Navegar é preciso


VENTINHO BOM: Beto, de boné preto, e Felie fazem contrapeso próximo ao fiorde da Eternidade, na Groelândia

Por Mariana Sgarioni

A VONTADE DE FICAR A CÉU ABERTO, MESMO EM ALTO MAR, NÃO ERA NOVA. Afinal, Beto Pandiani já havia se tornado o primeiro homem a chegar à Antártica num barco sem cabine, em 2003, no projeto Rota Austral. No caminho, enfrentou e venceu o Cabo Horn, no extremo sul da América do Sul, divisor dos oceanos Atlântico e Pacífico e uma espécie de Monte Everest dos mares.

Na mesma viagem, atravessou ainda o canal de Drake, um dos mais casca-grossa e com um dos piores climas do mundo – tudo num catamarã de 21 pés. Somadas as distâncias navegadas em suas viagens, o ex-empresário da noite (lembra das boates Aeroanta e Clube BASE, em São Paulo? Ele era um dos sócios) já havia percorrido mais de 20 mil quilômetros em barcos sem cabines. Faltava velejar o hemisfério norte, alinhavando o sonho de uma quase-volta ao mundo, sob o céu.

Assim surgiu o projeto Rota Boreal, batizado uma homenagem à tão famosa aurora que só acontece no extremo norte do planeta: ir, em catamarãs – barcos sem cabine, em que os velejadores ficam ao sabor do vento, presos por cordas aos mastros e à lona – de Nova York à Groelândia.

O calendário marcava dia 12 de maio de 2005 quando Beto e o também velejador Felipe Whitaker partiram a bordo do catamarã Satélite III rumo à terra dos icebergs. “O desafio do início era simplesmente enxergar. A neblina era tão intensa que precisávamos driblar os pesqueiros. Qualquer batida poderia significar o fim da expedição”, lembra Beto, que sentiu frio, teve a água e comida racionadas, tomou chuva e passou por todos os perrengues possíveis e imagináveis – dignos de quem estava a céu aberto no meio do nada. A recompensa foi conseguir se tornar o primeiro velejador no mundo a cumprir o percurso em um catamarã.

É lógico que aventuras e descobertas não faltaram na viagem: topar com ursos polares, assistir à aurora boreal de pertinho, presenciar crepúsculos incríveis no meio do oceano gelado, conhecer a vida dos esquimós. Mas o que passava pela cabeça dele enquanto estava desprotegido em mar aberto? Como vencer o cansaço físico e psicológico, o frio, a angústia, o medo de o barco bater e quebrar? O que aconteceu na mente daquele que trouxe para o Brasil o recorde mundial na sua categoria? Colocamos o velejador em terra firme para nos contar o que só ele pode dizer: o que sentiu, pensou e temeu nesses 90 dias em que viveu entre a fragilidade e a coragem.


BETO PANDIANI: Sua imensa vontade de ficar a céu aberto, mesmo em alto-mar

CONVÍVIO

“Eu e Felipe ficávamos 24 horas por dia juntos, um de frente para o outro, velejando. É muito tempo. Nunca fiquei tanto com alguém, nem com minha mulher. Na verdade, acho que ninguém fica assim com ninguém. No começo, até que tudo corre bem, mas depois você tem que conhecer bem as reações do seu companheiro. Se não, a convivência desanda. O Felipe, por exemplo, acorda mal humorado. Não gosta de conversar de manhã – eu percebi e aprendi a respeitar isso. Já eu perco a cabeça quando vejo que o barco está sendo danificado por alguma razão, como batidas e tempestades. Então combinamos de deixar pra lá qualquer resposta invertida que o outro desse – sem reação, não há briga. É preciso entender que as reações, por mais que sejam agressivas, não são pessoais: pô, a gente está cansado, com fome, com frio, com sono. É quase inevitável falarmos uma besteira hora ou outra. O que não dá é pra ficar batendo boca.”



DE SAÍDA: Dupla, em Newport, Maine, se prepara para mais um dia de aventura

SOLIDÃO

“Defino o sentimento de estar naquela imensidão como solitude – a solidão junto com a plenitude. Não é um sentimento negativo, como aquele que você tem quando se vê sozinho em São Paulo. Pelo contrário. Na cidade, você tem celular tocando, computador, telefone, televisão. Não dá para ficar centrado nos seus sentimentos porque há um milhão de distrações justamente para desviar a sua atenção de si mesmo e virar-se para o outro. No barco, mesmo tendo o Felipe por perto, eu sentia o sabor de estar profundamente sozinho o tempo todo. É difícil acontecer isso em outro lugar. Eu tive diversos momentos de forte introspecção, como quando flagramos o pôr-do-sol na Península do Labrador, no Canadá. Fiquei pensando como certas pessoas se acham o centro do universo e, diante daquilo, não são nada”.


FAROL SCITUATE: Enfim um dia de sol no Maine

MEDO

“Esta viagem foi minha quarta expedição [nas viagens anteriores, Beto cruzou a floresta amazônica, velejou pela Patagônia e atravessou o canal do Drake, no extremo sul do planeta. Detalhe: todas em barcos sem cabine]. Por isso, tudo foi minuciosamente planejado e calculado. Mesmo assim, meu maior medo era o de fracassar. Isso não saía da minha cabeça. Eu havia assumido uma série de compromissos com patrocinadores e a viagem tinha que dar certo. O receio de o barco quebrar me acompanhou a cada minuto. Se isso acontecesse, tudo iria por água abaixo – literalmente – em instantes. Logo no início da viagem, ainda no Canadá, batemos em uma pedra e a bolina do barco rasgou. Isso só significou um pequeno atraso no cronograma, mas fiquei realmente nervoso. Como a gente não consegue controlar tudo na vida, tive que aprender na marra a lidar com as minhas frustrações”.


NEBLINA: Chegada a Yarmouth, Canadá, com visão limitada a 50 metros

COMIDA

“Para agüentar velejar o dia todo em temperaturas tão baixas (de cerca de 4 graus), tínhamos que ingerir cerca de cinco mil calorias por dia. É muita comida. Nossa dieta era baseada em gorduras e alimentos liofilizados – era só jogar água quente e tínhamos pratos incríveis, como risotos e até bacalhau. Eu não conseguia parar de comer, pensava em comida o tempo todo, em coisas gordurosas que nem tenho o hábito de comer, como bacon, salame, embutidos. Cheguei a sonhar com salame! Senti falta das frutas e verduras, impossíveis de serem encontradas em lugares frios. Na Groelândia, caviar é mais barato que tomate. Comi muita carne de foca e de baleia, mas nenhuma folha de alface. Mesmo comendo muito, emagreci cinco quilos. A força e o desgaste são tão grandes que a queima dos alimentos é praticamente imediata. Eu me lembro um dia em que fui tomar banho – era só um por semana! – e fiquei assustado com minha magreza. Estava pele e osso”.

AMIZADES

“Como viajamos em um catamarã, tínhamos que parar todos os dias para dormir. Isso acabou sendo muito bacana porque pudemos conhecer os lugares por onde passamos. Outra coisa legal de viajar em um barco pequeno e despretensioso é que somos sempre bem recebidos em todo lugar. Conhecemos muita gente e fizemos amizades preciosas. Certo dia, passávamos pela Costa do Mayne, nos Estados Unidos, e fomos atingidos por um vendaval seguido de uma forte tempestade. Não dava para continuar velejando, precisamos parar e buscar abrigo. Ao chegarmos na praia, um senhor nos viu de longe e veio correndo em nosso auxílio. Ajudou-nos a puxar o barco da água e nos convidou para entrar em sua casa. Quando chegamos, a mulher dele, uma senhora encantadora, já havia começado a preparar um almoço quentinho pra gente. E, sabe como é, falou em comida… O casal foi tão bacana que nos chamou para ficar alguns dias com eles até que a tempestade fosse embora. Até DVD à noite nós assistimos, embaixo do cobertor”.


SORRIA: Foto para a posteridade da dupla Felipe e Beto

OBJETIVO

“Todo mundo me pergunta por que eu resolvi fazer essa viagem, passando frio, fome, chuva, desconforto. Não seria melhor escolher um barco mais forte, mais confortável? Mas existe um conceito por trás de nossa expedição. Ao viajar de catamarã, nosso objetivo não era chegar em determinado ponto e sim curtir o caminho até lá. A velejada é o mais importante – fazer o barco andar, pilotar com atenção. Sem contar o desafio, enorme: a gente ficava o tempo todo pensando se iria conseguir, se éramos mesmo capazes. Isso é muito instigante”.

PERIGO

“Em determinados momentos, sobretudo quando o mar estava muito agitado, eu tinha medo de cair na água – a quatro graus negativos, o corpo humano sobrevive somente cerca de três minutos. Com as roupas que usávamos, próprias para velejadores e mergulhadores, com um material que isola a temperatura, o tempo de sobrevida na água é de quatro horas. Por isso, fomos bem preparados, auxiliados por serviços meteorológicos internacionais e equipamentos de primeira. Em qualquer sinal de mau tempo ou perigo, recuávamos e esperávamos a tormenta passar”.


GROELÂNDIA: Fiorde da Eternidade, com 1.500 metros de altura

A VOLTA

“Em minhas outras viagens, eu ficava feliz de chegar em casa. Queria voltar, retomar o que deixei. Dessa vez eu simplesmente não queria voltar. Fiquei tão introspectivo diante de tudo o que vi, foi um processo tão profundamente meditativo, que minha vontade era ficar por lá, em meio às terras geladas. Passei um mês em São Paulo com a minha mente ainda longe. Demorou para cair na real de novo”.


SUPORTE: Kotic é o barco de apoio com tripulação de seis pessoas

BANHO DE ÁGUA FRIA

“No fim da expedição, eu e Felipe saímos para velejar e documentar a última velejada. Como estávamos já acima do Círculo Polar e não havia responsabilidade em chegar a algum lugar, aproveitei para dar tudo do barco e fazer lindas imagens. Em um segundo de vacilada, capotamos. Felipe e eu mergulhamos nas águas geladas da Groelândia – para ser preciso, uma água a quatro graus negativos. Que batismo! Felizmente, logo fomos ajudados. Aconteceu quando podia acontecer. Após desvirar o barco, Felipe e eu demos risada, lavamos a alma, literalmente, e fechamos exatos 90 dias de viagem com um banho”.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2005)







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