Peixe grande


(Foto: Mark Selinger)

Por Piti Vieira

LAIRD HAMILTON, 41 ANOS, costuma colar o pé no acelerador de sua caminhonete quando desce de sua nova propriedade de 10 acres — cheia de mangueiras e abacateiros e uma casa de 325 metros quadrados — aos pés do vulcão dormente Haleakala e um pouco acima da baía de Peahi, point que se tornou ícone para surfistas de ondas gigantes e ficou conhecido como Jaws, no litoral norte da ilha de Maui, no Havaí. Com a caçamba lotada de pranchinhas e longboards, mais seu cachorro Ridge, uma mistura das raças Rhodesian Ridgeback e Doberman pinscher, e um jet ski Yamaha Wave Runner rebocado na carreta, ele parece o homem mais feliz do planeta. “Não existe lugar no mundo melhor que Maui. Aqui estão também os melhores windsurfistas e os melhores shapers. O tipo de surf que estamos fazendo tinha que acontecer aqui”.

Considerada por muito tempo insurfável, Jaws foi conquistada em 1993 quando Laird e oito amigos, entre eles Dave Kalama, 40, Darrick Doerner, 48 e Buzzy Kerbox, 48, membros da Strapped Crew (Equipe Amarrada), como ficou conhecido o grupo que começou a usar jet skis para rebocar um ao outro em ondas inimagináveis de serem surfadas na época — uma jogada que marcou o começo da transformação de Hamilton no que ele é agora: o fodão do surf. Casado pela segunda vez, agora com a atleta e modelo americana Gabrielle Reece — sua primeira esposa é a bodyboarder brasileira Maria, que ainda vive no Havaí com a filha que teve com ele, Izabela, 10 —, pai de mais uma garotinha, Reece Viola Hamilton, 2, e feliz proprietário de um físico que a maioria dos homens sonha em ver refletido no espelho, Laird ostenta a personalidade mais forte e o rosto mais reconhecível do mundo do surf. “Surfar é o esporte havaiano dos reis”, diz ele. “É nobre, não é uma brincadeira sem valor”.

Mas tudo isso é história recente, isto é, pré-2004. No ano passado, Laird foi içado a uma nova esfera do estrelato atlético. O pacote da fama veio com uma aparição no horário nobre da TV americana — ao vivo e falando em cima de uma prancha, via um fone à prova d’água, enquanto dropava uma onda na costa oeste de Maui —, no 60 Minutes, programa jornalístico da rede CBS, e nas telas dos cinemas com o documentário Riding Giants – No Limite da Emoção, que o alçou ao Olimpo do surf, junto com outras lendas havaianas e o pioneiro caçador de ondas grandes, o californiano Greg Noll. Definitivamente, 2004 foi o ano de Laird.

SUJEITO ENORME E MUSCULOSO — 1,92 metro e cerca de 100 quilos —, alguma coisa parecida com uma versão hidropônica dos primeiros surfistas californianos que colonizaram o litoral norte da ilha de Oahu, no Havaí, nos anos 60, Laird nasceu de um experimento para determinar os efeitos da gravidade reduzida em recém-nascidos. Joann Hamilton, mãe de Laird, foi uma das 300 grávidas a participar da experiência do Hospital de São Francisco. Durante as cinco horas finais de seu trabalho de parto, ela ficou deitada com o barrigão envolto por um aparelho de sucção que permitiu ao feto flutuar com mais liberdade no líquido amniótico e aliviou a pressão no bebê durante o nascimento. Um acompanhamento posterior dos pesquisadores revelou um padrão: assim como Laird, a maioria dos bebês testados cresceu grande.

A surfista Joann mudou-se da Califórnia para o Havaí quando Laird tinha dois anos — seu pai biológico abandonou sua mãe antes dele nascer. Naquele mesmo ano, na falta de uma figura paterna, o pequeno Laird, que vivia pegando jacaré na praia, como não podia ser diferente, começou a prestar atenção num surfista que ele achava bonitão e talentoso. Era o lendário Bill Hamilton, então com 17 anos. Os dois sentiram uma ligação instantânea e o garoto chegou na cara dura e disse a Bill: “Quero que você seja o meu papai. Venha conhecer minha mamãe”. Parece novela, mas Joann e Bill se apaixonaram, e Laird ganhou um sobrenome, um padrasto arrojado e um modelo exemplar.

Os Hamilton viveram no litoral norte de Oahu de 1967 a 1971, período que marcou o maior swell da história recente do Havaí. Então, fugindo do crowd, Bill mudou-se com a família e seu negócio — ele também é shaper — para o remoto vale de Wainiha, na ilha de Kauai, ao norte do arquipélago havaiano, onde eles eram a única família de brancos. No meio dos anos 70, quando o surf competitivo trocou as longboards pelas agressivas pranchinhas — uma revolução que Bill ajudou a criar —, o surfistinha Laird estava pegando ondas de 3,5 metros com seu pai. “Durante toda a minha criação, eu quis surfar ondas do jeito que meu pai fazia”, lembra-se ele. Quando tinha oito anos, Laird pediu a Bill que o levasse até a cachoeira de Waimea, onde os machões da época provavam sua masculinidade pulando do alto do penhasco na lagoa. Ele achou que o garoto queria assistir aos saltos, mas Laird foi até a beira, olhou para baixo — era uma queda de 18 metros —, voltou a olhar para ele e pulou.


FAMÍLIA-MODELO: Laird, a mulher, Gabrielle, e a filha, Reece
(Foto: Pamela Hanson)

COM A PERMISSÃO DE SEU PAI, Laird largou a escola quando tinha 16, depois de decidir que não havia mais nada a aprender na Kauai Kapaa High, a não ser como brigar. Único branco da escola, ele sofria muito preconceito e precisava conquistar respeito mostrando seu valor nas ondas e no braço. Era 1980 e o surfista foi trabalhar como peão na construção de edifícios. Pelo menos até ser convidado por uma revista de moda italiana, que fotografava um editorial na ilha, para fazer seu primeiro trabalho como modelo. Depois disso, Laird trabalhou para a revista GQ em Oahu, conheceu o fotógrafo Bruce Weber, fez umas fotos com Brooke Shields e foi morar em Los Angeles.

Laird podia ter seguido os passos da fama no mundo da moda ou ter entrado para a disputa do World Championship Tour (WCT), o circuito mais bem pago do mundo do surf, mas ele odiou morar na cidade grande e torneios organizados nunca iriam seduzir seu espírito livre. “Como você julga arte”, zomba ele que viu de perto o sofrimento de seu padrasto com o capricho dos juízes. “Era devastador”, conta. “Não conseguiria deixar alguém que não o público determinar meu destino”. Laird sempre foi um tipo de celebridade diferente no mundo do surf. Ele nunca esteve no topo do ranking de nenhuma associação de surfistas profissionais e mesmo assim sua presença é sempre um evento. As pessoas gostam de ficar perto dele e saber qual vai ser sua próxima “maluquice”.

Rejeitar o circuito profissional fez com que Laird precisasse inventar uma rota alternativa para a fama, feito que realizou brilhantemente.

Começou com a Strapped Crew, lá no começo dos 90, quando a gangue fazia a galera pirar saltando ondas a uma altura de 9 metros com pranchas de windsurf, depois combinando pranchas de surf com paragliders para experimentar com o que viria a ser chamado de kitesurf e, por fim, domando ondas de 20 metros quando o esporte se preocupava apenas com manobras em ondas pequenas.

Logo, Laird começou a receber a atenção que tanto procurava. Em 1994 ele apareceu, ao lado da primeira esposa, na ESPN e na capa da revista do mesmo canal. No mesmo ano conseguiu um patrocínio superlucrativo com a marca francesa de esportes de ação Oxbow. Aí, em 1995, ele pegou um inesperado atalho. Deixou a primeira mulher com a filha ainda bebê, e foi morar com a jogadora americana de vôlei profissional Gabrielle Reece em Los Angeles (os dois se casaram em 1997). Gabrielle, que “sabia tudo sobre estar em um esporte em que você tem que criar alguma coisa do nada”, como ela diz, apresentou Laird a Jane Kachner, que cuida da carreira e da imagem da jogadora. “Laird precisava de uma organização profissional”, fala Reece. “Jane precisou ser muito criativa. Nessas horas, ser mulher ajuda, mas nós entendemos de imagem”.

Desde então, a carreira de Laird começou a ficar bem parecida com a de Gabrielle. Em 1996, a revista People o elegeu uma das 50 pessoas mais bonitas do mundo e ele substituiu a esposa na série de TV The Extremists, em que se arriscava fazendo vários esportes de ação. Em 2000, apresentou o programa Planet Extreme Championships, do canal Fox Sports. A onda que dropou em Teahupoo, no Taiti — considerada na época a mais perigosa já surfada —, foi eleita a façanha de 2001 pelo prêmio da ESPN Action Sports & Music Awards. Naquele ano, Laird e Gabrielle tiveram o que ela chama de “soluço”, e a jogadora assinou os papéis do divórcio. Mas os dois voltaram a viver juntos poucos meses depois e Laird continuou sua ascensão à fama, surfando uma onda gigante como dublê de James Bond no filme 007 – Um Novo Dia Para Morrer.

Mas as coisas começaram a acontecer mesmo em 2003, quando — graças ao filme de surf A Onda dos Sonhos (Blue Crush), estrelado por garotas — Hollywood voltou a se interessar pelo assunto desde o sucesso de 1966 do clássico Endless Summer. Naquele ano, Laird marcou mais um gol quando o documentário Na Onda Certa (Step Into Liquid), levantou polêmica ao mostrar surfistas sendo rebocados em jet skis para ondas gigantes sobre hydrofoils, a última geração de pranchas rápidas — um dos experimentos do surfista, capaz de subir a um metro da superfície —, desenvolvidas especialmente para o tow-in. O filme rodou o mundo e arrecadou US$ 3,5 milhões. Um ano depois, outro documentário, Riding Giants – No Limite da Emoção, dirigido por Stacy Peralta, que debutou no festival alternativo de Sundance, nos Estados Unidos, endeusou de vez a figura de Laird como o maior surfista de ondas gigantes de todos os tempos.

NUM DIA SEM ONDAS GRANDES, Laird pode ser encontrado no seu “escritório”, o Anthony’s Coffee Co., na pequena cidade de Paia, próximo à baia de Peahi. Ali, ele parece um Don da máfia numa tratoria italiana. O café vende seu DVD All Aboard the Crazy Train [Todos a Bordo do Trem Maluco] no caixa, encoraja admiradores a acenar, mas nunca a se aproximar, e guarda em estoque tudo o que ele come em sua dieta a la Atkins, rica em proteínas e gordura: New York steak — bife de filé mignon de 230 gramas, coberto com molho forte de mostarda e ervas, acompanhado de batatas fritas e salada verde —, fatias grossas de salmão e ovos fritos.

Laird sabe exatamente que está no auge de sua forma física e que agora é a hora de capitalizar. Por isso que até quando está saboreando um cafezinho na cidade, as engrenagens de sua máquina empresarial estão em movimento, imaginando como transformar sua próxima aventura em algo rentável para sua produtora de filmes, a BamMan Productions. Maximizando a nova fase em sua carreira, a produtora vai permitir que ele seja a estrela, o produtor e o proprietário de cada segundo de todas as suas cenas de ação de agora em diante. E, com alguma sorte, vai cuidar para que ele tenha um negócio viável quando o melhor do seu surf estiver no passado.

A primeira coisa na agenda do surfista hoje é transformar outro documentário seu sobre os bastidores do surf de ondas grandes, The Ride, numa série para a TV, tipo um reality show com esportes radicais. Laird ainda insiste que um longa metragem sobre tow-in, bancado pela gigante Disney Imax, está no horizonte. E sempre remexendo no fundo da sua mente estão idéias para futuras inovações no esporte — barcos hydrofoil puxados por kites, veleiros de alta velocidade, bodysurf embaixo d’água, surf de remo (paddle-surfing) —, as quais devem mantê-lo em evidência e fornecer seqüências de vídeo exclusivas e inovadoras. “Nós temos o melhor câmera do mundo”, diz ele. “O melhor piloto de helicóptero, surfistas, está tudo aqui, na hora que precisarmos”. Depois de passar muitos anos tentando se isolar das pessoas, preocupado apenas com a onda perfeita, Laird agora quer ganhar o mundo. “Tenho duas pessoas dentro de mim. Sou do signo de peixes e tenho dois nadando aqui dentro. E definitivamente posso dizer que o melhor está ganhando.”

CROWD GIGANTE

A crescente multidão no pico de gala das ondas grandes faz com que veteranos do tow-in comecem a temer por suas vidas

Por Justin Nyberg

“ALGUÉM VAI MORRER”, diz Eric Akiskalian, 45 anos, presidente da Associação dos Surfistas Profissionais de Tow-in de Santa Bárbara, Califórnia. “É inacreditável que ainda não tenha acontecido”. Akiskalian não está sozinho quando afirma que o crowd em Peahi (a.k.a. Jaws), ficou perigosamente fora de controle. O lugar, um dia considerado o Everest do surf, por causa de suas ondas gigantes, hoje leva comparação mais para o lado sombrio da maior montanha do mundo. A superexposição – inclusive por causa de filmes como o documentário Riding Giants, estrelado por Laird Hamilton – transformou Peahi na famosa Jaws, um circo de jet skis, cordas para reboque, câmeras, lanchas, helicópteros e interesses competitivos que os fundadores do tow-in vêem como uma fórmula para o desastre.

Assim como guias profissionais e cilindros de oxigênio podem levar escaladores inexperientes ao topo do Everest, cordas e jet skis abriram Peahi para surfistas que mal conseguem pegar no braço ondas de 6 metros. “O tow-in passou a ser o esporte mais constrangedor do mundo”, irrita-se Darrick Doerner, 48. “Tudo o que fazem é pegar um jet ski, uma corda e lá vão eles”. E eles vão por diversas razões. Além da glória de dropar Peahi, há também o chamariz de filmes, revista especializadas, patrocinadores e até um prêmio em dinheiro. O Billabong XXL Global Big Wave Awards paga mil dólares por cada pé de altura ao surfista fotografado ou filmado na maior onda do ano. Os últimos três vencedores encheram o bolso com ondas surfadas em Peahi, incluindo o recorde mundial de 70 pés (21 metros) em 2004, do surfista havaiano Pete Cabrinha, 42, cujo prêmio de US$ 70.000 chamou mais atenção ainda para o pico.

Legisladores havaianos já deram uns passos para colocar ordem no caos, começando com um requerimento para que surfistas e pilotos [de jet ski] completem um curso de segurança marinha de 10 horas de duração. Como o curso só tem aulas teóricas, a polêmica aumentou ainda mais. “Agora as pessoas vão achar que estão qualificadas a dropar Peahi só porque têm um certificado”, fala Dave Kalama, 40. Do outro lado, surfistas debutantes em Jaws acusam a velha guarda de protecionismo. “Todos os líderes do pedaço são um bando de surfistas ricos que só pensam no dinheiro que ganham lá e querem eliminar a concorrência”, acusa Kaleo Roberson, 30, que teve alguma costelas quebradas e ferimentos internos depois de deixar seu parceiro numa onda e colidir seu jet ski com outro jet ski em dezembro do ano passado, quando pelo menos 30 times de tow-in – fora fotógrafos e observadores – invadiram Peahi, mais do dobro de pessoas que o local pode agüentar, segundo os veteranos. “O lugar tem um jeito de cuidar de si mesmo”, diz Dan Moore, 48, ganhador do prêmio da Billabong em 2004 com uma onda de 68 pés (20 metros). “Para o bem ou para o mau”, finaliza.



(Foto: Anthony Mandler)

ENTRANDO NA FILA

Por Laird Hamilton

Quando começamos a fazer tow-in em Peahi, no começo dos anos 90, sabia que não tinha jeito do mundo vir na nossa cola. Era incrível demais pra isso não acontecer. Mas nos últimos dois anos o esporte explodiu. Hoje vemos até cinco caras na mesma onda. Claro que esse tipo de coisa acontece sempre quando alguém descobre um pico novo. Mas não estamos falando de ondas de um metrinho em Malibu. Isso é diferente. É Jaws. É Peahi. É um monstro. Temos que manter as coisas sob controle. Não acho que as novas licenças para os jet skis vai ser suficiente. Por exemplo: você tem carta para dirigir um carro, mas você pode dirigir um caminhão? Gostaria de ver os próprios surfistas tomando conta desse assunto. Tradicionalmente o surf tem uma hierarquia, com os locais tendo prioridade, enquanto o resto assiste e espera a sua vez. Mas com todo o dinheiro e glória envolvidos – como a tal recompensa pela maior onda –, esse sistema foi por água abaixo. Não gosto da idéia de regras no surf, porque elas sempre vão pelo mínimo denominador comum, no cara que está fazendo as coisas mais irracionais. Mas talvez as pessoas devessem começar a comprar entradas – quem zoar, não pode legalmente voltar mais aqui. No fim, de qualquer forma, o oceano vai ter a última palavra. É como o Everest no livro No Ar Rarefeito. A montanha fez algo que acordou as pessoas e agora há uma melhor organização e comunicação lá. Só espero que cuidemos disso antes que Peahi o faça.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2005)







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