antártida, fevereiro de 2010. Da proa do navio, aguardava a aproximação das nuvens no céu e a dramaticidade da luz à medida que uma tempestade se aproximava. A cobertura das nuvens terminou por revelar o azul intenso no gelo.”


HÁ 12 ANOS, A FOTÓGRAFA nova-iorquina Camille Seaman perdeu seu assento em um voo lotado da companhia Alaska Airlines, que iria de Oakland, na Nova Zelândia, para Los Angeles, EUA. “Aceita uma passagem de ida e volta para qualquer lugar onde nossa companhia opera?”, a atendente ofereceu para se desculpar pelo overbooking. Ela topou na hora, escolhendo como destino a cidade costeira de Kotzebue, no Alasca. Lá, enfrentou perrengues gélidos, mas sentiu uma imensa e inédita conexão com a natureza.

O impacto na alma foi tanto que desde então Camille – que antes trabalhara como webdesigner, guia de viagens, garçonete e até bike courrier – dedica-se a registrar com sua câmera fotográfica a paisagem das regiões polares, especialmente dos icebergs. Há uma década, ela acompanha expedições de pesquisadores e ambientalistas pelos cantos mais frios do planeta. Ao ver de perto a beleza desses imensos blocos de gelo que flutuam no oceano, mergulhou de cabeça no tema: com o projeto The Last Iceberg, publicou suas fotos em diversos veículos mundiais e ganhou prêmios como o National Geographic Award, em 2006, e uma homenagem da Academia Nacional de Ciências, em Washington, em 2008. Aos 42 anos, ela não se cansa de repetir: “Nada pode ser visto do mesmo jeito duas vezes. Um dia tudo termina”. Em tempos de mudanças climáticas, suas imagens ganham ainda encanto.

GO OUTSIDE: Que tipo de impacto você teve ao avistar um iceberg pela primeira vez?
CAMILLE SEAMAN: Vi meu primeiro iceberg no mar de Weddell, na Antártida, em dezembro de 2004. É impossível estar preparada para essa experiência. Nós temos alguma noção sobre o que é grande e o que é gelo. Mas esse espetáculo me tirou os pés do chão, foi realmente um choque. Senti muita humildade – não apenas em relação a seu tamanho descomunal, mas sobretudo devido ao tempo em que ele havia ficado à deriva num mar escuro e frio, antes de eu encontrá-lo.

Seu envolvimento com as regiões polares começou a partir de um voo inesperado. De que forma esse episódio mudou sua perspectiva?
Em 1999, quando ganhei a passagem para Kotzebue, pretendia de lá atravessar o oceano congelado em direção à Rússia. Analisando em retrospecto, fui bastante ingênua e um pouco estúpida, porque acabei me metendo em uma situação arriscada. Depois de pegar carona com algumas pessoas em snowmobiles [motos de neve], encontrei-me sozinha no meio do oceano congelado – em todas as direções, só via branco. Naquele momento percebi que tudo estava meio fora de controle: havia ursos polares, eu não tinha comida e poderia congelar até a morte. Mantive a calma e andei por seis horas até retornar à cidade. Ao caminhar de volta seguindo as trilhas das motos, tive uma epifania: a percepção de que estava no meu planeta. Entendi que todos nós somos feitos da matéria deste planeta e possuímos habilidades específicas a serem desenvolvidas. Aquela era a minha vez. Minha presença ali não significava nada do ponto de vista da escala do tempo, a neve poderia ter acabado com meu corpo. Ao mesmo tempo, era um milagre que eu pudesse estar ali e ainda ponderar uma coisa dessas.

Quais são as diferenças mais visíveis entre os icebergs novos e os antigos?
O gelo mais antigo é encontrado na Antártida, onde alguns icebergs são feitos de gelo com mais de 100 mil anos e podem chegar ao tamanho de pequenos países. Você consegue imaginar algo feito de gelo desse tamanho? Imagine um floco de neve caindo, um em cima do outro, por tanto tempo até que seja capaz de formar essa coisa enorme. Os icebergs mais jovens podem ter de centenas a alguns milhares de anos. Cada um tem o seu próprio caráter, não há dois iguais. Alguns sucumbem e afundam, outros permanecem.


“Leste da Groenlândia, agosto de 2006. Permaneço em pé na proa durante muitas horas sob baixas temperaturas. Consigo ver este iceberg especial no horizonte e espero até poder fotografá-lo de perto. Minhas mãos estão congelando e seguro uma câmera 617 Linhof de metal, que não permite o uso de luvas. Só consigo obter quatro exposições de cada filme. Ao me aproximar, luto para recarregar a câmera. É a única vez em que um capitão do navio sai de sua rota por me ver em apuros com o equipamento. Ele circula ao redor do iceberg para me dar outra chance, então finalmente dá certo. Era 22h na região.”

Por que você evita aplicar o termo ambiental ao seu projeto?
A questão é: você quer ser motivado pelo medo? Ou pode simplesmente apreciar o modo como somos sortudos de ter um planeta tão benevolente para chamar de casa? Será possível tomar decisões baseadas na admiração por sua beleza única e assim protegê-lo para que nossos descendentes possam se divertir? Nunca entendi por que as pessoas procuram tão desesperadamente etiquetas para tudo. Nos Estados Unidos, cansamos de ouvir as palavras “verde” e “ambiental”. Depois de algum tempo, elas perdem a eficácia. Desejo que essas imagens tenham um impacto duradouro, sem modismo ou discurso de marketing. Preciso que as pessoas sintam algo por esses lugares, que talvez elas nunca conheçam de perto.

Qual de suas expedições considera ter sido a melhor?
São mais de dez anos viajando entre o oceano Ártico e o Antártico. Durante o verão do hemisfério Norte estou no Ártico, geralmente perto de Svalbard ou na Groenlândia, mas tenho também viajado para o Ártico canadense, para a Sibéria e o Alasca. No inverno setentrional (verão no hemisfério Sul) estou na península Antártica. Normalmente viajo a bordo de um navio por um período de um a três meses. Isso permite um longo tempo para registrar a qualidade específica da luz que considero mágica e única nas regiões polares. Amo todos esses locais, como posso dizer que esse é melhor do que aquele? Cada um é tão único e especial, não consigo nem afirmar se prefiro o Ártico ou a Antártida. Tive inúmeras experiências incríveis. Houve um dia em que estávamos a 160 quilômetros de qualquer pedaço de terra e lá no meio do mar um beija-flor pequeno apareceu no navio. Há muitos momentos como esse.

De que modo esses lugares estão conectados com a nossa vida em Nova York?
O mundo possui zonas com climas quentes e leves precisamente porque nosso planeta é abençoado com dois polos cobertos de gelo. Eles agem como um estabilizador global, são parte integrante de um sistema oceânico delicadamente equilibrado. Nenhuma parte opera isoladamente. O que ocorre nos polos afeta diretamente qualquer outro lugar, do menor fitoplâncton até a maior plataforma de gelo. Quando os sistemas são interrompidos ou danificados, uma reação em cadeia será acionada e sentida em todos os cantos. É tão fácil se isolar em nosso meio ambiente local que não consideramos a existência de outro lugares. Se pretendemos sobreviver ou prosperar como seres humanos, devemos trabalhar no sentido de uma consciência real e pró-ativa em relação a todos os seres vivos.

Para atingir o resultado impactante de suas fotos, você usa os recursos do tratamento digital?
Tenho uma regra pessoal de que se uma imagem requer mais do que um minuto de ajustes no Photoshop, não vou usá-la. Parto do princípio de que nosso planeta é realmente impressionante e belo – não precisa de retoques. O que me permite tais efeitos é fotografar em condições de luz dramáticas. Não gosto de clicar em céu azul ensolarado.

Até que ponto suas raízes interferem em seu olhar fotográfico?
Minha infância foi bastante interessante. Nasci em Long Island, em Nova York. Minha mãe é afro-americana e meu pai é shinnecock, de uma tribo nativa indiana. Fui criada com o princípio de que nós, seres humanos, somos parte de uma só família aqui na Terra, que todas as coisas estão interligadas e não podemos ignorar essa conexão. Não podemos ser tão arrogantes a ponto de nos colocarmos acima das necessidades dos outros. É claro que isso influencia meu trabalho.


“Mar Ross, dezembro de 2006. Estava a bordo de um quebra-gelo russo em meio à forte agitação do mar. Embora tudo pareça imóvel na foto, um grande swell fazia o gelo e nosso navio balançarem para cima e para baixo. À distância, parece que os dois icebergs vão se colidir. John Palmer, o homem da foto, estava esperando nosso helicóptero. Ele olha para longe e não posso deixar de notar o ‘outro mundo’ à minha frente, como em um filme de ficção científica.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2011)







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