Amigo da onça


CAMALEÃO: George no zoológico do Central Park, em Nova York (EUA)

Por Laís Duarte

— O QUE O LIVRO DE SCHALLER RECOMENDA FAZER quando um gorila fica furioso?

— Nunca corra.

Quem pergunta é Dian Fossey, representada pela atriz Sigourney Weaver no filme A montanha dos Gorilas, enquanto corre apavorada pela floresta em Uganda. Poucos sabem que a pesquisadora que dedicou sua vida aos gorilas aprendeu as minúcias do comportamento do bicho com George Schaller, o primeiro a estudar essa rara e temida espécie nos confins da África. Foi ele também o pioneiro na proteção dos ursos panda nos rincões da China, da imponência dos leopardos das neves no Himalaia, e da agilidade das onças-pintadas no pantanal brasileiro. Pelos animais, esse homem esguio, elegante, de fala pausada e discretos olhos verdes percorreu todos os continentes. Aos 77 anos, não pensa em aposentadoria, chinelo, sombra ou água fresca. George continua, com voracidade adolescente, a desbravar os pedaços mais inóspitos da Terra.

George nasceu em 1933 na Alemanha. Com o país arrasado pela Segunda Guerra Mundial, aos 14 anos embarcou com a família para os Estados Unidos em busca de vida nova e de esperança. Desde a infância, ele foi fascinado pelos segredos guardados pela natureza. Cobras e lagartos eram bichos de estimação; analisar os hábitos dos animais tornou-se prazer e mistério para o menino – um hobby tão prazeroso que acabou virando carreira em período integral. “O tempo passou e continuei fazendo a mesma coisa minha vida inteira”, diverte-se ele.

Aos 20 e poucos anos, George seguiu para a Universidade do Alasca. Lá encontrou Kay, parceira de estudos e odisséias. Casaram-se em 1957, época em que ele já se perguntava se não estava na hora de estudarem os gorilas. Se alguém precisava começar, esse alguém era ele. De mala, cuia e Kay a tiracolo, partiu para o Congo. Viveram e trabalharam entre os animais até a violenta independência do país, em 1960. Depois cruzaram fronteiras e chegaram a Uganda.

O maior primata do mundo era um dos animais mais belos que o biólogo já vira. A pesquisa de George ganhou destaque e, por isso, governos e comunidades passaram a lutar pela preservação dos gorilas. Era tudo o que ele queria: salvar a espécie e educar o povo em um tempo em que falar de ecologia era algo ainda muito distante da realidade. Com sensação de dever cumprido, seguiu rumo à Índia, em um desafio duplamente novo: criar dois filhos e estudar os tigres. De lá, os Schaller foram para a Tanzânia, já no fim da década de 1960.

A próxima espécie? O leão, ao qual George dedicou quatro anos à coleta de dados. Era preciso muito cuidado para não quebrar a harmonia da convivência entre bicho e gente: “Quando meus filhos iam brincar, eu falava para eles não fazerem barulho para não acordar o leão que dormia ali perto”, lembra ele. Ciente da sorte de viver um casamento longo e feliz, George reconhece a importância de ter encontrado uma mulher outsider como ele. “Kay é a melhor mãe que já conheci. Um dia cheguei em casa e disse: ‘Trouxe mais um filho para você criar’. Entreguei a ela um leãozinho órfão”, lembra.

Depois da África, veio o Himalaia. No Nepal e Paquistão, o biólogo pesquisou as raras cabras selvagens e o lendário leopardo das neves. A persistência de George sensibilizou autoridades e, mais uma vez, por causa do esforço dele, foram criadas reservas ambientais para a proteção das espécies.


NÔMADE: O jovem George de cara para o vale do rio Sheenjek, no Alasca (EUA), em 1956

NO FIM DA DÉCADA DE 1970, AS ONÇAS-PINTADAS eram apenas feras que atormentavam fazendeiros e troféus para caçadores. O maior felino das Américas nunca havia sido estudado. E “nunca” era o ponto de partida para George. Foi assim, graças à onça, que o Brasil entrou no mapa do biólogo. Porém, quando a saudade da estrada apertou, ele deixou seus pupilos – o americano Howard Quigley e o brasileiro Peter Crawshaw, hoje uma das maiores sumidades em carnívoros do mundo – cuidando das onças no Pantanal e partiu para a China, onde dedicou quatro anos ao estudo dos pandas. Em 1980, com a rara autorização do governo chinês, George encontrou evidências de que os simpáticos ursos já foram carnívoros e que somente com o passar dos séculos o bambu se tornara o alimento principal de sua dieta. Nascia assim uma reserva para proteger o panda e seu prato preferido.

Já que estava pela Ásia, que tal levar a família ao Tibete? Entre as montanhas geladas, o biólogo pesquisou os yaks – os bois tibetanos – e os antílopes, animais que sobrevivem a mais de 4 mil metros de altitude. Vivia como os nativos, na mais rigorosa simplicidade. George não é de muitos luxos. Mesmo sendo autor de diversos livros definitivos sobre a conservação de mamíferos e vice-presidente da ONG americana Panthera, que luta para salvar os grandes felinos, George corta céus e terras com pouca bagagem, tênis All Star nos pés e uma câmera fotográfica velha e amadora nas mãos. Prefere escrever em sua caderneta do que usar computador. Em 2007, seu diário de bordo foi transformado em um documentário sobre sua vida, narrado pela atriz Glenn Close. Dinheiro alto mesmo só bate à sua porta com os inúmeros prêmios – e tudo é gasto para manter projetos de pesquisa dele e de outros pesquisadores também.

George continua os estudos na Mongólia, Laos, Vietnã, Afeganistão, Irã e em outros dezoito países para aprender mais sobre a vida selvagem e promover a criação de novas reservas. Para muitos governos, instituições e conservacionistas, ele é não só o maior naturalista do século 20, mas o primeiro de todos. Para ele, porém, os rótulos não importam. Há muito ainda o que descobrir mundo afora no século 21.

Durante os meses de abril e maio, George retornou ao Brasil, ainda preocupado com os felinos. Mas desta vez ele dividiu seu conhecimento com os que tentam manter vivas as cerca de 400 onças da caatinga, no semi-árido brasileiro. Ele foi convidado a emprestar sua experiência ao estudo inédito das onças feito no sertão da Bahia pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros, o Cenap, vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. No meio da caatinga, no que resta de vegetação intacta, ele percorreu a pé em média 10 quilômetros diários para auxiliar biólogos no censo dos bichos e na difícil tarefa de entender a relação dos felinos com os moradores da região. George falou com exclusividade à Go Outside.


CADÊ? : O pesquisador em busca das onças no sertão brasileiro, em maio de 2010

GO OUTSIDE Como o Brasil despertou seu interesse?

GEORGE Eu procurava um bom lugar para pesquisar a onça-pintada e descobri que o Pantanal era um lugar privilegiado para isso. Na época, fim dos anos 1970, meus filhos estavam no colegial e ficaram nos Estados Unidos. Vinham para o Brasil passar as férias comigo.

Por que a pesquisa na caatinga, um bioma que muitos consideram seco e sem valor?

A caatinga é um ecossistema único, com plantas e animais não encontrados em nenhum outro lugar do mundo. A grande pressão do desenvolvimento na região e as mudanças climáticas podem afetar esse ambiente. Embora existam parques, eles não protegem efetivamente as espécies e a caça ainda é uma realidade por lá.


É possível ainda preservar as onças no sertão?

É uma tarefa difícil. As áreas protegidas são importantes, mas se não estiverem conectadas, os esforços podem ser em vão. A preservação ainda é possível, mas é preciso muito comprometimento, principalmente político. Existem bons pesquisadores no Brasil trabalhando na caatinga, mas a redução dos impactos cabe mais aos governos do que aos cientistas. Só com o comprometimento dos governos as onças da caatinga têm chances de sobrevivência em longo prazo.


O senhor é responsável pela criação de inúmeras reservas ambientais no mundo todo. Há a possibilidade de se criar uma reserva para a onça no Brasil?

Claro que sim. O difícil é alinhar os interesses econômicos, políticos e ambientais. Existem áreas muito boas para se criar reservas, mas não são boas somente para as onças – são boas também para empresas mineradoras, do ramo energético etc. Há 10 anos existe uma proposta em discussão no governo brasileiro para se criar a maior reserva na caatinga, justamente na área que visitei, chamada Boqueirão da Onça, na Bahia. Sei que existe também uma proposta de criação de um corredor ecológico que ligaria várias reservas já existentes. O trabalho com as onças do sertão tem ajudado nesse processo. Esperamos que o impasse político seja resolvido logo. Apesar de gostar de contribuir na criação de reservas, essas são iniciativas próprias dos brasileiros. Eu vim dar minha contribuição na avaliação de uma área dentro desse corredor ecológico. O resto deixo para meus colegas que estão se empenhando em criar essas reservas.


Muitos pesquisadores dedicam a vida ao estudo de uma única espécie. O senhor deu início ao estudo de uma infinidade de espécies. Por que?

Para mim, o interessante é conhecer novos lugares, novas culturas, é me apegar a esses bichos enormes.

É importante trabalhar com a comunidade local para salvar as espécies?

É essencial. Entender como o homem se relaciona com as espécies e trabalhar com a comunidade local são pontos fundamentais para a sobrevivência das espécies. Onde quer que haja caça, exploração irregular dos recursos e desrespeito com o meio ambiente, animais encontram sério risco de extinção.

Quais devem ser então as prioridades dos jovens biólogos?

Qualquer novo biólogo tem pela frente um imenso desafio. No século passado era fácil: estudávamos os animais e, às vezes, conseguíamos criar uma reserva. Mas ainda sabemos muito pouco sobre como os habitats funcionam, e sobre como centenas de milhares de seres interagem para manter o ambiente sadio, incluindo o ar, a água e o solo. Apenas 1,7 milhão de espécies, de umas 30 milhões, foram descritas cientificamente. Então grande parte do mundo natural continua uma incógnita. Habitats são rapidamente destruídos e espécies exterminadas. O mundo tem perdido seu futuro. Economicamente falando, tudo que compramos, usamos ou fazemos é, em algum grau, dependente da natureza, de um meio ambiente saudável. As mudanças climáticas estão ocorrendo rapidamente e muito pouco da população mundial presta atenção a esse problema. Uma grande seca atingiu o Nordeste brasileiro há 120 anos, matando milhares de pessoas. Com o aquecimento global, as próximas secas serão muito mais severas. As comunidades serão obrigadas a aprender como cuidar delas mesmas, limitando o desperdício de recursos. Grandes extensões de terras, não somente as reservas ambientais, devem ser cuidadosamente manejadas desde já para prevenir extinções de espécies e deterioração ambiental. Para conseguir tudo isso, o pesquisador deve ser cientista, político, educador, antropólogo, sociólogo, escritor, entre muitas outras profissões associadas, porque a diversidade de conhecimento em outras áreas é obrigatória para executar ações conservacionistas.

O senhor dedica-se ao meio ambiente há mais de 40 anos. Qual sua maior gratificação ao pensar em tantos trabalhos realizados?

É ver que sempre posso aprender mais, conhecer novos lugares, novas realidades. Também é um prazer ver crescer o número de pessoas que continuam as pesquisas pela preservação das espécies em todos os países por onde passei. Sou grato por isso. No Brasil, por exemplo, multiplicaram-se os pesquisadores que estudam a onça-pintada. Ao sair daqui sigo para China, Tadjiquistão e Índia. Há muito por fazer. Não tenho tempo para parar. É preciso perseverar para ajudar a salvar o meio ambiente.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2010)







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