O impossível não existe


DESLUMBRE: Competidores já deram de cara, na largada do primeiro dia, com a paisagem incrível do Monte Cook, a maior montanha da Nova Zelândia. Foram 23 km de corrida na margem do rio Tasman

Por Eleonora Audrá

FINALMENTE EU CONSEGUIA AVISTAR, LÁ LONGE, O PIER DE NEW BRIGHTON, a tão esperada linha de chegada. Uma enorme felicidade tomou conta de mim, uma sensação de dever cumprido. Mesmo com as pernas moídas, comecei a dar passadas mais firmes e aumentar o ritmo. Uma força extra me fazia correr mais rápido. Lágrimas escorriam dos meus olhos e o retrospecto de toda a corrida passava em minha cabeça. Eu estava prestes a completar minha primeira prova multisportes (mistura de triathlon e corrida de aventura, em que os atletas praticam várias modalidades num percurso pré-determinado e sinalizado pela organização), a Mount Cook Race.

Confesso que não fui modesta em minha estréia. A Mount Cook Race é uma das mais tradicionais corridas multisportes da Nova Zelândia (juntamente com o Coast To Coast), o berço desse tipo de prova e lar de alguns dos multiatletas mais fortes do mundo. A prova tem 455 km de percurso divididos em 12 estágios ao longo de três dias, partindo da base do Mount Cook (a montanha mais alta da ilha sul da Nova Zelândia) e seguindo até a praia de New Brigthon, em Christchurch, no litoral leste da ilha. Cada dia é composto por quatro estágios: mountain bike, corrida, canoagem e ciclismo de estrada. A maioria dos participantes faz a prova em esquema de revezamento, dividindo os trechos com seus companheiros de equipe. Neste ano, apenas 15 atletas participaram da categoria individual, competindo em todos os 12 estágios e praticando todas as modalidades. Eu estava entre eles. Logo passei a ser conhecida pelos outros competidores como a “brasileira maluca” que escolheu a prova mais difícil para ser a primeira multisporte. Eu ria. Mas minutos após o início da prova, entendi o por quê da “maluca”.


VAIVÊM: No segundo estágio do terceiro dia, 35,5 km de pedalada em direção ao rio Waimakiuiui, com muito vento contra desafiando a galera

Na noite que antecedeu a largada, o nervosismo tomou conta de mim: não dormi direito, acordava a cada meia hora para olhar o relógio e ficava aliviada ao ver que ainda restavam algumas horas de sono. Sabia que, uma vez começado a maratona, teria que seguir até o fim… E o fim estava longe, a exatos 455 km! Minutos antes da largada, olhei para trás e o imenso Mount Cook, coberto de neve, destacava-se na escuridão daquela manhã fria. A adrenalina invadiu meu corpo, faltava muito pouco. Concentrada, tentei me visualizar em cada momento da prova. Sabia que seria muito difícil e que eu teria que ir além da força física – apesar do corpo executar os movimentos, somente minha a cabeça poderia me levar até o fim. Ao ouvir a contagem regressiva, uma última pergunta ainda veio à mente: “Onde fui me meter?”

Foi uma das corridas mais duras que já participei. E olha que já competi em algumas das corridas de aventura mais cascas do mundo, como o Eco Challenge e Raid Gauloises. Muito técnica, com muito vento contra e algumas partes que pareciam intermináveis. Os trechos de remo foram variados. Um deles foi uma “perna” de 24 km no segundo dia descendo o rio Rangitata, classe II/III. Foram 2,5 horas de muita adrenalina e pura concentração, sem trechos de remanso. Qualquer vacilo podia fazer com que o caiaque virasse. As etapas de mountain bike – 75 km no segundo dia e 65 km no terceiro – me lembraram os Ironbikers que já corri nas montanhas de Minas Gerais. Algumas subidas me fizeram chorar, mas em seguida rolaram incríveis downhills para secar minhas lágrimas. Como teve muito vento contra em todos os estágios de ciclismo, em algumas horas tive que pedalar nas descida para conseguir ter velocidade. Já o estágio da corrida, no segundo dia, terminou com uma linda trilha que me lembrou uma das florestas do “Senhor dos Anéis”, típica da Nova Zelândia.


DE OLHO NO AZUL DO CÉU: No segundo estágio do primeiro dia foram 18 km de remada no lago Pukaki, ao pé do Monte Cook

Um ponto que marcou esta prova foi a solidariedade entre os atletas. Sempre que o desespero passava pela minha cabeça, alguém se aproximava, oferecia ajuda, disponibilizava o vácuo na bike ou apenas me motivava dizendo que eu era uma heroína por estar fazendo todo o percurso, na categoria individual. Cada gesto e cada palavra me ajudaram a querer continuar. Pensava em minhas companheiras de equipe da Atenah e sei que, no meu subconsciente, elas estavam comigo o tempo todo.

PARTICIPAR DE UMA PROVA INDIVIDUAL É BEM DIFERENTE das corridas de aventura, onde passamos por todos o momentos difíceis dentro de uma equipe, dividimos emoções e compartilhamos vitórias e fracassos. Na Mount Cook me senti muitas vezes solitária. Não tinha ninguém para desabafar. Acabei criando dentro de mim uma outra “Nora” com quem compartilhei todos os momentos difíceis e a quem eu xingava nos maiores perrengues. Nas horas mais duras eu lembrava de um trecho de um livro que estou lendo que diz: “sofrer é passageiro, desistir é para sempre”. Nada me faria desistir.

Semanas antes da prova o Ian – meu namorado neozelandês, aquele que me fez trocar o Brasil por este país lindo, do outro lado do mundo – me perguntou quais eram meus objetivos na Mount Cook. Respondi que queria adquirir experiência, não perder tempo nas transições e acima de tudo, aprender.


HARDCORE: Segundo estágio do segundo dia, a etapa de canoagem mais difícil da prova. Duas horas e meia em 24 km no rio Rangitata, sem descanso

Aprendi que nossa cabeça é muito mais poderosa do que eu já acreditava. Ela pode transformar o difícil em algo muito pior, e vice-versa. Aprendi que o impossível só existe dentro de nós, se quisermos. Se você acha que consegue ou acha que não consegue, você sempre vai estar certo. E eu estava certa: com 31 horas e 10 minutos de prova, cruzei a linha de chegada na 4a colocação, sob os aplausos da galera que estava presente. Chorei de novo, mas estas lágrimas eu não queria secar.

Eleonora Audrá é paulista, tem 28 anos e há 7 anos compete na equipe de corrida de aventura Atenah, formada por mulheres. Em 2006, representou o Brasil no G4 Challenge, conseguindo a melhor colocação entre as mulheres. Há três meses ela mora e treina na Nova Zelândia.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2007)







Acompanhe o Rocky Mountain Games Pedra Grande 2024 ao vivo