Treme-treme


LEVANTANDO A POEIRA: Só quando a chuva dá uma trégua é que os competidores da Paris-Roubaix conseguem manter a fila

Por Mario Mele

“HOJE EU VENCERIA OU MORRERIA TENTANDO”, desabafou o australiano Stuart O’ Grady, coberto de poeira da cabeça aos pés, quando cruzou a linha de chegada no velódromo da cidade de Roubaix. Faltando 25 km para o final, o sprinter se destacou e, sem dar chances aos adversários, entrou para a história do ciclismo mundial e da corrida Paris-Roubaix.

Se pra você ciclismo de estrada lembra um pelotão de competidores alinhados, deslizando sobre um asfalto lisinho igual a um tapete, lubrifique seus conceitos. A tradicional Paris-Roubaix é quase assim, exceto pelos trechos de paralelepípedos no lugar de asfalto, nos quais o desafio maior é encarar o treme-treme sem perder o ritmo veloz, comum no ciclismo speed. Os mais de 230 bikers que participam da prova anualmente precisam domar suas magrelas de garfo rígido e pneus finos por cerca de 50 km de terreno desuniforme, espalhados em 28 trechos dos 259 quilômetros totais. Nos mais de 100 anos da prova, nunca houve um em que não rolassem quedas, dezenas de pneus furados e bikes totalmente aniquiladas no final da competição.

A 105ª edição da Rainha das Clássicas, como ela é conhecida, aconteceu no último dia 15 de abril com vitória inédita do australiano, que completou o percurso em 6h09min. De tabela, ele brindou a equipe dinamarquesa CSC com o bicampeonato. Embora Stuart tenha sido o primeiro a cruzar o pórtico, a colocação é resultado de um trabalho em equipe, principalmente do seu companheiro suíço Fabian Cancellara, vencedor em 2006. O diretor da equipe, Scott Sunderland, contou a estratégia: “Fabian era o favorito se chovesse, mas com o clima quente e seco, apostamos em Stuart, mais acostumado a essas condições”. O clima deste ano foi uma exceção, já que a prova acontece na primavera européia, normalmente uma época chuvosa, que lava o chão e transformando os paralelepípedos num sabão.

O trecho em Wallers-Arenberg é o mais temido, com 4,2 km de pedras pontiaguda, “boas” pra furar pneu e derrubar os ciclistas que chegam nesse corredor a uma velocidade de 50 km/h. Acidente ali significa fêmur, bacia e outros ossos quebrados. É na intenção de assistir a esses adrenantes momentos que 6 mil pessoas se aglomeram à beira do percurso neste trecho.

E foi exatamente uma colisão e um câmbio traseiro quebrado que tirou o brasileiro Luciano Pagliarini da Paris-Roubaix desse ano, quando faltavam 60 km para o final. Em 2006, a terceira vez dele na prova, Pagliarini chegou em 76º, embutido num pelotão de 200 atletas. “É complicado correr lá. Quando chove, a pista vira uma lama só. Em clima seco, a visibilidade fica ruim por causa da poeira. É até difícil respirar”.

Em 2004, o brasileiro Murilo Fisher terminou em 40º, mas a melhor colocação tupiniquim pertence ao curitibano Mauro Ribeiro, que em 1991 completou o perrengue em 17º lugar, a apenas 30 segundos do campeão e colega de equipe, o francês Marc Madiot. “Eu fui um gregário [atleta da equipe que trabalha para o bom resultado do ciclista líder]. Minha participação foi voltada para o desempenho de Madiot, atleta principal da equipe R.M.O.”, explica Mauro, hoje treinador de ciclismo.

Para encarar as ruas irregulares da Paris-Roubaix, as bikes precisam receber algumas adaptações que fazem toda a diferença, principalmente para quem as pilota. A primeira providência é colocar um gel embaixo da fita do guidão, que alivia a trepidação sofrida pelos braços e mãos. A segunda adaptação é aumentar 1 cm a distância entre os eixos das rodas dianteira e traseira para o garfo sofrer menos oscilação e o pedal ficar mais confortável. Os raios também são soldados entre si, para aumentar a resistência da roda. Alguns atletas optam por colocar o manete do freio na parte de cima do guidão e outros enrolam os dedos com esparadrapos. Mas, sonhar em chegar na final com as mãos livres de bolhas d’água é utopia.

A RAINHA DAS CLÁSSICAS É UMA PROVA QUE EXISTE DESDE 1896 e só não aconteceu no período das guerras (de 1915 a 18 e de 1940 a 42). Bélgica e França são os países que mais abocanharam o caneco máster. Aliás, o belga Roger de Vlaeminck é recordista de pódios. Ele ganhou em 1972, 74, 75 e 77. Nessa época, Roger disputava a liderança roda a roda com o compatriota Eddy Merckx e o italiano Francesco Moser, ambos tricampeões da prova. Só Merckx – o melhor ciclista mundial de todos os tempos – conseguiu vencer mais de duas vezes as cinco provas que compõem um grupo chamado Clássicas Monumentais: Volta de Flandres (Bélgica), Milão-São Remo (Itália), Giro di Lombardia (Itália), Liège-Bastogne-Liège (Bélgica) e Paris-Roubaix.

Um outro belga que se destacou em Paris foi Johan Museeuw, que levou a melhor em 1996, 2000 e 2002, mas manchou a sua imagem no começo desse ano quando admitiu que “curtia” substâncias ilegais para incrementar a performance. Uma outra lenda da Paris-Roubaix foi o corajoso irlandês Seán Kelly, campeão em 1984 e 86, que se entusiasmava quando chovia. “A chuva desanimava muita gente, que se contentava apenas em chegar. Para mim, era uma motivação saber que menos ciclistas estavam realmente interessados na vitória”, conta Seán.

Uma semana antes da Paris, os ciclistas se esquentam na Volta de Flandres, que também tem trechos de paralelepípedos e topografia acidentada. Stuart ficou em 10º em abril e não entrou para a lista de cinco ciclistas que já ganharam Flandres e Paris-Roubaix no mesmo ano. A última vez que isso aconteceu foi em 2005, quando o então líder do ranking mundial Tom Boonen conseguiu a proeza.

Mas, a Volta de Flandres não chega aos pés da Paris-Roubaix, que só perde o título da “prova de ciclismo mais popular do mundo” para o Tour de France. E mesmo que um dia a Paris-Roubaix não integre mais o calendário oficial da União Ciclística Internacional (UCI), dona do ranking mundial, a competição continuará atraindo um batalhão de ciclistas da elite dispostos a encarar o charme dos seus desafios.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2007)







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