Pedala, Brasil!

Com seu Projeto Transite, o paulistano Felipe Baenninger está rodando o território nacional para fazer um ambicioso retrato dos brasileiros e suas magrelas


Por Verônica Mambrini

MEIO DE TRANSPORTE? Esporte de alta performance? Lazer de fim de semana? O que, afinal, é uma bicicleta, e no que (e como) ela transforma o ser humano que a pedala? São essas respostas que o fotógrafo paulistano Felipe Baenninger, de 27 anos, está buscando, na raça, montado no seu próprio “cavalo de metal”. Com a câmera nos alforjes e o pé no pedal, ele está rodando o Brasil em uma travessia ambiciosa que pretende documentar algumas das 70 milhões de bicicletas que compõem a frota brasileira, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres.


POR AÍ: Felipe na Serra de Apiaí, no Paraná, numa friaca de 9 graus Celsius
(Todas as fotos: arquivo pessoal Felipe Baenninger)

Pelas contas de Felipe, já foram mais de 30 mil quilômetros percorridos em duas rodas pelo Brasil, desde junho de 2013. “Não faço conta certa. Roubaram meu GPS, e manter essa contagem foi tecnicamente inviável. Mas filosoficamente é bom não ter odômetro e se libertar: o tempo fica mais livre e maleável. Os encontros e as paisagens mudam”, conta o aventureiro barbudo de roupas simples e fala mansa e ponderada. “Nestes dois anos e três meses, percorri 18 estados. Comecei por Porto Alegre e passei pelas seis capitais que compõem o Sul e o Sudeste. Daí rumei para o Mato Grosso do Sul. Atravessei o Pantanal de barco, fiz uma rota para a Amazônia, fui até o Acre. Depois para Afuá, no Pará, a única cidade do Brasil onde só dá para se locomover de bicicleta”, conta o fotógrafo. Afuá é chamada de a “Veneza amazônica”, pois é organizada em fluxos de canais, toda em palafitas. É impossível andar de carro, então as bicicletas dominam a paisagem. E as “bicis” são tunadas: tem bicitáxi, bikes de entrega, de passeio, praieiras.

Não foi do dia para a noite que Felipe resolveu cair na estrada. Há cerca de seis anos, o rapaz passou a usar bicicleta nos deslocamentos por São Paulo. Começava ali um processo interior de desapego e busca. Como a maioria dos aventureiros de fim de semana, ele sofria cada vez que voltava para São Paulo depois de uma viagem. “Era muito doloroso. Sair no metrô no meio da cidade grande depois de conhecer lugares paradisíacos me deixava bem estranho.” A ideia de ir mais longe foi tomando forma. Em 2012, ele conheceu os autores de um projeto que já acompanhava pela internet: Nic Grobler e Stan Engelbrecht, criadores do Bicycle Portraits, uma iniciativa fotográfica que registrou a vida de ciclistas sul-africanos. E decidiu fazer algo semelhante em seu próprio país.


PUTZ: Foto tirada no dia emque Felipe bateu em um caminhão e rachou a bike ao meio, em SP

ÀS VÉSPERAS DE INICIAR O PROJETO, batizado de Transite, Felipe sentiu medo. “A vida na estrada é comparável a andar de bicicleta quando você quer começar e não sabe como. Todos os desafios parecem empecilhos: é perigoso, vou ficar exausto, e se chover? Em uma viagem longa, rolam preocupações do tipo onde você vai dormir, como vai se bancar”, conta o aventureiro. As respostas, a própria estrada está dando. Tem dia que a cama é um ponto de ônibus em uma estrada qualquer, onde Felipe arma sua rede. “Desisti de carregar barraca, levo uma rede Kampa com mosquiteiro. Já dormi em posto de gasolina, em sede dos bombeiros, escolas municipais. Você vai aprendendo a encontrar lugares cobertos para se abrigar”, conta. “Experimentar a rede é experimentar o Brasil. Em um sentido maior, para mim ela é um símbolo: os povos nômades do nosso continente tinham em comum a marca de colocar seus pertences na rede, e seguir em frente.”

Quase sempre, a bicicleta causa uma simpatia imediata, principalmente longe das capitais, em cidades menores e atravessando estradas tranquilas. “Muitas estradas não têm a presença do veículo, esse impeditivo que incomoda a existência da bicicleta, seja como transporte ou esporte”, conta o fotógrafo. “Mas capitais e grandes cidades são fundamentais para o Transite. Sou fruto da cidade, há lados positivos nela. É onde você encontra pessoas dispostas a fazer diferente, é onde mais consigo hospedagem solidária.”

A superação diária do medo não quer dizer que ele é infundado. Em Porto Alegre, por exemplo, Felipe estava fotografando uma manifestação e foi agredido por seis policiais, sem explicação. Para evitar situações de risco, ele tenta parar o pedal cedo. “Uma vez eu estava tão cansado, procurando um lugar para dormir, quando a corrente estourou e o pneu furou. Achei um prédio, estendi meu tapete ali, coloquei a trava na bike e, quando amanheceu, vi que estava em uma construção abandonada. Desde então evito situações arriscadas de ‘tudo ou nada’. Paro antes.”


CAMP VIBE: Acampando na beira de um ribeirão próximo a Diogo Vasconcelos, em MG

Outro medo que Felipe desbanca dia após dia é o de como pagar a viagem. O pontapé inicial foi feito por sites de financiamento coletivo, os chamados crowdfundings. O Transite arrecadou R$ 40 mil pelo Catarse.com, não apenas para manter a vida na estrada, mas principalmente para garantir a produção de um livro com fotos do projeto. “Tenho realizado trabalho de todos os tipos: não existe um menor que o outro. Eu queria ressignificar minha relação com o trabalho. Vendo rapé e farinha da Amazônia, é algo genuíno, brasileiro. Vendo ou troco por hospedagem, por comida. Ganhar dinheiro virou uma forma de encontrar pessoas. Vendo fotos e camisetas do Transite. Trabalhei como fotógrafo, mas apareceram outros trampos tão surpreendentes como colher quiabo. Quanto mais maneiras de me viabilizar, mais possibilidades de ficar tranquilo”, conta.

O projeto teve uma segunda fase de arrecadação, possível porque a iniciativa se tornou, aos poucos, mais sólida e conhecida. Houve ainda o apoio de amigos, que organizaram festas e outros eventos para ajudar. “A não ser que você seja um fenômeno na internet, é muito complicado achar que o apoio financeiro será automático.”

BAGAGEM SUPERLEVE e minimalista? Não exatamente. Para se ter autonomia, a bicicleta precisa levar rede com mosqueiro e lona, cozinha com fogareiro, panelinha e um pouco de comida, roupas e itens pessoais, e o material de trabalho de Felipe: computador e equipamento fotográfico. Adicione à bagagem mais uns livros para ler e uma impressora portátil para imprimir retratos do projeto. Até um berimbau já coube nos alforjes. Felipe usa equipamentos simples: a primeira bike era de cromoly, feita sob medida, mas se quebrou em um acidente. “Estou com uma antiga, que comprei por um preço especial de um amigo.” Cafezinho e milharina para fazer cuscuz são rotina.

“Descobri que bicicleta é um guarda-chuva de sociabilização. Como esporte, como transformação social e pessoal. Meu projeto é sobre o povo brasileiro, estou registrando nuances de cada lugar por onde pedalo. As pessoas são apaixonantes. Há quebras corriqueiras de paradigmas: o medo não vai sumir; se ele existe, é porque tem algum risco, e você aprende a avaliar”, conta. Além das fotos, os depoimentos dos retratados ajudam a compor esse painel do Brasil em duas rodas. “Com essas pessoas, estou me conscientizando de que a bicicleta é uma forma de viver a vida com baixo impacto. Isso tem sido bem interessante.”

A previsão de Felipe é terminar os 27 estados brasileiros até abril. Ao longo destes anos, ele fez breves visitas a sua casa e a amigos, sempre após muitos meses na estrada. “Cada retorno é diferente. Depois de tanto tempo, tudo se torna especial. Até o que você não gosta, como o cheiro do rio Tietê. Tudo tem seu próprio cheiro, sua cor marcante, incluindo as pessoas amigas e as esquinas conhecidas.”


CICLOMUNDO: Felipe durante travessia da peninsula de Maraú, na Bahia

> Olhar aberto para o mundo

José Ribamar, 68 anos, é um músico quase cego e ciclista “desde moleque”. Maranhense radicado em Araguaína, no Tocantins, José enxerga só uns 10% do que a maioria das pessoas vê. Mas seu olhar continua aberto para o mundo. “O Felipe passou viajando por onde um neto meu estava passeando. Fizeram amizade, e meu neto convidou o Felipe para ficar um dia com ‘nóis’. Assim eu conheci o moço.” José anda de bike por tudo quanto é canto. “Tenho 10% da visão, mas consigo ver cores; e de perto, consigo ver vultos. Moro aqui há muito tempo e conheço bem as ruas, sei de cada buraco. Vou devagar, não corro, não”, diz. O trânsito anda perigoso, por isso seus amigos vivem pedindo para ele deixar a bicicleta em casa. “Não deixo, não. A bicicleta é tudo que posso fazer. Sou músico, e o tipo de música que se pede hoje mudou. Gosto de Roberto Carlos, Caetano Veloso. Não é o que se toca nas festas e barzinhos agora. Fico com a bicicleta mesmo.”


PARCEIROS: O musico José Ribamar, que continua pedalando apesar de ter apenas 10% da visão

> A flor da Madalena

Enquanto o Projeto Transite tinha um pé no sonho e outro entrando na realidade, Felipe conheceu Yasmin Flores, de 30 anos. Moradora do bairro da Vila Madalena, em São Paulo, foi uma das primeiras fotografadas por ele. “De cara, identifiquei-me com o Felipe”, diz ela, que é artista, educadora e cicloativista. “A bicicleta é um veículo inspirador, que promove a chance de você transitar pelas próprias ideias, te liberta”, conta. Yasmim apaixonou-se de vez por sua magrela quando estava na faculdade, cerca de dez anos atrás. “Fui percebendo que a bike pode chamar muito a atenção das pessoas. Estimulei diversos amigos a pedalar.” As cores, as roupas, as flores, tudo era uma forma de provocar os outros ao redor, trazendo leveza e momentos agradáveis para quem pedala e para quem está em volta. “Foi a maneira que escolhi para defender essa causa.”

Reportagem publicada originalmente na Go Outside 125, de dezembro de 2015.







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