Capivara em apuros

A maior concentração de pinturas rupestres ao ar livre do mundo clama por socorro: sem recursos, o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, está com seu valor histórico e ambiental mais desprotegido do que nunca

Por Bruno Romano

POR TRÁS DE PINTURAS RUPESTRES da caatinga do sertão do Piauí há uma história reveladora. Essa região, conhecida hoje como Serra da Capivara, abrigou a mais antiga presença humana nas Américas – são mais de mil sítios arqueológicos que comprovam a teoria. Famosa no exterior, a Capivara é dona da chancela de Patrimônio da Humanidade, graças a seu incalculável valor. O problema é que os achados (assim como a flora e fauna local) atualmente correm sérios riscos, mesmo se localizando dentro de uma área de parque nacional. Com recursos escassos para vigilância e manutenção, a região começa o ano de 2016 perigosamente exposta. Se nada for feito logo, a chance de virar “terra de ninguém” é enorme.


TESOURO NACIONAL: A vastidão da caatinga do Piauí na área "protegida" da Serra da Capivara (Foto: André Pessoa)

A história e os vestígios da Capivara são milenares. Mas é impossível separá-los de uma inquieta arqueóloga que desbravou a área na década de 1970: Niéde Guidon, mente e o coração por trás das descobertas. Desde que liderou a pioneira escavação da Toca do Boqueirão da Pedra Furada, há mais de quatro décadas, ela ajudou a criar 184 sítios abertos à visitação e a fundar a área de proteção do parque. Filha de pai francês e mãe brasileira, Niéde fez da Capivara seu projeto de vida, largando o trabalho de acadêmica e docente na França para desvendar os mistérios do Piauí – e ajudar a transformá-lo em um pólo turístico e de pesquisa de primeiro mundo.

Niéde, de 83 anos, deu conta do recado. Fez o possível e o impossível para valorizar o lugar. Entretanto teme o futuro. “Hoje não temos condição de cuidar de tudo. Isso pertence ao Brasil e vai ser perdido se nada for feito”, diz, direto de São Raimundo Nonato, no Piauí, onde mora a mais de 500 km da capital, Teresina. “Somos todos pesquisadores e começamos a proteger o parque nacional porque ninguém fazia nada. Se não o tivéssemos assumido, o parque já teria sido destruído”, conta Niéde, fundadora e diretora da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade que coordena atividades culturais, turísticas e ambientais na área de proteção. Em teoria, o parque é de responsabilidade federal, criado em 1979, na época pelo Ibama, e atualmente a cargo do ICMBio. Representantes do órgão federal sequer quiseram comentar a grave situação atual com a Go Outside, mesmo após insistentes pedidos de entrevista.

No início da década de 1990, Niéde foi a autora do projeto de proteção do parque, a pedido do próprio governo brasileiro. Até hoje seu plano não foi concretizado na totalidade. A ideia sempre foi proteger o tesouro que ela encontrou ali depois que decidiu perseguir, em 1963, uma foto de um visitante de uma exposição de artes rupestres de Minas Gerais. “Percebi pela imagem que as pinturas no Piauí eram completamente diferentes.” No mesmo ano, Niéde pegou seu carro rumo a Capivara. Porém fortes chuvas e uma ponte quebrada no rio São Francisco não permitiram sua chegada. Só em 1970, depois de uma longa temporada na França, ela finalmente conheceu a região. As primeiras missões começaram para valer três anos depois e culminaram com a importantíssima descoberta que provou que o local tinha sido a habitação mais antiga das Américas, superando a teoria anterior que creditava o povoamento do continente por meio da famosa travessia pelo estreito de Bering, entre a Ásia e a América do Norte.


GUARDIÃ: A arqueóloga Niéde Guidon alerta para os riscos da falta de fiscalização na área do parque nacional
(Foto: André Pessoa)

AINDA QUE AS PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS da fundação sigam seu rumo na Capivara, contando com outras fontes de recursos, o parque sofre bastante. Em 2015, o número de funcionários caiu de 270 para 11. A maioria das guaritas de segurança foram fechadas, e materiais como placas solares roubados. Além do risco de depredação e mau uso, os sítios precisam de manutenção, já que as pinturas podem sofrer com a presença de cupins e abelhas. A organização de Niéde estima em R$ 400 mil os gastos mínimos mensais para manter o lugar, mas não há recursos suficientes para 2016.

Há dez anos, aliás, as dificuldades aumentaram. A diretoria da Fumdham culpa a mudança da lei de compensação ambiental, em 2006, pelo rombo no orçamento. Desde então, a verba que vinha diretamente de grandes empresas se destina agora a um fundo de compensações em Brasília – e dificilmente sai de lá. Apoios pontuais como o da Petrobrás, antes constantes, também têm feito muita falta. Atualmente, os defensores da Capivara lutam por doações e aguardam outras fontes de recursos, como o Fundo Nacional da Cultura, e o BNDES, que já tem contrato assinado para um novo museu na cidade de Coronel José Dias, próxima a Pedra Furada, atrativo mais visitado da região.

Niéde, que já levantou até recursos internacionais via Banco Interamericano para alavancar projetos, também aponta a vergonhosa demora na construção do Aeroporto Internacional de São Raimundo Nonato como causa da “fuga” de novos investidores. O projeto do aeroporto data de 1997, mas só ficou pronto no fim de 2015. E, apesar de manter o nome “internacional”, ainda não abriga voos de grande porte.


TÚNEL DO TEMPO: Detalhe de pinturas rupestres encontradas na Capivara, os registros mais antigos das Américas

As dificuldades nunca intimidaram a arqueóloga. Ao redor das valiosas descobertas, Niéde conseguiu impulsionar ações de sucesso como o Museu do Homem Americano, a fábrica de cerâmica da Serra da Capivara, um pioneiro projeto de apicultura e até um campus universitário com graduação em arqueologia e ciências da natureza.

“A Niéde tem uma personalidade fora de série. É como um trator, que avança e que ninguém pode parar”, conta Rosa Trakalo, amiga de longa data e atual coordenadora de projetos da Fumdham. Rosa é uruguaia e conheceu Niéde na França em 1976 – “ela já estava obcecada pelo do Piauí naquela época”, diz. Em 1992, Rosa abraçou a causa e se mudou para São Raimundo Nonato, onde abriu o primeiro receptivo turístico da região e ajudou a colocar em prática as ideias da fundação.

“Temos em mãos uma coisa fantástica, e isso poderia fazer todo mundo aqui viver melhor”, diz Rosa. Só que a realidade de demissões e as incertezas incomodam. Além das pesquisas, diversas famílias vivem da renda de atividades no parque. “É difícil, mas precisamos continuar lutando com todos os nossos meios”, defende Rosa. Niéde, que vive talvez o pior momento dos seus anos de Capivara, está mais receosa: “O Brasil não liga para esse tipo de descoberta. A situação é terrível”. Como cabe à fundação cuidar da parte ambiental, o desafio é dobrado. “Tem gente falando que o parque vai fechar. É muito pior: ele vai ficar aberto”, finaliza Rosa.







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