Extrapolando os limites


(Foto: Bill Hatcher)

Por Cassio Waki

Existe limite para o desejo do ser humano de vencer seus próprios limites? Parece que não. Para algumas pessoas, a exaustão física e psicológica é um terreno onde a fronteira avança de acordo com a determinação e perseverança de cada atleta. Não importa se o desafio é dropar uma onda de vinte metros de altura, correr centenas de quilômetros no deserto do Saara sob um calor de mais de 50 ºC, pedalar durante uma semana nos Alpes suíços ou atravessar o Canal da Mancha a nado, numa água que não ultrapassa os 15 ºC. O que está em jogo é a batalha mais antiga da história da humanidade – o duelo da nossa mente com o corpo. Uma disputa onde não há vencedor, pois o mais importante não é chegar em primeiro ou segundo lugar. O que vale é a grande experiência de vida, a superação dos limites e a aventura.

Completar uma prova de portes astronômicos ou uma simples corrida até a padaria traz um sentimento de orgulho capaz de levar a um outro desafio, que leva a outro e outro. E aí aparece a pergunta que nos trouxe a essa reportagem: onde vamos parar? Será que estamos perto do domínio completo do corpo? O que sabemos é que não basta ser forte.

Os desafios seduzem todos os dias milhares de esportistas a treinar com o objetivo de realizar um sonho. A diferença é que alguns levam esse desafio a um nível extremo. Caso do ultramaratonista Carlos Dias, 32 anos, que enfrentou os 200 quilômetros da brasileira Jungle Marathon, derretendo sob um sol de 40 ºC no clima úmido da Floresta Amazônica. “Era o quinto dia de prova e eu estava à beira de uma crise. Imaginei uma escada, subi até o último degrau e, por cima do muro, vislumbrei uma situação melhor. Me vi na linha de chegada e as pessoas me cumprimentando”, lembra. “A cada linha de chegada que cruzo uma humildade ainda maior toma conta de mim”, completa o ultra-atleta, que divide seu tempo de treinos com a gerência de uma loja de uma operadora de celulares e seu mestrado em recursos humanos.

FOREST GUMP

A idéia de desafiar os limites humanos na corrida foi inspirada nos mensageiros da Grécia antiga. Registros mostram que eles cobriam de 100 a 500 quilômetros para levar notícias de uma cidade a outra. Bem mais tarde, em 1861, o americano Edward Weston percorreu a distância entre Boston e a capital Washington ou 713 quilômetros para ver a posse do presidente Abraham Lincoln. Era uma aposta e Edward perdeu 10 mil dólares, pois ultrapassou em 10 horas o limite de dez dias. Em 1877, inspirado em Edward, oficializou-se o Campeonato Mundial de Pedestrianismo. Mas o corredor, numa síndrome pré-Forest Gump, continuou criando desafios pessoais, até realizar seu grande feito: Los Angeles-Nova York (5.800 quilômetros) em 88 dias. Detalhe: Sir Edward tinha 71 anos.

O treino e a corrida de distâncias maiores do que a maratona causam um estresse único, que coloca o corredor sob o risco de vários problemas clínicos e ortopédicos. “Esse é o grande barato: saber como transformar os momentos de sofrimento em prazer”, conta Sérgio Cordeiro, 51, ultratriatleta brasileiro, líder do ranking mundial da International Ultra Triathlon Association (Iuta). A última competição de Cordeiro aconteceu no Duplo Ironman da Áustria, em que a quarta colocação lhe deu a liderança do ranking. Cordeiro foi convidado recentemente pela Iuta para disputar o Deca Ironman [leia sobre as provas mais cascas-grossas no box “O Calvário dos Contentes”].

SEM MEDO

“Comecei a correr provas de 10 quilômetros e sonhava com uma meia maratona. Depois dos 21 quilômetros vieram os 42, os 100 e assim foi”, conta Carlos Dias, que além da Jungle Marathon, correu os 243 quilômetros da Maratona des Sables, no deserto do Saara e os 246 quilômetros do Spartathlon, na Grécia. “Nós é que colocamos bloqueios na vida. Não há nada de extraordinário em ser um ultramaratonista. Se a gente colocar na cabeça que não é capaz, nada será possível”, ensina Carlos.

Para o ultraciclista Michel Bögli, 35, empresário da assessoria esportiva cearense Stark, é a busca do diferente e da aventura que o atrai para enfrentar desafios. “Desperta uma curiosidade que, sinceramente, não sei de onde vem”, conta ele, que já completou quatro vezes o Race Across América (RAAM), prova de ciclismo de 4.800 quilômetros que corta o Estados Unidos de oeste a leste. “É uma evolução natural. Fui surfando ondas cada vez maiores e quando vi me dei de cara com uma perfeita”, diz um tranqüilo Eraldo Gueiros, 39, proprietário da loja Extreme Club, no Rio de Janeiro, um dos únicos dois surfistas no mundo a dropar uma onda em Jaws, no Havaí, sem a ajuda de um jet-ski, somente com a força do braço. “É a sensação de não desperdiçar a vida, de viver os meus sonhos. Se eu me render ao medo, não faço nada”, conta.

Pode parecer exagero ou simplicidade demais por parte de Sérgio Cordeiro, Carlos Dias, Michel Bögli e Eraldo Gueiros. Mas os três ultraatletas são unânimes ao justificar o sofrimento das ultraconquistas: “Prazer e amor”, dizem. “O que faz ir tudo bem é o seu estado de espírito. Estar concentrado, amando e curtindo o que se faz”, aponta Michel. “Sei que o perigo e o medo existem. Mas se quero pegar a onda, devo transformá-los numa vontade que vem do coração”, completa Gueiros.


SURF: Eraldo Gueiros desce jaws depois de ter entrado na onda com os próprios braços

O PODER DA MENTE

É na busca dessas sensações que nasce uma motivação a mais. “As motivações têm origem nas necessidades fisiológicas e psicológicas. As fisiológicas são comer, beber, fazer sexo etc. As psicológicas são o amor, o status, o reconhecimento, o auto-conhecimento. Algumas pessoas conseguem transformar um momento de sofrimento em prazer”, afirma Carla di Pierro, psicóloga especializada em esporte pelo Instituto Sedes Sapentiae e que completou seu primeiro Ironman este ano, em Florianópolis.

São nesses momentos de sofrimento, dor, lágrimas, bolhas, assaduras e desgaste, chamados “de baixa”, que o prazer deve surgir. “Se focar no sofrimento, a tendência é desistir. Para encontrar satisfação nessa situação, o atleta deve estar treinado mentalmente”, diz a psicóloga Carla. “O atleta deve planejar o que vai pensar nesses momentos de dificuldades. Ter em mente imagens positivas, uma música especial, frases que criou ou que leu em algum livro. Isso deve ser praticado nos treinos também”, diz a psicóloga. “Não se motivar é o princípio do fim. A cabeça é que leva o corpo. Vem a imagem da família, dos amigos”, ensina Michel. “É uma troca muito boa entre a vida e o esporte. O dia-a-dia é uma preparação espiritual e mental para as competições e desafios e, deles, você tira muita coisa boa para a vida”, concorda Eraldo.

A mente tem grande parcela na hora de dar aquele “empurrãozinho” para o corpo despertar para o prazer. Mas, não é só levantar da cadeira e sair correndo. De acordo com Rogério Neves, médico do esporte do Sportslab Laboratório de Performance Esportiva, em São Paulo, há uma influência muito grande da genética em pessoas que se submetem a essas provas de resistência física. “São pessoas premiadas”, afirma. Há dois fatores decisivos: a presença de uma grande quantidade de fibras musculares, que tornam os músculos mais resistentes, e uma capacidade para captar e absorver oxigênio acima do normal. “Esse atleta precisa ser lapidado com treino orientado, alimentação e hidratação adequadas, estilo de vida, carga de descanso, entre outras coisas, para obter seu equilíbrio orgânico”, fala Rogério.


2004: Bárbara Bonfim carrega sua bicicleta durante mais de quatro horas no sexto dia de Ecomotion Pro
(Foto:Theo Ribeiro)

DESCALÇANDO A FAMA

Líder do ranking mundial de ultramaratonas e único brasileiro já convidado para disputar o Deca Ironman, Sérgio Cordeiro conta à Go Outside até onde vai o seu limite

Ele tem 1,65 metro, pesa 62 quilos, calça sapatos tamanho 39-40 e corre muito melhor quando está descalço. Aos 51 anos, o carioca Sérgio Cordeiro é o líder do ranking mundial da International Ultra Triathlon Association (IUTA), a associação que comanda as ultramaratonas pelo mundo. Para quem começou a correr num programa de qualidade de vida da empresa, aos 27 anos, com um par de tênis Conga, “que enchia os pés de bolhas e dava muitas dores”, está mais do que bom, não? Para ele não. Depois de conquistar triathlons, Ironmans, Duplo Ironmans, Ultramans, os 215 quilômetros da Ultramaratona do Vale da Morte, nos EUA – a 85 metros abaixo do nível do mar – e a Maratona do Everest, a 5.300 metros de altitude, Sérgio prepara-se para disputar no fim deste ano o Quíntuplo Ironman e, quem sabe no ano que vem, o sonho do Deca Ironman.

GO OUTSIDE Para que treinar tanto?

SÉRGIO CORDEIRO Não treino somente para nadar, correr ou pedalar. É um desafio para minha mente. É buscar meu equilíbrio físico, mental e religioso. Aí, fica mais fácil tirar aquele “quase” de quando falam “quase possível” ou “quase lá”.

Você não acha que as ultras distâncias passaram dos limites?

Acredito que tem tantas outras coisas que precisam de limites. Não tive uma infância privilegiada e sofri muitas coisas como, por exemplo, a violência. Ela, sim, deveria ter limite. Enquanto as pessoas puderem praticar esportes, seja até onde e qual distância for, não acho exagero.

Qual é o seu limite?

Infinito. Quem sou eu para saber o meu limite? Um dia acho que meu limite está em pedalar 500 quilômetros, mas aí consigo ir até 501 quilômetros.

O que você faz quando passa por um momento de baixa durante uma prova? Pensa em alguma coisa?

Esse é o grande barato. Saber transformar o sofrimento em prazer. Às vezes, meu momento de baixa dura 48 horas. Aí penso em meus amigos, na minha família, no país que estou representando, no meu patrocinador… Recentemente competi na Áustria e, logo que terminei o trecho de bike, estava me sentindo mal e também numa colocação muito ruim, em 15º. Então, pedi para o meu treinador [Lauter Nogueira] para correr descalço (ele não gosta muito que eu faça isso). Isso me deu uma energia impressionante e, não sei como, ganhei 11 posições. As pessoas me viam descalço e me motivavam demais. A quarta posição me dava a liderança do ranking mundial, então, o Lauter me fez calçar o tênis (após 60 quilômetros) e os 14 quilômetros restantes fui calçado. Quer dizer, transformei aquele meu sofrimento utilizando um prazer que tenho.

Por que gosta de correr descalço?

Sou da época em que não existiam produtos importados nem tênis para correr. Depois de um tempo o pé ficava dolorido e cheio de bolhas e não dava para continuar. Também era o início da prática de corrida no Brasil. As pessoas te viam na rua e gritavam: “Tá fugindo da polícia?”. Então, eu tirava o Conga e ia descalço. Acostumei e hoje tenho prazer ao correr assim.

TREINO PSICOLÓGICO

O que motiva um ser humano a buscar desafios do porte de uma prova de ultraendurance?

por Benno Becker Jr.*

Em um período de 20 anos, as provas de ultraendurance evoluíram muito além do imaginável. Em 1978, foi criado o Ironman, um desafio enorme para a época, em que apenas 15 atletas participaram e os sobreviventes foram tidos como heróis. Quase vinte anos depois, em 1997, criou-se o Deca Ironman, um circuito dez vezes a distância do original, em que somente 10 atletas do mundo participam. No Brasil, Sérgio Cordeiro vai participar, com seus 51 anos, de uma etapa do Quíntuplo Ironman no México composta de 19 quilômetros de natação, 900 quilômetros de bicicleta e 211 quilômetros de corrida em sete dias. É uma carga de trabalho humano inimaginável, que imprimirá um sofrimento máximo aos competidores. Mas qual a motivação de um ser humano para desafios deste porte?

A Psicologia do Esporte busca estudar todos os aspectos emocionais que influenciam o rendimento do atleta, bem como o efeito do esporte e do exercício físico sobre a área emocional do seu praticante. São duas as vias de pensamento e por elas podemos analisar estes eventos desafiantes que são as competições de ultraresistência, em que limites humanos são testados à exaustão. O que leva uma pessoa a buscar um duelo com ela mesma? Embora alguns autores possam examinar esses eventos extremos como uma auto-agressão, “acusando” o atleta de procurar sofrimento, eu vejo como um direito que a pessoa tem de trilhar um caminho.

Tenho treinado psicologicamente muitos atletas para competições similares e conheço seu funcionamento. Uma pessoa que busca algo é porque necessita, e uma das respostas pode ser biológica (que afeta a psicológica). O forte e prolongado exercício pode ativar o sistema central de opióides, originado pelo aumento de endorfinas – substância natural produzida pelo cérebro em resposta à atividade física, que relaxa, preserva da dor e dá enorme prazer. As investigações evidenciam que a endorfina é um anestésico e muitos dos efeitos cardiovasculares e comportamentais são mediados por esse mecanismo. Mas sabemos muito pouco sobre este opiácio. A adrenalina é outro fator que aparece em grandes desafios. Há várias pessoas que não podem viver bem sem ela. E a buscam não só no esporte, mas em todas as atividades humanas.

Na esfera psicológica há alguns fatores evidentes: a) estado de consciência alterado, causado pelo exercício (a própria endorfina pode ter uma parte de culpa neste estado de consciência. Muitos atletas, no consultório, têm me contado estes estados); b) apoio social, que são os ganhos em notoriedade (mídia), admiração de fãs, amigos, família e colegas, que causa um aumento na auto-estima do atleta; c) auto-eficácia, onde a melhora da aptidão física do atleta dá uma sensação de domínio de seu mundo, segurança e auto-estima.

Para finalizar, no aspecto psicológico eu apontaria três fatores determinantes para a participação do atleta numa competição limite como essas: auto-estima; motivação e capacidade de suportar a dor. Haverá alguma prova maior e mais dolorosa que estas? É provável que alguém já esteja pensando em criar uma nova. Entretanto, é possível que outros não atletas também possam enfrentar competições de igual sofrimento, que é sua própria vida. E, a cada manhã, despertam motivados para enfrentar a sua carga diária, sem direito a manchete na mídia.

*Benno Becker Jr é doutor em Psicologia, presidente honra da Sociedade Sul-Americana de Psicologia do Esporte e da Brasileira de Psicologia do Esporte. Professor visitante do doutorado da Universidad de Córdoba (Espanha) e do Pós-Graduação e Graduação da ULBRA. Psicólogo de atletas e de equipes de alto nível.



EM 1984: A suíça Gabrielle Andersen-Scheiss chega ao limite na primeira maratona feminina da Olímpiada de Los Angeles

O CALVÁRIO DOS CONTENTES

GRAND SLAM Circuito americano de quatro provas com 160 quilômetros cada, no intervalo de junho a setembro. Desde sua criação em 1986, apenas 138 atletas (116 homens e 22 mulheres), completaram o Grand Slam. Destaque para a Hard Rock, prova que acontece entre os dias 8 e 10 deste mês, um sobe-e-desce de 14 montanhas que vão de 2.300 a 4.300 metros de altitude.

DECA TRIATHLON IRONMAN 38 quilômetros de natação dentro de uma piscina de 50 metros, 1.800 quilômetros de pedal e 420 quilômetros de corrida, ambos num trajeto fechado de 1,6 quilômetros, ou seja, 1.120 voltas de bike e 262 voltas correndo. Em 15 anos de existência, apenas 61 atletas completaram essa insanidade, que acontece na segunda semana de novembro. Não há classificatórias. Os ultra-atletas são convidados pela International Ultra Triathlon Association (Iuta).

CAPE EPIC Essa prova esteve nas páginas da primeira edição da Go Outside, mas vale à pena relembrar seus 900 quilômetros de mountain bike, com muitas subidas e descidas, na África do Sul. Organizada pelas mesmas pessoas que fazem a famosa Trans Alps Challenge, na Suíça – até então a prova de MTB mais difícil do mundo –, a Cape foi traçada depois que eles acharam que os 600 quilômetros da Trans estavam ficando populares demais. Em 2006, será entre os dias 22 e 29 de abril.

MARATONA DES SABLES 243 quilômetros nas areias – de dia escaldantes e à noite gélidas – do deserto do Saara, no sul do Marrocos. Cerca de 680 ultra-corredores largam para uma jornada que dura por volta de uma semana. Ano que vem está prevista para o dia 8 de abril.

TRANS 555, A ROTA DO SOL Dizem que essa é um pouco mais exagerada que a Maratona des Sables. São 555 quilômetros, também em deserto, só que do Tenere, no Níger, África. Ano passado, 30 atletas largaram e 20 completaram. Detalhe: não é só dar o nome, RG e pagar a inscrição. Primeiro é preciso completar a Trans 222 e a Trans 333. Acontece no início de novembro.

TRAVESSIA DO CANAL DA MANCHA 35 quilômetros de águas a 15 ºC, com uma ventania constante e uma maré que muda a cada seis horas. Não há uma data ou um evento específico. O órgão que rege e aprova as travessias é britânico, o Channel Swimming Association. Confira as normas no site www.channelswimmingassociation.com.

MUNDIAL DE CORRIDA DE AVENTURA Que tal pedalar, correr, navegar e remar nas belas paisagens da Nova Zelândia? Seria tranqüilo, até familiar, não fosse por ser a corrida das corridas de aventura. É clima de copa do mundo. Os 60 melhores quartetos do planeta estarão lá dos dias 11 a 18 de novembro deste ano.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2005)







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