“Xi, acho que vi um corpo”


MORTE NAS ALTURAS: Maximo Kausch fotografa corpo numa montanha

Por Maximo Kausch, do Alta Montanha

Seu marido morreu, o que deseja fazer com o corpo? Verdade nua e crua nas maiores montanhas do mundo.

Grandes montanhas são ambientes extremamente hostis. O clima castiga, a altitude castiga, o psicológico castiga… até mesmo ir ao banheiro castiga!
Chega a ser inacreditável o tanto de coisas com as quais temos de nos acostumar para permanecer vivos ali. A mais bizarra delas, com certeza, é a morte.

Cadáveres sempre aparecem como lembrança de que não estamos brincando. Eles sempre nos fazem lembrar do quanto perigoso o montanhismo pode ser. Após alguns anos escalando e presenciando isso, acaba virando rotina.

Cada pessoa lida de uma forma diferente com a morte. Alguns abominam a presença de pessoas mortas ao redor delas, alguns rezam e não se conformam, já outros acabam ficando indiferentes ante as situações mais bizarras. Eu me encaixo nessa última categoria.

Lembro de uma ocasião em julho de 2010 quando estava escalando um pico remoto de 8000 metros no Paquistão. Era uma fria tarde e com muito vento quando minha expedição chegou a 7100 metros para estabelecer o terceiro acampamento na montanha.

Trabalhamos muito duro para levar cargas com barracas e cordas acima de 7000 metros. Batendo freneticamente com a minha piqueta, tive que cortar uma plataforma no gelo duro daquele lugar para montar minha barraca. A cada dez batidas eu tinha que parar para recuperar o fôlego.

Como se tratava de gelo duro, o progresso era bem lento, e só consegui reduzir alguns centímetros da parte mais inclinada. Se colocasse uma barraca naquela inclinação, o gelo duro faria com que ela escorregasse – e lá iriam mais duas vidas tragadas pela montanha. Não havia algum lugar para amarrar a barraca e prevenir uma queda.

Era fim de tarde, com pelo menos -20ºC, minhas mãos estavam quase congelando. Comecei a pensar: “Por que é que eu não escolhi outro esporte?”.
Enquanto eu estava cavando e tendo uma conversa séria comigo mesmo, vi algo amarelado saindo da neve.

Removi um pedaço de gelo e isso revelou nada mais nada menos que um pé. Ao tirar a neve que estava na superfície, consegui identificar um vulto escuro parcialmente enterrado na neve e no gelo, justo ao lado de onde eu estava cavando. Isso mesmo: era o dono do pé.

Eu não tinha tempo para me lamentar ou ficar observando o pobre falecido.
Tive que continuar garantindo a segurança da barraca e ignorei o morto. Ao esticar os cordeletes da barraca e não ter onde amarrá-los, uma grande ideia me veio à cabeça.

E por que não? O falecido poderia ajudar mesmo depois de morto… Fiquei me matutando e arrumando desculpas absurdas para o que pensava em fazer. Uma rajada de vento gelado, porém, me apressou e deu o veredito:

“Aqui memo!” Imediatamente amarrei o cordelete mais grosso da barraca e fechei um nó ao redor da bota amarela e preta no pé do cadáver

Ao chegar à barraca, meu companheiro perguntou se a barraca estava bem amarrada, ao que respondi: “A corda não sai nem morrendo”.

Semanas mais tarde, eu fiquei sabendo que se tratava de um austríaco que faleceu numa avalanche no ano anterior. O corpo ainda está lá, pois ninguém se habilitou a descê-lo. Além disso, corpos não se decompõem em montanhas de altitude. A falta de oxigênio e o frio afugentam as bactérias.

Em montanhas menores, como o Aconcágua, é diferente. Todos os corpos são retirados das rotas normais da montanha. Os corpos geralmente são arrastados numa espécie de maca até o acampamento base.

Lembro muito bem da primeira vez que fui ao Aconcágua. Foi uma temporada um tanto conturbada e eu não tinha muita experiência em altitudes. Fiz um montão de barbeiragens, mas no final deu tudo certo. Havia um rumor de um tal alemão morto no cume da montanha. Pelo que diziam, ele estava no cume deitado, e o serviço de resgate ainda não tinha tido a oportunidade de resgatar o corpo.

Eu tinha uma sensação bem estranha. Era a primeira vez que eu ia lidar com aquilo. Veio-me uma grande dúvida na cabeça. Não sabia se eu ia lidar bem ou mal com a morte. O único jeito era ir lá e ver.

A subida foi um tanto rápida e não houve problemas. Ao me concentrar na subida, tinha esquecido de que poderia ter que lidar com a morte quando chegasse ao cume. Ao pisar no ponto mais alto, de fato, lá estava o morto.

Ele estava com a pele bem queimada, olhando para o céu. Era uma cena até que bonita, se é que se pode dizer assim. Olhei para meu companheiro e
perguntei: “Será esse o alemão morto?”. No mesmo instante, o próprio morto virou-se e disse: “Nop!”.


SEMPRE EM FRENTE: O escalador e guia Maximo

Fiquei sem entender nada por alguns segundos, então a ficha caiu. Aquele era outro alemão que descansava no cume após a dura subida de 8 horas. Ele parecia literalmente estar “morto de consado”. Caímos os três na gargalhada.

Adiei o meu encontro com a morte para dois anos mais tarde. O encontro aconteceu também no Aconcágua e também tratava-se de alemães. Dessa vez, decidimos ajudar a patrulha de resgate do Aconcágua para descer dois corpos que caíram e morreram no glaciar polonês.

Era começo de fevereiro de 2004, uma temporada muito seca. Esse foi provavelmente o culpado da queda da dupla de escaladores. Nos juntamos ao grupo de resgate na metade de caminho e deparamos com a carga. Nada mais nada menos que dois cadáveres, um em cima do outro.

Descer um corpo humano da montanha, apesar de ser algo extremamente bizarro, é como descer qualquer carga. Às vezes, você pode escorregar o corpo, às vezes o derruba, às vezes o danifica mais ainda… Acima de tudo, é preciso que fique claro, um corpo humano pesa muito! Aquela situação não foi diferente e demoramos 9 horas para ajudar a descê-los até a base. No começo levantávamos os corpos a cada pedra grande e os tratávamos com muito carinho para não danificá-los mais ainda. Algumas horas mais tardes, porém, foi um descaso total. Todos estávamos exaustos e nossas prioridades mudaram muito. Queríamos apenas descer, da maneira que fosse.

Os dois falecidos acabaram pagando o preço do nosso cansaço – e descaso. Durante a descida eles sofreram algumas escoriações e perderam alguns dedos no caminho. Lembro que já era noite quando avistamos as luzes do acampamento base. Adentramos os limites do acampamento por volta das 21h. Estávamos exaustos. Ao chegar perto das primeiras barracas, soltamos as cordas e os deixamos ali mesmo. O grupo de resgate nos serviu um jantar como forma de agradecimento e pediu se poderíamos ajudar a colocar os falecidos no helicóptero no dia seguinte. Fui dormir e apaguei em poucos minutos.

Às 6h, lá estava o helicóptero e todos se mobilizaram. Alguns para ajudar e outros pela curiosidade. Ao sair da minha barraca e me aproximar ao local de pouso, reparei onde havíamos deixado os mortos na noite anterior:
bem na frente da barraca de um casal australiano.

Com a chegada do helicóptero, eles também ficaram curiosos e foram ver o que estava acontecendo. Ao abrir o zíper da barraca, surpresa! Dois cadáveres bem ali na frente! Foi um tanto cômico ver a cara da pobre garota australiana que não entendia como dois mortos simplesmente apareceram na frente da barraca dela.

Apesar de muito triste, às vezes temos que encarar essas situações com humor. Muitos perguntam: “E o que vocês fazem com o corpo depois que morre?”. Se trata-se de uma montanha movimentada como o Aconcágua, a própria organização do parque ou área protegida se encarrega do serviço. Na maioria das vezes, em lugares não tão movimentados, um falecido acaba ficando por lá mesmo. Isso se deve ao fato de a logística para tirar o corpo de uma montanha de altitude ser tão complicada. Um bando de escaladores cansados não é suficiente.

No caso de uma montanha de 8000 metros, é preciso de pelo menos oito pessoas para descer um corpo. O problema é quando estamos cansados após ter tentado um cume alto. Este é o motivo pelo qual existem tantos corpos “largados” em montanhas de altitudes extremas. Algumas vezes nós, sim, tentamos descer os corpos usando os próprios meios.

Em setembro de 2010, eu acabei tendo que fazer exatamente isso. Eu era o líder de uma expedição comercial com 12 clientes. Tínhamos ouvido falar de um russo que faleceu por edema cerebral a 6800 metros. Aparentemente ele tinha morrido dentro de seu saco de dormir e estava lá havia uma semana. Decidimos contatar a sua família. O problema foi que seus companheiros de expedição não tinham nem o nome completo dele. Eu mesmo tive que usar o telefone satelital e ligar para a agência dele em Katmandu. Tive que descobrir o nome e o contato da família.

Não foi nada agradável ligar para a esposa dele e comunicar a morte do marido sendo que eu nem o conhecia ele – e, pior, não falo russo. Numa breve conversa, tentei extrair uma resposta do que ela queria que fizéssemos com o corpo: “Seu marido morreu, o que deseja fazer com o corpo? Podemos deixar ele aqui se quiser”.

Eu não queria ser tão frio assim, porém estava a quase 7000 metros e fazia muito frio, ou seja, precisava apressar a negociação.

A esposa do falecido ficou um tanto descontrolada quando eu mencionei a possibilidade de deixar o corpo ali mesmo. Ela queria o corpo de volta à Rússia e aceitou pagar os custos. A espera no telefone para que uma russa tente se expressar em inglês produziu uma dor excruciante na minha mão só pelo fato de segurar o telefone no frio de quase -20ºC por 4 minutos.

Aquilo significou descer um homem de 85 quilos em quatro pessoas até 6100 metros. Depois arrastar, carregar e jogar o corpo até 5700 metros. Dali em diante, ele foi levado por animais “yáks” até 4900 metros, onde teria que passar por alguns processos burocráticos. Se existe algo que aprendi sobre burocracia chinesa é que não é nada fácil sair da China quando você está morto.

Depois o corpo seguiu dois dias em caminhão até o Nepal, onde pegou outro vôo de dois dias até Moscou. Tudo isso sem refrigeração. Confesso que alguns dos arranhões e fraturas extras que o corpo tinha quando chegou à Rússia foram minha culpa. Ops…

O Tibete com certeza é um dos piores lugares para morrer em montanhas. Fora a parte burocrática, o governo não permite o vôo de helicópteros, então as longas distâncias por terra devem ser cobertas por yáks. Por isso muitos acidentes com habitantes locais (que não têm dinheiro) fazem com que os corpos sejam deixados ali.

Lembro uma vez de estar percorrendo um longo glaciar tibetano a 5500 metros. O horizonte era lindo, havia várias montanhas com mais de 6000 metros emergindo ao sul. Algumas nuvens baixas formavam um tapete branco entre o lugar que eu estava e as montanhas. Justamente na linha do horizonte, não muito longe dali, avistei algo um tanto estranho. Foi um sherpa que confirmou: “Olha, um braço!”.

Imediatamente fomos ver do que se tratava. Ao puxar o braço, percebi que ele tinha sido cortado perto do cotovelo. Apesar de uma longa procura, nunca encontrei o resto do corpo. Jamais soubemos o que aconteceu.

Na base de paredes técnicas famosas, isso é muito mais comum. Não me esqueço de uma leve caminhada de reconhecimento que fiz com um amigo antes de escalar uma parede: “Olha, uma bota!”. Instantes depois: “Olha, um pé dentro da bota!”.

Apesar de ter me acostumado a vivenciar a morte em montanhas, cada vez mais ganho respeito pelos mortos. Cada um daqueles corpos uma vez passou pelo mesmo que eu. Fizeram sacrifícios, correram atrás do seu sonho, passaram por tremendas perrengues e alegrias. Cometeram, porém, um pequeno erro. E ficaram ali para sempre. Muitos deveriam ser experientes e podem ter confiado demais em si mesmos, esquecendo o quão complexo e caótico um ambiente de montanha realmente é.

Um dos grandes atributos que ganhamos escalando montanhas é exatamente o que a maioria das pessoas que morreu nas alturas não teve ou esqueceu por um tempo: respeitar seus limites. Cada vez mais a montanha deixa claro para mim uma lição: jamais estarei no controle. É ela que sempre dará as cartas.

Maximo Kausch é montanhista dos bons e ganha a vida guiando expedições pelos picos mais altos da Terra.

O site Alta Montanha é um espaço virtual inteiramente dedicado ao tema do montanhismo. Para visitá-lo, clique aqui.







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