Uísque com gelo


RUMO AOS CÉUS: A primeira perna de trekking seguiu pelas cristas das montanhas, com penhascos dos dois lados e ventos fortíssimos

Por Rafael Campos
Fotos por Divulgação

FOI NA ETAPA DE MOUNTAIN BIKE MAIS LONGA do mundial de corrida de aventura (o ARWC 2007), na Escócia, que a minha equipe, a Mitsubishi QuasarLontra, encarou a maior loucura de toda competição: saltamos, pelados, de uma cachoeira com sete metros de altura, direto para um rio com águas a 6º C. Decidimos enfrentar a prova como viemos ao mundo porque eram 22h30, o frio estava pegando e não queríamos encharcar as nossas roupas, o que atrapalharia a continuação do pedal, que tinha um total de 140 quilômetros. E assim fomos, só de capacete e coletes salva-vidas, queda abaixo. Foi insano, mas fazia parte da competição.

A loucura da minha quarta participação em mundiais já começou na largada, no dia 26 de maio. Partimos de um dos cenários mais alucinantes que já presenciei: o pórtico estava na frente de um castelo construído há mais de 200 anos, numa remota ilha do Reino Unido chamada Rum. Eu e meus companheiros da Lontra – Fabrizio Giovannini, Tessa Roorda e Erasmo “Xiquito” Cardoso – éramos a única equipe da América Latina nas chamadas Higlands ou Terras Altas escocesas, um local de inúmeras batalhas históricas. Desde a época das invasões romanas, e principalmente depois, a região é palco de disputas de poder e terras entre ingleses e irlandeses. Por causa disso, grandes muralhas e castelos foram erguidos ao longo dos séculos, deixando um legado arquitetônico magnífico.

As melhores equipes de aventura do mundo se reuniram na cidade escocesa de Fort William, a capital de esportes de aventura de toda a Grã-Bretanha. Antes da largada oficial aconteceu um prólogo, que já nos mostrou o tamanho da batata quente: foram 700 metros de natação no mar gelado, um trekking com 26 quilômetros e mais de 2 mil metros de ascensão – e a prova nem tinha começado.

Já a largada oficial aconteceria justamente na modalidade que eu mais temia: a canoagem. Estava preocupado porque os mares daquela região são bastante revoltos, o tempo normalmente é fechado, chuvoso e com fortes ventos. Além disso, a temperatura da água era de cerca de 10 ºC, ou seja, se virássemos o caiaque, era hipotermia na certa caso o resgate não agisse rápido. Apesar dos temores, deu tudo certo. Largamos de Rum em direção às Terras Altas. Do barco, avistávamos montanhas de até mil metros de altitude, que em breve subiríamos a pé. No caminho tivemos que fazer uma portagem (trecho no qual carregamos os caiaques por terra) e depois continuamos remando até o início do trekking.


É LOGO ALI: O trecho mais longo de mountain bike teve puxados 140 km já no primeiro dia de competição

Essa caminhada foi de longos trechos pelas cristas das montanhas, ou seja, penhasco para os dois lados e um vento tão forte que fazia com que andássemos agachados nas partes mais perigosas. Mas o visual compensou: lá de cima enxergávamos o mar recortado entre fiordes e montanhas com picos rochosos. Depois veio o tal do mountain bike de 140 km e a descida pelados para completar o segundo dia de prova.

Já no terceiro dia de competição, outro desafio para ficar na memória: natação e travessia em caiaques dentro do lago Ness. Sim, aquele lago de águas escuras e mais de 200 metros de profundidade, famoso por causa do suposto monstro aquático que o habita, o Nessie. Relatos de moradores e até fotos mantêm acesa a discussão sobre a existência ou não da criatura, que infelizmente nós não tivemos a oportunidade de conhecer. Saindo de uma margem, eu e Fabrizio nadamos em direção ao castelo de Urquhart, enquanto Tessa e Xiquito nos acompanhavam de caiaque. Ao chegarmos ao castelo, onde havia um PC, todos subimos no caiaque e fizemos o restante da travessia do lago.

Da água para a terra: o trekking subseqüente aconteceu numa região desértica, e foi lá que rolou um dos momentos mais preocupantes para a equipe. Estimávamos fazer a caminhada em trono de 19 horas, mas acabamos levando 25, pois as péssimas condições do tempo – chuva, névoa e muito frio – atrapalharam nossa navegação. Para piorar, em alguns postos não havia fiscal, mas sim um pequeno aparelho eletrônico do tamanho de um celular que registrava a passagem das equipes por meio de um chip que trazíamos no braço. Nessa hora, começamos a racionar os alimentos e a friaca não deixava a gente parar para descansar. Perrengue.


RIOS E PÂNTANOS: Parte da canoagem seguia por água, parte por uma vegetação pantanosa chamada turfa, nas quais os atletas faziam portagem

Antes da última etapa de caiaque, muitas equipes já haviam desistido por exaustão física ou atletas com princípio de hipotermia. Mal sabem eles o que encontrariam pela frente caso tivessem continuado. Depois de remarmos 30 quilômetros, fomos obrigados a realizar uma portagem por mais de 12 exaustivos quilômetros. Utilizamos uma carriola especial para puxar os caiaques. E o pior estava no final da remada, quando era necessário empurrar os caiaques por uma vegetação encharcada, chamada turfa, morro acima por mais de duas horas até a área de transição. Um esforço descomunal para o quinto dia de competição.

Já a caminho da linha de chegada, fizemos uma perna de trekking e uma de mountain bike pela clássica trilha escocesa West Higland Way, ou simplesmente WHW. Passamos por montanhas com mais de mil metros de altitude em direção à chegada, em Fort William. No caminho estava a Ben Nevis, a montanha mais alta da Grã-Bretanha, com 1.344 metros. E ainda fomos premiados naquele dia com a presença do sol, que costuma aparecer por lá em raros 50 dias por anos.


EXAUSTÃO: A equipe norte-americana Sole antes da última etapa de remo, quando foi obrigada a puxar o barco por exaustivos 12 km

Depois de 5 dias e 14 horas, cruzamos a linha de chegada com dores nos pés, dedos parcialmente congelados, mas absurdamente emocionados por conseguirmos terminar a prova em 18º lugar (com corte de percurso, mas apenas as cinco primeiras colocadas fizeram o percurso completo). Naquele momento, resgatamos tudo o que vivemos intensamente até ali. Lembramos dos muitos momentos de beleza e superação da equipe e também dos medos e sofrimentos, e voltamos pra casa com a certeza absoluta de que valeu a pena, não apenas pela conquista de cada um e pelos lugares que conhecemos, mas principalmente pela oportunidade de representar o Brasil mais uma vez numa das provas mais difíceis do planeta.

O mundial de corrida de aventura (ARWC 2007) foi vencido pela equipe norte-americana Nike em 4 dias e 22h07min de competição (cerca de 500 km de percurso). A segunda colocada foi a franco-suíça Wilsa Sport Helly Hansen, seguida pela OrionHealth.com. A brasileira Eleonorá Audrá correu pela equipe sueca FJS, finalizando a prova em nono lugar.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2007)







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