Samba hula-hula


REMA, REMA, REMADOR: As equipes ainda "emboladas" no começo da disputa, com a dupla brasileira em primeiro plano

Por Fernanda Franco
Fotos por Bruno Lemos

ALOHA E MAHALO SÃO “OLÁ” E “OBRIGADO” EM HAVAIANO. Mais do que duas palavras, são expressões que fazem parte da cultura e estilo de vida dos havaianos e, segundo eles próprios, devem ser pronunciadas com freqüência para tornar a vida mais próspera. Além do idioma, esse simpático povo preservou outras tradições polinésias, como as canoas havaianas, um antigo meio de transporte que hoje é praticado como esporte em mais de 40 países, inclusive no Havaí, claro. É lá que rola anualmente o Molokai, uma espécie de campeonato mundial de canoa havaiana para remadores de OC 1 (canoa para uma pessoa) e OC 2 (duas pessoas). A edição desse ano aconteceu dia 20 de maio, como sempre no canal de Kaiwi, que separa as ilhas de Molokai e Oahu. O diferencial ficou por conta dos nove quilômetros a mais no percurso – totalizando 67 quilômetros de travessia – e das condições do vento e mar, que segundo quem já conhece a prova, foram as piores das trinta edições já realizadas. Mesmo assim, os brasileiros Alessandro Matero, 33, o Amendoim, e Vitor Marçal, 43, participaram e venceram na categoria dupla, ganhando não só medalhas, mas o respeito dos pais da modalidade.

O já quase havaiano Vitor mora na ilha há 17 anos e trabalha como tenente salva-vidas no North Shore, onde rolam as maiores ondas de Oahu. O engraçado é que mesmo sendo amigo do peito de todos os esportes que envolvem água e prancha, a idéia de fazer a prova veio do paulista Amendoim, que treina e dá aulas de havaiana mesmo morando numa capital sem mar. Ele está acostumado a remar em águas paradas, sem a força do vento e do mar, ao contrário dos havaianos que remam downwind, ou seja, a favor do vento.

Por causa da distância física, Amendoim e Vitor conseguiram treinar juntos apenas três vezes antes da competição. Na primeira tentativa, o modelo de canoa mais curto usado do que o Brasil (e portanto mais rápido e instável) insistia em derrubá-los na água, fazendo a dupla queimar a cachola para descobrir como equilibrar melhor o peso dos atletas na embarcação. No segundo treino, eles já comemoravam o entrosamento surfando vagalhões de quatro metros, que todos esperavam que aparecessem no dia da prova.


FAZENDO ONDA: Vitor e Amendoim matêm a sincronia

Mas o cenário da largada foi outro: nada de vento a favor e de marolas no mar. A única ondulação veio de lado, tornando a progressão ainda mais difícil. Com essa situação nada animadora, alguns competidores decidiram abortar a participação. Na categoria OC 2, por exemplo, quatro duplas inscritas fugiram da raia e quatro partiram pra briga, entre estas os brasileiros e os favoritos taitianos, campeões de quatro edições anteriores. “Quando vi as condições do mar, senti que eu tinha vantagem por já estar acostumado a usar a força em vez da técnica de surfar ondas”, conta Amendoim. “E eu era o primeiro brasileiro a sair do Brasil pra fazer essa prova, não iria desistir tão fácil”, completa.

Essa não foi a única prova de fogo dos dois. Com 2h30min de remada, o braço flutuador da canoa deles se soltou, desmontando a embarcação e jogando os dois ao mar. Nesta hora, a lancha de apoio se mostrou uma mãe, fornecendo – além das coordenadas do GPS, alimentação e hidratação – fita adesiva para emendar a canoa e continuar a luta. Nesta brincadeira, Amendoim e Vitor perderam 10 minutos.

Até ali, os brasileiros tinham o objetivo de apenas participar da competição e finalizar o percurso até Oahu, já que as condições não eram as melhores e eles mal tinham treinado juntos. Mas depois de 1h15min de remada forte, eles alcançaram os taitianos e passaram a brigar de verdade pelo título. “Quando o flutuador quebrou, foi muito ruim ver todos passarem. Mas isso nos refrescou a mente e fez o nosso espírito crescer para continuarmos na disputa”, conta Vitor, sobre a volta por cima da dupla.

Mas, a prova ainda estava só na metade. Tanto músculos quanto mente precisariam de cuidados especiais para não quebrarem como a canoa. Missão para o experiente Amendoim, que participa de corridas de aventura de longa duração e ajudou a equipe a se alimentar e se hidratar corretamente sob o sol e mar. Já Vitor colaborou na leitura das correntes marítimas, conseguindo surfar as mirradas marolas com a canoa, poupando a energia dos atletas.


HAVAIANAS: Dançarinas recebem os competidores

E foi assim, silenciosamente e por longas 7h23min, que os dois remaram quase sem parar, usando na medida certa a mente e o corpo e quebrando a invencibilidade dos taitianos. Estes chegaram poucos minutos depois, seguidos por mais ninguém da sua categoria, já que as outras duas outras duplas desistiram no caminho. “O psicológico foi fundamental para superar as dores musculares e as condições de percurso que enfrentamos”, explica Vitor. “É preciso saber lidar com a dor, já que uma prova dessa é metade força e metade mente”, completa Amendoim. Dos 133 atletas que largaram, 44 não chegaram a Oahu.

A vitória foi celebrada pelos dois e também pelos próprios havaianos, que reconheceram a façanha dos gringos: sair do Brasil para remar numa das provas mais tradicionais do mundo e ainda vencer num canal tido como superperigoso e difícil. “Um estrangeiro competir e vencer aqui demonstra que a cultura dos havaianos é mantida e divulgada em outros países”, explica Vitor. Já Amendoim trouxe pra casa uma medalha de campeão, as lembranças da hula (um festival de dança local onde todas as famílias em Molokai participam), muita informação e experiência dos Papas da modalidade e a promessa de que agora são os havaianos quem devem vir conhecer as nossas marolas.

UM PONTO NO MAR

A canoa havaiana conseguiu, junto com a sua pátria-mãe, ter a tradição preservada antes de ser engolida pela supremacia norte-americana, os “donos” oficiais da ilha. O Havaí se safou dos Big Macs e arranha-céus graças ao seu isolamento geográfico e à força da comunidade local. Foi remando esses barcos de madeira que os polinésios alcançaram – com histórias que datam de 3 mil anos – o Havaí e as demais ilhas da região, colonizando-as. Hoje, para preservar a cultura, a modalidade é ensinada nas escolas para crianças a partir dos seis anos e o arquipélago promove campeonatos de todas as categorias, quase todos os meses.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2007)







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